Wladimir Pomar* no Correio da Cidadania | |
Em seu discurso programático, a presidenta Dilma colocou em pauta um
problema ao mesmo tempo importante e polêmico. Ela afirmou que o apoio
aos grandes exportadores não é incompatível com o incentivo, o
desenvolvimento e o apoio à agricultura familiar e ao
micro-empreendedor. Com razão ela acentuou que as pequenas empresas são
responsáveis pela maior parcela dos empregos permanentes em nosso país e
merecerão políticas tributárias e de crédito perenes.
No caso específico dos grandes exportadores do agronegócio, ela também
poderia ter afirmado que o apoio ao esse setor da agricultura brasileira
não deve ser incompatível com o desenvolvimento e o apoio à agricultura
familiar. No entanto, ela apenas se referiu às políticas de apoio. O
que não exclui a necessidade de o governo, nessa questão concreta, levar
em conta que a lógica de desenvolvimento do agronegócio é contrária ao
desenvolvimento da agricultura familiar.
Não se pode negar que o agronegócio também gera empregos, embora muitas
vezes de má qualidade, e que sua tendência de mecanização, não só dos
tratos culturais, mas também das colheitas, reduz sua capacidade de
geração de empregos permanentes. Mas a questão principal, que deve
preocupar o governo no desenvolvimento do agronegócio em contraposição à
agricultura familiar, não é essa. É a divisão de trabalho estabelecida
na produção de alimentos, produção indispensável à reprodução saudável
da força de trabalho e de toda a população brasileira.
Nos últimos oito anos, apesar de todo o esforço do governo Lula para
apoiar a agricultura familiar, esta vem sendo paulatina e firmemente
engolida pelo desenvolvimento do agronegócio. Não se trata, no caso,
apenas de ter pena daquelas famílias cujas terras foram expropriadas por
dívidas bancárias ou outras e, em conseqüência, foram posteriormente
re-apropriadas pelo agronegócio. Trata-se também de levar em conta as
parcelas de agricultura familiar que estão sendo arrendadas a grupos
capitalistas do agronegócio para a produção de cana, soja e outras
commodities exportáveis.
Nestes casos, as famílias agrícolas podem até estar numa boa situação na
condição de rentistas. O problema que se coloca é o da segurança
alimentar e da inflação que pode advir de uma oferta muito inferior à
demanda, como está ocorrendo desde o final de 2010. Em termos concretos,
o agronegócio produz mais de 80% dos produtos agrícolas brasileiros,
enquanto a agricultura familiar é responsável por cerca de 20%.
Porém, quase 100% da produção do agronegócio é voltada para commoditites
que têm pouco peso na oferta alimentar. A agricultura familiar é
obrigada, portanto, a sustentar sozinha a oferta de alimentos. Se a
lógica do agronegócio continuar se impondo, mesmo que seja em termos
estritamente econômicos, abandonando o antigo e malfadado sistema
extra-econômico da grilagem, a oferta alimentar corre perigo de redução.
E a idéia de que o Brasil pode aproveitar suas condições de solo, água e
clima, para confirmar seu status de celeiro do mundo, certamente
naufragará.
Para evitar que essa tendência de redução das famílias produtoras de
alimentos continue se impondo, não bastam benefícios tributários e
créditos, embora estes sejam fundamentais. É preciso apoiar efetivamente
o processo de comercialização dos produtos, evitando que as famílias
agrícolas realizem a dupla missão de produzir e comercializar, ou de
produzir e vender a preços vis a atravessadores.
É preciso fazer com que os serviços de extensão rural apóiem a
cooperação agrícola no processamento daqueles tipos de alimentos que
podem ser industrializados, a exemplo das frutas. E ajudar as famílias
agrícolas e elevarem sua produtividade e produzirem a custos mais
baixos.
Finalmente, é preciso tratar do assentamento de alguns milhões de
camponeses, que continuam sem terra para produzir, como uma questão
estratégica para ampliar a produção de alimentos, evitando a escassez
desses produtos, baixando seus custos e impedindo que os alimentos sejam
o vilão do aumento da inflação.
O governo precisa ter em alta conta que, ao promover a expressiva
mobilidade social que ocorreu nos dois mandatos do presidente Lula, como
disse Dilma, ele elevou a pressão sobre a produção alimentar a um nível
que talvez não tenha dimensionado adequadamente. Se se efetivar o
compromisso da presidenta, de não descansar enquanto houver brasileiro
sem alimento na mesa, superando a pobreza que ainda existe, envergonha
nosso país e impede nossa afirmação plena como povo desenvolvido, a
pressão sobre os alimentos dará um novo salto.
Portanto, mesmo compreendendo que o agronegócio desempenha um papel
importante no desenvolvimento das forças produtivas e no desempenho das
exportações, e que a apoio a ele não deve ser negligenciado, talvez já
tenha passado a hora de continuar tratando a agricultura familiar como
uma questão secundária. Será um erro imperdoável esperar a crise que
será criada quando os milhões de brasileiros, que continuam a comer uma
vez por dia, ou menos do que isso, tiverem condições de comer três vezes
ao dia.
*Wladimir Pomar é analista político e escritor.
|
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
A questão dos alimentos
A UE é dura com Minsk, mas suave com Baku
Texto traduzido e enviado pelo leitor Pippo:
Alguém deveria dizer aos líderes da União Europeia para deixarem em paz o ditador bielorrusso Alyaksandr Lukashenko.
Afinal de contas, na próxima semana, o Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso reunir-se-á com Islam Karimov, Presidente do Uzbequistão. E na semana passada o mesmo Durão Barroso visitou o Azerbaijão e reuniu-se com o Presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, cujo registo de direitos humanos é comparável ao do seu homólogo do Uzebequistão. E na mesma semana, a União convidou o Presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdymukhammedov, a visitar Bruxelas e discutir sobre assuntos de cooperação energética e comercial.
O que faz com que Lukashenka seja diferente dos ditadores acima mencionados? Bom, ninguém pode culpá-lo por a Bielorrússia não possuir petróleo ou gás natural.
Sociedade 'Dinâmica'
Não é nenhum segredo que certos países pós-soviéticos parecem muito diferentes uns dos outros, sobretudo quando os líderes europeus os observam através do prisma do petróleo e do gás. "Eu sei que o seu país tem uma sociedade muito dinâmica", disse Barroso a Aliyev durante a sua visita a Baku.
Dinâmica? Talvez. Mas ninguém o diria se considerar que todos os actos eleitorais tem sido fraudulentos desde 1993, quando o pai de Aliyev, Heydar Aliyev, derrubou o governo democraticamente eleito e tornou-se chefe de Estado num acto que os observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa e do Conselho da Europa descreveram como sendo um golpe de Estado.
Ninguém o diria se tivesse tido em conta o facto de que o governo do Azerbaijão tem constantemente obtido péssimas classificações em termos de corrupção por parte da Transparência Internacional, e que o Presidente Aliyev tem sido apontado como um predador de jornalistas por parte de grupos de vigilância da liberdade dos média.
Dinâmica, de facto…
No mês passado, Lukashenko causou um alvoroço na UE e desencadeou um processo de possíveis sanções contra o seu governo após uma ofensiva brutal pós-eleitoral contra a oposição. Ele poderia ter seguido os passos de Aliyev, o qal fez exactamente a mesma coisa em 2003 e 2005.
A Presidência Infindável
Em Março de 2009, Aliyev alterou a Constituição (através de um referendo fraudulento, é claro) abolindo assim os limites de mandato para a presidência e preparando o cenário para ele "concorrer" infinitamente para o cargo. Quando um jornalista da EuroNews recentemente lhe perguntou se ele se considerava um rei, Aliyev simplesmente balançou a cabeça. Mas é difícil imaginar que poderes pode um rei ter que Aliyev não tenha.
No entanto, Lukashenko é um ditador cruel que deve ser desprezado pela “boa” sociedade europeia, enquanto Aliyev é um verdadeiro amigo que preside um país "dinâmico".
A UE precisa de rotas alternativas de energia, e o negócio de um "corredor do sul" para transporte de gás através do Azerbaijão faz muito sentido sob o ponto de vista económico. Do ponto de vista económico, a cooperação com o Turquemenistão e Uzbequistão também fazem sentido.
Mas porque não restringir as relações com esses países dentro de um quadro da cooperação estritamente necessária? Azerbaijão, Turcomenistão e outros países têm hidrocarbonetos a UE tem o dinheiro para os pagar. Então, será que é realmente necessário que os funcionários europeus coloquem os seus braços por sobre os ombros destes governantes autoritários e digam disparates acerca do seu desenvolvimento "dinâmico"?
Por que é que Barroso faz o comentário gratuito de que "nós queremos deixar claro que as nossas relações não se limitam ao petróleo e gás", quando todos sabem que 98 por cento das importações da UE provenientes do Azerbaijão são o petróleo e o gás?
Adicionando insulto à injúria
Já foi dito antes, mas, obviamente, precisa ser dito novamente. Quando os líderes da UE fazem visitas de alto nível a esses países e louvam os seus governantes, eles conferem um enorme capital político a essas transacções comerciais. Os líderes autoritários concluem que, enquanto estiverem dispostos a receber dinheiro europeu, eles terão a UE nos seus bolsos. Na falta de legitimidade ente o seu próprio povo, eles diligentemente recebem raspas de legitimidade dos lábios de pessoas como José Manuel Barroso.
Este é um jogo que os líderes autoritários estão felizes por jogar. Afinal, a UE é um exemplo de um modelo político radicalmente diferente para os cidadãos de países como o Azerbaijão. Assim, a "ditaduras da energia" sentem a necessidade de desacreditar a UE, mostrando assim aos seus povos que o discurso da Europa da democracia e dos direitos humanos é apenas um corrilho de mentiras.
Quando eles apertam as mãos com altos responsáveis da UE, como Barroso, eles enviam a mensagem de que as críticas do passado (na sua maior parte, proveniente das organizações europeias) nunca importaram e foram esquecidas. No caso do Azerbaijão, a mensagem é ainda pior. Aliyev afirmou muitas vezes que "alguns países" manipulam as questões da democracia a fim de forçar o Azerbaijão a fazer concessões económicas. Quando funcionários da UE assinam acordos e falam sobre o Azerbaijão "dinâmico", toda a gente neste país entende que a democracia, eleições fraudulentas, jornalistas presos, espancados e manifestantes são apenas moeda de troca para tornar o gás e o petróleo mais baratos. Ou pelo menos, isso é o que Baku quer que todos, no Azerbaijão, assim o pensem.
E não ajuda o facto de que, quando Durão Barroso realizou uma conferência de imprensa conjunta com Aliyev em Baku, nenhum dos órgãos independentes dos média do país tivessem estado presentes. Mais tarde, quando Durão Barroso realizou uma conferência de imprensa individual, organizada pelo gabinete da UE em Baku, as perguntas dos jornalistas foram previamente seleccionadas.
Por que é que a UE participa nesta dança Kabuki com o governo do Azerbaijão?
Aqui estão alguns factos para fazer a UE refectir. Eynulla Fatullayev é um jornalista do Azerbaijão que foi detido em 2007 sob acusações falsas, pois os dois jornais que fundou eram críticos em relação ao Governo. Ele foi condenado a 8 anos e meio de prisão sob a acusação de calúnia, difamação, incitação ao terrorismo e à evasão fiscal.
No ano passado, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem absolveu-o de todas as acusações e ordenou ao Azerbaijão que o libertasse e o indemnizasse no valor de 28.000 €. Antecipando-se a esta decisão, o Supremo Tribunal de Justiça do Azerbaijão rapidamente condenou por novas acusações de posse de drogas e evasão fiscais. Ele permanece na prisão até aos dias de hoje.
A indemnização ordenada por Estrasburgo foi depositada numa conta bancária a qual foi congelada na sequência da prisão de Fatullayev, permitindo a Baku afirmar que tinha dado cumprimento à decisão do tribunal, assegurando ao mesmo tempo que Fatullayev não poderia receber o dinheiro.
Barroso afirmou que discutiu este caso com Aliyev. "O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pronunciou-se em seu favor e defendi a sua libertação", disse Barroso. "Eu abordei essas questões, num espírito de abertura e amizade, chamando claramente a atenção do presidente Aliyev. "
Em 21 de Janeiro o Tribunal da Apelação de Baku analisará o recurso de Fatullayev para a sua libertação. Este será um bom teste para os amigos de Durão Barroso em Baku.
E aqui está mais um exemplo do cinismo extremo com que o governo do Azerbaijão trata os seus parceiros europeus.
Mais de um ano atrás, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (APCE) nomeou o social-democrata alemão Christoph Straesser como relator especial para os presos políticos no Azerbaijão. No entanto Straesser ainda não recebeu o convite do governo do Azerbaijão para visitar o país e implementar o seu mandato.
O Conselho da Europa pediu a Baku que resolvesse o problema, mas sem sucesso. Straesser provavelmente receberá o seu convite na mesma altura em que Fatullayev receber a sua indemnização.
Lukashenko pode obter sanções; Aliyev irá rir por último.
http://www.rferl.org/content/eu_azerbaijan_aliyev_barroso_commentary/2281186.html "
Afinal de contas, na próxima semana, o Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso reunir-se-á com Islam Karimov, Presidente do Uzbequistão. E na semana passada o mesmo Durão Barroso visitou o Azerbaijão e reuniu-se com o Presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, cujo registo de direitos humanos é comparável ao do seu homólogo do Uzebequistão. E na mesma semana, a União convidou o Presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdymukhammedov, a visitar Bruxelas e discutir sobre assuntos de cooperação energética e comercial.
O que faz com que Lukashenka seja diferente dos ditadores acima mencionados? Bom, ninguém pode culpá-lo por a Bielorrússia não possuir petróleo ou gás natural.
Sociedade 'Dinâmica'
Não é nenhum segredo que certos países pós-soviéticos parecem muito diferentes uns dos outros, sobretudo quando os líderes europeus os observam através do prisma do petróleo e do gás. "Eu sei que o seu país tem uma sociedade muito dinâmica", disse Barroso a Aliyev durante a sua visita a Baku.
Dinâmica? Talvez. Mas ninguém o diria se considerar que todos os actos eleitorais tem sido fraudulentos desde 1993, quando o pai de Aliyev, Heydar Aliyev, derrubou o governo democraticamente eleito e tornou-se chefe de Estado num acto que os observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa e do Conselho da Europa descreveram como sendo um golpe de Estado.
Ninguém o diria se tivesse tido em conta o facto de que o governo do Azerbaijão tem constantemente obtido péssimas classificações em termos de corrupção por parte da Transparência Internacional, e que o Presidente Aliyev tem sido apontado como um predador de jornalistas por parte de grupos de vigilância da liberdade dos média.
Dinâmica, de facto…
No mês passado, Lukashenko causou um alvoroço na UE e desencadeou um processo de possíveis sanções contra o seu governo após uma ofensiva brutal pós-eleitoral contra a oposição. Ele poderia ter seguido os passos de Aliyev, o qal fez exactamente a mesma coisa em 2003 e 2005.
A Presidência Infindável
Em Março de 2009, Aliyev alterou a Constituição (através de um referendo fraudulento, é claro) abolindo assim os limites de mandato para a presidência e preparando o cenário para ele "concorrer" infinitamente para o cargo. Quando um jornalista da EuroNews recentemente lhe perguntou se ele se considerava um rei, Aliyev simplesmente balançou a cabeça. Mas é difícil imaginar que poderes pode um rei ter que Aliyev não tenha.
No entanto, Lukashenko é um ditador cruel que deve ser desprezado pela “boa” sociedade europeia, enquanto Aliyev é um verdadeiro amigo que preside um país "dinâmico".
A UE precisa de rotas alternativas de energia, e o negócio de um "corredor do sul" para transporte de gás através do Azerbaijão faz muito sentido sob o ponto de vista económico. Do ponto de vista económico, a cooperação com o Turquemenistão e Uzbequistão também fazem sentido.
Mas porque não restringir as relações com esses países dentro de um quadro da cooperação estritamente necessária? Azerbaijão, Turcomenistão e outros países têm hidrocarbonetos a UE tem o dinheiro para os pagar. Então, será que é realmente necessário que os funcionários europeus coloquem os seus braços por sobre os ombros destes governantes autoritários e digam disparates acerca do seu desenvolvimento "dinâmico"?
Por que é que Barroso faz o comentário gratuito de que "nós queremos deixar claro que as nossas relações não se limitam ao petróleo e gás", quando todos sabem que 98 por cento das importações da UE provenientes do Azerbaijão são o petróleo e o gás?
Adicionando insulto à injúria
Já foi dito antes, mas, obviamente, precisa ser dito novamente. Quando os líderes da UE fazem visitas de alto nível a esses países e louvam os seus governantes, eles conferem um enorme capital político a essas transacções comerciais. Os líderes autoritários concluem que, enquanto estiverem dispostos a receber dinheiro europeu, eles terão a UE nos seus bolsos. Na falta de legitimidade ente o seu próprio povo, eles diligentemente recebem raspas de legitimidade dos lábios de pessoas como José Manuel Barroso.
Este é um jogo que os líderes autoritários estão felizes por jogar. Afinal, a UE é um exemplo de um modelo político radicalmente diferente para os cidadãos de países como o Azerbaijão. Assim, a "ditaduras da energia" sentem a necessidade de desacreditar a UE, mostrando assim aos seus povos que o discurso da Europa da democracia e dos direitos humanos é apenas um corrilho de mentiras.
Quando eles apertam as mãos com altos responsáveis da UE, como Barroso, eles enviam a mensagem de que as críticas do passado (na sua maior parte, proveniente das organizações europeias) nunca importaram e foram esquecidas. No caso do Azerbaijão, a mensagem é ainda pior. Aliyev afirmou muitas vezes que "alguns países" manipulam as questões da democracia a fim de forçar o Azerbaijão a fazer concessões económicas. Quando funcionários da UE assinam acordos e falam sobre o Azerbaijão "dinâmico", toda a gente neste país entende que a democracia, eleições fraudulentas, jornalistas presos, espancados e manifestantes são apenas moeda de troca para tornar o gás e o petróleo mais baratos. Ou pelo menos, isso é o que Baku quer que todos, no Azerbaijão, assim o pensem.
E não ajuda o facto de que, quando Durão Barroso realizou uma conferência de imprensa conjunta com Aliyev em Baku, nenhum dos órgãos independentes dos média do país tivessem estado presentes. Mais tarde, quando Durão Barroso realizou uma conferência de imprensa individual, organizada pelo gabinete da UE em Baku, as perguntas dos jornalistas foram previamente seleccionadas.
Por que é que a UE participa nesta dança Kabuki com o governo do Azerbaijão?
Aqui estão alguns factos para fazer a UE refectir. Eynulla Fatullayev é um jornalista do Azerbaijão que foi detido em 2007 sob acusações falsas, pois os dois jornais que fundou eram críticos em relação ao Governo. Ele foi condenado a 8 anos e meio de prisão sob a acusação de calúnia, difamação, incitação ao terrorismo e à evasão fiscal.
No ano passado, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem absolveu-o de todas as acusações e ordenou ao Azerbaijão que o libertasse e o indemnizasse no valor de 28.000 €. Antecipando-se a esta decisão, o Supremo Tribunal de Justiça do Azerbaijão rapidamente condenou por novas acusações de posse de drogas e evasão fiscais. Ele permanece na prisão até aos dias de hoje.
A indemnização ordenada por Estrasburgo foi depositada numa conta bancária a qual foi congelada na sequência da prisão de Fatullayev, permitindo a Baku afirmar que tinha dado cumprimento à decisão do tribunal, assegurando ao mesmo tempo que Fatullayev não poderia receber o dinheiro.
Barroso afirmou que discutiu este caso com Aliyev. "O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pronunciou-se em seu favor e defendi a sua libertação", disse Barroso. "Eu abordei essas questões, num espírito de abertura e amizade, chamando claramente a atenção do presidente Aliyev. "
Em 21 de Janeiro o Tribunal da Apelação de Baku analisará o recurso de Fatullayev para a sua libertação. Este será um bom teste para os amigos de Durão Barroso em Baku.
E aqui está mais um exemplo do cinismo extremo com que o governo do Azerbaijão trata os seus parceiros europeus.
Mais de um ano atrás, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (APCE) nomeou o social-democrata alemão Christoph Straesser como relator especial para os presos políticos no Azerbaijão. No entanto Straesser ainda não recebeu o convite do governo do Azerbaijão para visitar o país e implementar o seu mandato.
O Conselho da Europa pediu a Baku que resolvesse o problema, mas sem sucesso. Straesser provavelmente receberá o seu convite na mesma altura em que Fatullayev receber a sua indemnização.
Lukashenko pode obter sanções; Aliyev irá rir por último.
http://www.rferl.org/content/eu_azerbaijan_aliyev_barroso_commentary/2281186.html "
Lula, o filho da dialética
Não é e nunca foi um revolucionário que
quer fazer a História dar saltos, mas um visionário que quer empurrá-la
aos pouco. É a personificação da síntese entre contrários na visão
dialética: é a negação da negação, a continuação da política por meio da
política. Não o confundam, porém, com o estereótipo do político mineiro
tradicional: o político mineiro é um protótipo do príncipe de
Lampeduza, que quer mudar para que as coisas continuem como estão. Lula
quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de fazer composição, arranca
compromissos aos poucos, sem ruptura. O artigo é de J. Carlos de Assis.
J. Carlos de Assis*na Carta Maior
O que há de comum entre a dialética marxista
e o princípio milenar de Lao Tsé segundo o qual não se deve remar
contra a corrente, mas usar sua força a seu favor? Tudo. É
essencialmente o mesmo princípio. O que me impediu durante décadas de
ver isso foi uma leitura superficial de Marx. Ou melhor, uma leitura de
Marx que não considerava os fundamentos mais profundos de sua própria
dialética no plano filosófico, ainda hoje insuperável, pela razão de que
ela está recoberta por uma dialética política impressionista que se
revelou idealista e fracassada.
Nenhum político brasileiro, e poucos no mundo, se revelaram melhores discípulos de Lao Tsé do que Luís Inácio Lula da Silva. Mas Lula é também um produto genuíno da dialética marxista. Para Marx, a história avança como resultado de conflitos entre forças materiais polares (para seu inspirador, Hegel, eram as forças de idéias polares), sendo uma conservadora, outra progressista, e de cujo embate sempre resulta a superação de ambas num nível superior. Em seu aspecto formal, trata-se da interação real entre tese, antítese e síntese.
Superação não significa domínio da antítese sobre a tese. Significa a interação de ambas numa síntese que contém elementos próprios de cada uma delas, porém numa direção nova. A grande novidade da dialética marxista, em relação a Hegel, é que ela coloca o conflito histórico recorrente no nível das forças materiais, e não no campo exclusivo das idéias. Isso não chega a ser contraditório em relação à dialética política marxista, a qual, confiada no conhecimento humano dos determinantes de sua própria história, entendeu possível ser eliminado o conflito de classes pelo domínio absoluto de uma classe, os trabalhadores, sobre a outra, os burgueses.
A razão dessa extrapolação política é em si mesma simples: se a dialética formal exige que, no conflito entre tese e antítese, a síntese que o supere guarde elementos de ambos, o que se guarda do capitalismo na construção do comunismo pela liquidação da burguesia não são elementos das complexas relações sociais por esta criada, mas sua característica material fundamental: o espetacular desenvolvimento das forças produtivas realizado pelo capitalismo, exaltado inclusive pelo Manifesto Comunista de 48. Este seria herdado e apropriado pelos comunistas. Concilia-se assim dialética formal com dialética política, na medida em que esta rejeita a superação do conflito mediante interação das classes em favor da idéia de eliminação, no comunismo, não só da classe burguesa, mas de todas as classes.
Marx não chegou a ser muito preciso a respeito do que pensava ser a marcha da história depois do comunismo. Em geral, confiava num processo de emulação (não de competição) entre trabalhadores, estes em condições sociais iguais, para produzir o progresso tecnológico numa sociedade sem classes. Idealismo puro. Num certo sentido seria o fim da História tal como a conhecemos, ou seja, como um processo dialético, ou de conflitos. Mais de um século mais tarde, um pensador norte-americano, Francis Fukuyama, também achou que estávamos ao ponto de chegar ao fim da História, porém mediante um processo dialeticamente inverso: pelo predomínio absoluto do neoliberalismo e a eliminação do reformismo social tradicionalmente perseguido pelas esquerdas.
Vimos ao longo do século XX e neste início do XXI que os processos históricos são bem mais complexos, não obstante a validade formal da dialética marxista e hegeliana: a limitada burguesia capitalista e a ampla classe dominante feudal, numa área remota e pouco desenvolvida do mundo, a Rússia, foi liquidada por um golpe de um punhado de trabalhadores e uma multidão de camponeses liderados por intelectuais, mas disso não resultou o fim das classes. Resultou, sim, na lenta criação de uma nomenclatura privilegiada em face de massas subjugadas, trucidadas e amordaçadas, não obstante algum progresso material inicial.
Na China, outra área remota de camponeses, a revolução comunista triunfante só se estabilizou e colocou o país na trilha do desenvolvimento após a consolidação de uma elite dominante tecnocrática que tem características mais próximas do antigo mandarinato do que do mundo burguês ocidental. Nesses dois grandes países, a tese não era o capitalismo, mas algo próximo do feudalismo; a antítese, depois do interregno caótico comunista, está sendo o próprio capitalismo liberal importado, embora com elementos sociais. A síntese, não revolucionária, está em processo. É como se a história tivesse feito um desvio geográfico, o equivalente de um epiciclo planetário no sistema cosmológico de Ptolomeu. Na era nuclear, a guerra, anteriormente o fato supremo da Geopolítica, já não pode ser, como havia afirmado Clausewitz, a continuação da política por outros meios: o adversário não pode ser destruído sem uma simultânea autodestruição, mas, sim, absorvido num processo de negociação e de composição sem derrotados definitivos.
O que aconteceu ao longo desse período no Ocidente, berço da dialética, do capitalismo, do comunismo e da Geopolítica de Clausewitz? Aconteceu o curso da dialética real, traçando um rumo da história que se revelaria também o mais próximo do princípio de Lao Tsé: à sombra do conflito de idéias e de interesses entre capitalismo liberal e socialismo real, debaixo do medo do comunismo soviético e dos comunistas internos, um grupo de nações européias, liderado pelos nórdicos, promoveu a síntese social democrata, com elementos aproveitados dos dois sistemas em conflito, porém superando-os. De um lado, o respeito à propriedade privada e o prêmio pelo esforço, pela inovação e pela competência; de outro, os programas sociais promovidos pelo Estado a partir de uma pressão crescente por igualdade de oportunidades sobre a renda nacional, porém de caráter não revolucionário, através da expansão dos orçamentos públicos pela força da cidadania ampliada.
O conflito geopolítico entre as potências hegemônicas antagônicas, Estados Unidos e União Soviética, à sombra do terror nuclear, dominou a segunda metade do Século XX e de certa forma obscureceu as nuances do modelo social democrata europeu na sua fase de construção e de consolidação. É da natureza de qualquer conflito político a radicalização. Acontece que, na era nuclear, a radicalização política tinha e tem limites: os falcões norte-americanos não podiam colocar em prática seus propósitos de levar a União Soviética à rendição por meios militares, assim como permaneceu como letra morta o artigo do programa do PCUS de destruir o capitalismo e o imperialismo (norte-americano). Entretanto, uma retórica estridente num plano impraticável não deixa de produzir resultados mobilizadores na base.
No plano da ideologia, da propaganda e da imprensa engajada do pólo norte-americano, toda pessoa com preocupações sociais era taxada de comunista; com isso, nos Estados Unidos, tendo por epifenômeno a caça às bruxas do Senador McCarthy nos anos 50, o progresso social a partir do Estado seria lento. Mais do que isso, sob a vasta área de influência norte-americana do lado ocidental, se era possível a consolidação da social democracia no norte da Europa, tornou-se bem mais difícil importar esse modelo pelos países atrasados ou, como se diz hoje, em desenvolvimento. Uma das razões, talvez entre as principais, era de natureza contraditória, e inequivocamente ideológica: os comunistas não queriam reformas, queriam revoluções. Nisso, acabavam como aliados efetivos dos conservadores que também não queriam reformas.
A Europa teve mais sorte. Dois marxistas geniais, Eduard Bernstein e Karl Kautsky, se deram conta no começo do século XX de que entre a classe burguesa e a classe operária o movimento real da história, num curso bem diferente do previsto por Marx, estava produzindo relações sociais complexas na forma de classes médias cada vez mais amplas, com interesses próprios diferenciados das outras duas. Foram acusados de renegados e expurgados do marxismo oficial. Não obstante, foram eles que abriram as portas para o reconhecimento de uma síntese social democrata no plano teórico. Foi graças a ideólogos como eles que a pequena Suécia não caiu na armadilha da luta ideológica radical, fundando efetivamente a social democracia ainda nos anos 20.
Nós não tivemos a mesma sorte. O máximo de acomodação que nossos ideólogos de esquerda conseguiram produzir no espaço entre os dois pólos ideológicos foi o conceito de revolução nacional burguesa, num momento em que o capitalismo de fora para dentro já se estava tornando internacional e o capitalismo de dentro para fora conquistava boas oportunidades associando-se com o externo, ambos contribuindo para expandir os limites das incipientes classes médias. Fernando Henrique Cardoso elaborou o conceito com um trejeito de neutralidade acadêmica, expurgando-o do apelo revolucionário. Sua teoria da dependência é a teoria do desenvolvimento capitalista subordinado, por cima das relações sociais concretas internas, o que tentou levar à prática em sua Presidência. Certamente foi mais realista que os ideólogos revolucionários comunistas. Mas não correspondeu ao Brasil real, ou às forças sociais reais que prevalecem no Brasil desde os anos 90.
O quadro mais complexo do Brasil contemporâneo está retratado na Constituição original de 88. Foi essa Constituição, renegada inicialmente pelos parlamentares do PT e colocada sob suspeita pelos conservadores, que gerou Lula, sendo que Lula esteve no centro dos acontecimentos sociais e políticos que geraram a abertura política na ditadura, e a própria Constituinte de que seria uma consequência. Isso é dialética no mundo real, não no plano das idéias. O sentido mais profundo da Constituição é que ela refletia, ou aparentava refletir, uma força política que correspondia a uma efetiva democracia de cidadania ampliada. O fato político mais decisivo rumo à ampliação da cidadania foram as históricas greves de 1978, 79 e 80, em confronto direto com as restrições do governo autoritário. Lula foi o líder inconteste dos trabalhadores organizados nessa greve, e a aura do sucesso lhe abriu o caminho para que, transcendendo o sindicalismo, acabasse sendo o grande líder das massas indiferenciadas que acabou sendo: os pobres eternamente relegados a segundo plano pelo orçamento público no Brasil. Esses pobres, inclusive analfabetos, viram reconhecida sua cidadania na Constituição de 88, além de amplos direitos sociais. Os conservadores só tiveram tempo de espantar-se diante do novo quadro político, e preparar uma contra-ofensiva, através da recorrente pregação posterior de reformas liberais.
No início Lula foi celebrado como um herói contra a ditadura. Como boa parte das classes médias estava contra a ditadura, seja por razões ideológicas, seja por sentimentos democráticos genuínos, é possível que ele no início tenha tido relativamente mais apoio nas classes médias pelo que parecia ser, e menos apoio das classes subalternas pelo que ainda não era. Isso se reflete nas várias eleições presidenciais que disputou e perdeu, antes da vitória em 2002. O partido que construiu era um curioso ajuntamento de sindicalistas, intelectuais e católicos progressistas, com um poder de atração considerável sobre a juventude, dada a inclinação natural desta para uma espécie de veneração romântica da classe trabalhadora (o que, em outro tempo, era um grande fator de recrutamento de quadros pelos PCs).
Sabemos que a Constituição de 88 não foi plenamente aplicada. Aliás, em várias partes e em momentos posteriores ela foi de fato estuprada, desde o Governo Collor ao Governo Fernando Henrique. Qual a razão disso, à luz da dialética? A razão é que os avanços nela inscritos não correspondiam a uma expressão genuína do jogo de poder entre forças sociais reais, mas a uma concessão romântica de forças políticas progressistas, que detiveram por um momento o poder parlamentar, mas não o poder real. Este estava nas mãos dos conservadores que iniciaram o movimento anti-progressista ainda com o Centrão e iriam aprofundá-lo com o movimento de desestatização, privatização e corte de direitos sociais nos anos posteriores.
Estes foram anos em que o Brasil, tradicionalmente sujeito à influência de ideologias externas, sucumbiu à avalanche neoliberal em progresso no mundo. Já antes da desarticulação da União Soviética o socialismo real se desmoralizava mundialmente como conseqüência da falta de liberdade individual e de fracassos no plano material, desde o atraso tecnológico a ondas de desastres agrícolas. Depois da desarticulação, comunistas brasileiros e simpatizantes do socialismo viram-se sem referência política. Não era uma característica exclusiva nossa. Os tradicionais partidos de esquerda europeus, e o próprio Partido Democrata norte-americano, também sucumbiram. Não estranha que Fukuyama tenha, nesse contexto, vislumbrado o fim da História.
O Governo do intelectual Fernando Henrique foi o reflexo medíocre desse processo: passará à História como um apêndice irrelevante do neoliberalismo europeu e norte-americano. Foi a crise financeira de fins dos anos 90, coroando anos seguidos de virtual estagnação econômica, que apontou a fragilidade do modelo neoliberal adaptado a condições brasileiras. O relaxamento das certezas políticas em torno dele, que abalou parte das próprias classes dominantes, abriu espaço para que emergissem demandas de baixo para cima com potencial de influir no processo político. Lula ocupou esse espaço, porém com uma extraordinária habilidade instintiva para construir uma alternativa entre radicalismos de esquerda e de direita.
Poderia ter sido feito de outra forma? O início do primeiro Governo Lula foi decepcionante para a maioria dos progressistas, inclusive para mim. De saída, ele trouxe para o núcleo central da política econômica um presidente do Banco Central extraído do próprio sistema neoliberal. Acrescentou-se a isso, pela mão de um Ministro da Fazenda convertido à ortodoxia econômica, um compromisso explícito com uma política fiscal restritiva, igualmente a pleno gosto dos neoliberais. Em face de uma taxa de desemprego alarmante, esses movimentos na política econômica poderiam ser justificadamente considerados concessões excessivas à direita e uma traição à maioria do povo que o elegeu. Por cima de tudo, a política social oscilava num plano ainda indefinido.
Em contrapartida, o quadro herdado do Governo anterior era, por sua vez, de extrema complexidade. A despeito de uma taxa de juros básica elevada, a inflação tinha disparado. As reservas cambiais minguavam. Uma especulação desenfreada havia provocado uma explosão da taxa de câmbio. As expectativas empresariais eram sombrias em relação às iniciativas do primeiro partido de esquerda que chegava ao poder no Brasil. Diante disso, a presença de José Alencar, um grande empresário, no cargo de Vice Presidente, era um hábil expediente político, porém não necessariamente efetivo (acabou sendo).
Então aconteceu o imprevisível: os ventos internacionais começaram a soprar a favor. O boom da economia mundial e sobretudo da China puxou para níveis até então inimagináveis as quantidades exportadas e os preços das commodities vendidas pelo Brasil, possibilitando o início de um processo de rápida acumulação de reservas externas; a taxa de câmbio tinha atingido níveis tão altos (quase R$ 4,00) que, mesmo com sua progressiva redução por força do aumento da taxa de juros, subiram também as exportações de manufaturados, em face do ambiente externo igualmente favorável; por efeito da melhora do quadro externo, o mercado interno começou a reagir, inclusive com moderada recuperação do emprego, ao ponto de que, em 2004, o Banco Central se sentiu no direito de dar uma travada na economia para supostamente combater pressões inflacionárias. O resto é conhecido: recuo em 2005 e nova retomada, desta vez mais consistente, a partir de 2006. E uma firme virada política na direção do atendimento às aspirações dos mais pobres e das políticas sociais universais a partir de 2004.
Imagine-se um caminho diferente: Lula teria composto um Ministério econômico mais progressista e implementado políticas mais populares desde a saída. Seria um confronto direto com as classes dominantes conservadoras. No passado, estas tinham o Exército a seu favor, e reagiriam pelo recurso tradicional de um golpe. Agora, dispõem de forças igualmente poderosas: uma parte considerável da grande mídia que forma a opinião pública – muitas vezes em contradição com os interesses reais desta última.
Vimos, pela eleição de Dilma, que a grande mídia tem um poder construtivo limitado: a seu gosto, teria sido eleito Serra. Contudo, seu poder destrutivo não pode ser subestimado. Para o bem ou para o mal, ela destruiu o governo militar, desmoralizou o Plano Cruzado e a moratória do Governo Sarney, promoveu o impeachment de Collor, desestruturou o PT no mensalão. Não fora a força carismática imbatível de Lula, e sua empatia com o povo, além dos meios de informação mais democratizados da internet, e ele e sua sucessão seriam igualmente destruídos pela mídia. Imagine, pois, uma situação de crise geral do país, como anteriormente assinalada, em que um governo inexperiente de esquerda começasse a tomar medidas contra os interesses da classe dominante, muito especialmente os interesses do estamento financeiro entrelaçados com preconceitos ideológicos das classes médias, e que têm as maiores contas de publicidade: seria simplesmente massacrado e desestabilizado pela mídia, inclusive em face da contribuição eventual de petistas tão embriagados pelo poder que fossem capazes de produzir algo tão moralmente repugnante como um mensalão na órbita do palácio!
É claro que a especulação sobre o que poderia ter acontecido se Lula tivesse tentado fazer um governo puro de esquerda (o que é exatamente isso?) é perfunctória, depois do fato consumado. Entretanto, o caminho seguido é uma lição de história... e de dialética, ou da aplicação prática da doutrina de Lao Tsé. Estranho que, quem a tenha dado, seja um torneiro mecânico treinado apenas no sindicalismo, sucessor de quem era considerado um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros. Contudo, talvez seja essa a explicação. Lula nunca pregou a destruição do capitalismo. Nas greves históricas que promoveu, era sobretudo um negociador de aumentos salariais. E em geral sabia até onde poderia ir em termos de reivindicações para não inviabilizar a empresa e destruir a fonte de emprego do próprio trabalhador.
Testemunhei isso. Em 1978, eu era subeditor de Economia do “Jornal do Brasil” e fui indicado pelo editor, Paulo Henrique Amorim, para coordenar as edições das greves do ABC. Na época o “Jornal do Brasil” era o principal formador de opinião brasileiro e o fato de ter aberto duas páginas diárias para as greves foi decisivo para sua repercussão em nível nacional, já que a conservadora imprensa paulista praticamente se omitiu no início delas.
Terminadas 40 dias de greves, fui a São Bernardo para conhecer pessoalmente Lula. Estive com ele um dia inteiro. Entre os relatos que me fez, lembro-me de um sobre uma fábrica de uns 400 empregados que haviam parado e o chamado para negociar o aumento. Queriam 20%. Lula negociou, e obteve o acordo. Duas semanas depois, os operários entraram em greve de novo. Queriam mais 20%. O dono da fábrica desesperou-se. Não podia dar. Lula foi à fábrica e convenceu os empregados, em assembléia, a desistir do pedido.
Esse fato singelo antecipa o que Lula foi na Presidência da República: um hábil negociador e conciliador. Ele não é e nunca foi um revolucionário que quer fazer a História dar saltos, mas um visionário que quer empurrá-la aos pouco. É a personificação da síntese entre contrários na visão dialética: é a negação da negação, a continuação da política por meio da política. Não o confundam, porém, com o estereótipo do político mineiro tradicional: o político mineiro é um protótipo do príncipe de Lampeduza, que quer mudar para que as coisas continuem como estão. Lula quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de fazer composição, arranca compromissos aos poucos, sem ruptura.
Por que, então, ele é tão odiado por uma fração das elites e das classes médias? É uma parte pequena da sociedade, mas com capacidade de vocalização. E é a clientela preferencial dos grandes jornais. Em geral, são privilegiados, e seus interesses básicos foram preservados no Governo Lula. Assim, seu ódio é de estrito fundo ideológico. É um reflexo tardio da doutrina neoliberal que, derrotada pelos fatos a partir da crise financeira iniciada em 2008, ainda não foi entendida como um fracasso retumbante no Brasil, em razão justamente da mediocridade ou da parcialidade de grande parte de nossa mídia. Diga-se, a bem da verdade, que o Ministério de Lula e de sua sucessora também guardaram e guardam resíduos neoliberais. Entretanto, a direção geral das políticas públicas tem um claro viés popular. Não é o ideal, mas o que talvez permitam as circunstâncias.
Isso se revelou sobretudo no enfrentamento da crise financeira mundial que eclodiu em 2008. Alguém deve ter dito a Lula que se tratava de uma marolinha, que o Brasil passaria ao largo dela. Entretanto, quando os fatos demonstraram o contrário, em especial em face de uma explosão no desemprego em dezembro de 2008, o Governo começou a mexer-se. E a medida a meu ver mais eficaz sequer podia ser interpretada como uma iniciativa conjuntural anticíclica. Foi o aumento real de 7% do salário mínimo, fruto de negociação anterior entre centrais sindicais e patronato sob condução de Lula.
O aumento do mínimo injetou uma soma considerável de recursos novos na economia pelo lado da demanda, o que, somado ao estabilizador automático do Bolsa Família e de outros programas sociais, parou a queda do produto e sustentou o início da retomada, estimulado também por reduções de tributos. Do lado da oferta, a principal iniciativa foi a transferência ao BNDES de R$ 100 bilhões (depois mais R$ 80 bilhões) diretamente do Tesouro, o que assegurou a sustentação e ampliação do investimento produtivo deficitário para fazer face à reativação de demanda que estava sendo estimulada. Se não foi possível evitar a queda do PIB em 2009, já no terceiro trimestre havia sinais claros da recuperação que se configuraria em 2010.
Evidentemente que haverá quem, de forma sincera, ache que Lula fez pouco. Isso suscita uma das recorrentes discussões teóricas em dialética: qual a margem de liberdade que o conflito entre interesses reais deixa para a decisão individual do líder? Sabemos que há margens de liberdade, mas sabemos também que, no processo político em andamento, o líder não sabe de antemão quais são. É justamente aí que entra sua inteligência, ou sua intuição. Depois do fato, e sobretudo depois que se sabe a reação do adversário, ou de suas conseqüências, é fácil dizer que haveria um caminho melhor. No fragor da luta, tudo depende de uma avaliação que nem sempre está no campo racional, mas sim no da intuição.
Entre o primeiro e o segundo mandato, Lula poderia ter mandado o presidente do Banco Central para casa. Era o principal empecilho a um crescimento brasileiro mais vigoroso. Talvez ele o fizesse, não fosse a eclosão do mensalão, que o deixou muito fragilizado politicamente. Poderia também ter recorrido a uma política fiscal efetivamente desenvolvimentista, forçando a redução dos juros e por aí liberando recursos fiscais para investimentos produtivos, como queria José Alencar. Não o fez, talvez temendo a reação da mídia. E isso, como dito, não é de subestimar: duas medidas importantíssimas do segundo Governo, a liberação do controle fiscal sobre os investimentos da Eletrobrás, e a capitalização da Petrobrás com reservas do pré-sal, foram recebidas com uma avalanche impressionante de críticas, não obstante sua importância vital para o desenvolvimento brasileiro.
No balanço geral, Lula fez um governo bom para todo mundo, o que se refletiu com justiça nas pesquisas de opinião. Poderia, aliás, inverter a frase: como mostram as pesquisas de opinião, Lula fez um governo bom para todo mundo. Só os obstinados radicais de oposição podem questionar isso. O que se pode tentar fazer é explicar esse fenômeno racionalmente. Talvez nem seja racional. Lembro-me que, no início da crise do mensalão, e amargando uma queda de popularidade que vinha desde antes, Lula deu a uma repórter de tevê amadora uma entrevista em Paris. Foi uma coisa patética, num ambiente patético, e com uma aparência patética. Entre outras coisas, disse que quem está no quarto andar do palácio (Planalto) não sabe o que acontece no terceiro, e que foi traído por alguns companheiros. Assisti à entrevista e fiquei perplexo. Lula parecia destruído.
A partir dali, nas semanas seguintes, a credibilidade de Lula começou a subir. Subiu até ganhar a reeleição. A única explicação é que o povo se apiedou dele, de seu isolamento, visível naquela entrevista improvisada, e se identificou ainda mais com o homem do povo que chegou ao poder e que estava sendo atacado impiedosamente pelas elites dominantes.
Critiquei muito a política econômica do Governo Lula no primeiro mandato. Não tenho muitos motivos hoje para mudar de opinião, mesmo em relação ao segundo mandato. Entretanto, como disse uma vez Alencar, “fizemos tudo errado mas deu tudo certo”. Examinando o passado e sondando o futuro, Delfim Netto disse a mesma coisa, com outras palavras: “Lula teve vento a favor, Dilma terá vento contra”. Em qualquer hipótese, a marca das políticas sociais de Lula ficará gravada para sempre na História do Brasil. Dificilmente se poderá recuar delas, sobretudo depois que ele fez sua sucessora. Isso não compensa exatamente a política econômica conservadora, mas é muito mais que simples populismo porque tem a força de criação de direitos ancorados na democracia de cidadania ampliada.
Em certo momento do primeiro mandato de Lula, estava tão indignado, como disse, com sua política econômica que encerrei um ensaio com uma paródia mais ou menos assim: “Lula, como Moisés, levou seu povo até a beira da Terra Prometida. Mas diferente de Moisés, que não entrou nela, Lula entrou sozinho”. Esse juízo se revelaria, com o tempo, um dos mais injustos que fiz em mais de 40 anos de jornalismo. Acho hoje que um pedaço do Brasil, justamente o dos mais desassistidos desde a escravatura, recebeu de Lula uma oportunidade para entrar na Terra Prometida. Afinal, o que prometeu em suas campanhas, de modo mais enfático, não foi mudar a política econômica. Foi ver dois pratos de comida, por dia, na mesa de cada brasileiro.
Por isso vejo Lula como o filho da dialética. Em escala, é um modelo reduzido, embora eloqüente, do futuro do mundo. Esse futuro não será uma volta pura e simples ao capitalismo liberal dos Estados Unidos, ainda a potência econômica dominante, nem o avanço em direção ao modelo de capitalismo sem liberdade da China, a potência emergente. Será uma superação de ambos. Algum forma política que combine liberdade empresarial e liberdade individual, e alguma forma econômica que combine estímulo ao empreendedorismo privado e maior regulação estatal.
(*) Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB.
Nenhum político brasileiro, e poucos no mundo, se revelaram melhores discípulos de Lao Tsé do que Luís Inácio Lula da Silva. Mas Lula é também um produto genuíno da dialética marxista. Para Marx, a história avança como resultado de conflitos entre forças materiais polares (para seu inspirador, Hegel, eram as forças de idéias polares), sendo uma conservadora, outra progressista, e de cujo embate sempre resulta a superação de ambas num nível superior. Em seu aspecto formal, trata-se da interação real entre tese, antítese e síntese.
Superação não significa domínio da antítese sobre a tese. Significa a interação de ambas numa síntese que contém elementos próprios de cada uma delas, porém numa direção nova. A grande novidade da dialética marxista, em relação a Hegel, é que ela coloca o conflito histórico recorrente no nível das forças materiais, e não no campo exclusivo das idéias. Isso não chega a ser contraditório em relação à dialética política marxista, a qual, confiada no conhecimento humano dos determinantes de sua própria história, entendeu possível ser eliminado o conflito de classes pelo domínio absoluto de uma classe, os trabalhadores, sobre a outra, os burgueses.
A razão dessa extrapolação política é em si mesma simples: se a dialética formal exige que, no conflito entre tese e antítese, a síntese que o supere guarde elementos de ambos, o que se guarda do capitalismo na construção do comunismo pela liquidação da burguesia não são elementos das complexas relações sociais por esta criada, mas sua característica material fundamental: o espetacular desenvolvimento das forças produtivas realizado pelo capitalismo, exaltado inclusive pelo Manifesto Comunista de 48. Este seria herdado e apropriado pelos comunistas. Concilia-se assim dialética formal com dialética política, na medida em que esta rejeita a superação do conflito mediante interação das classes em favor da idéia de eliminação, no comunismo, não só da classe burguesa, mas de todas as classes.
Marx não chegou a ser muito preciso a respeito do que pensava ser a marcha da história depois do comunismo. Em geral, confiava num processo de emulação (não de competição) entre trabalhadores, estes em condições sociais iguais, para produzir o progresso tecnológico numa sociedade sem classes. Idealismo puro. Num certo sentido seria o fim da História tal como a conhecemos, ou seja, como um processo dialético, ou de conflitos. Mais de um século mais tarde, um pensador norte-americano, Francis Fukuyama, também achou que estávamos ao ponto de chegar ao fim da História, porém mediante um processo dialeticamente inverso: pelo predomínio absoluto do neoliberalismo e a eliminação do reformismo social tradicionalmente perseguido pelas esquerdas.
Vimos ao longo do século XX e neste início do XXI que os processos históricos são bem mais complexos, não obstante a validade formal da dialética marxista e hegeliana: a limitada burguesia capitalista e a ampla classe dominante feudal, numa área remota e pouco desenvolvida do mundo, a Rússia, foi liquidada por um golpe de um punhado de trabalhadores e uma multidão de camponeses liderados por intelectuais, mas disso não resultou o fim das classes. Resultou, sim, na lenta criação de uma nomenclatura privilegiada em face de massas subjugadas, trucidadas e amordaçadas, não obstante algum progresso material inicial.
Na China, outra área remota de camponeses, a revolução comunista triunfante só se estabilizou e colocou o país na trilha do desenvolvimento após a consolidação de uma elite dominante tecnocrática que tem características mais próximas do antigo mandarinato do que do mundo burguês ocidental. Nesses dois grandes países, a tese não era o capitalismo, mas algo próximo do feudalismo; a antítese, depois do interregno caótico comunista, está sendo o próprio capitalismo liberal importado, embora com elementos sociais. A síntese, não revolucionária, está em processo. É como se a história tivesse feito um desvio geográfico, o equivalente de um epiciclo planetário no sistema cosmológico de Ptolomeu. Na era nuclear, a guerra, anteriormente o fato supremo da Geopolítica, já não pode ser, como havia afirmado Clausewitz, a continuação da política por outros meios: o adversário não pode ser destruído sem uma simultânea autodestruição, mas, sim, absorvido num processo de negociação e de composição sem derrotados definitivos.
O que aconteceu ao longo desse período no Ocidente, berço da dialética, do capitalismo, do comunismo e da Geopolítica de Clausewitz? Aconteceu o curso da dialética real, traçando um rumo da história que se revelaria também o mais próximo do princípio de Lao Tsé: à sombra do conflito de idéias e de interesses entre capitalismo liberal e socialismo real, debaixo do medo do comunismo soviético e dos comunistas internos, um grupo de nações européias, liderado pelos nórdicos, promoveu a síntese social democrata, com elementos aproveitados dos dois sistemas em conflito, porém superando-os. De um lado, o respeito à propriedade privada e o prêmio pelo esforço, pela inovação e pela competência; de outro, os programas sociais promovidos pelo Estado a partir de uma pressão crescente por igualdade de oportunidades sobre a renda nacional, porém de caráter não revolucionário, através da expansão dos orçamentos públicos pela força da cidadania ampliada.
O conflito geopolítico entre as potências hegemônicas antagônicas, Estados Unidos e União Soviética, à sombra do terror nuclear, dominou a segunda metade do Século XX e de certa forma obscureceu as nuances do modelo social democrata europeu na sua fase de construção e de consolidação. É da natureza de qualquer conflito político a radicalização. Acontece que, na era nuclear, a radicalização política tinha e tem limites: os falcões norte-americanos não podiam colocar em prática seus propósitos de levar a União Soviética à rendição por meios militares, assim como permaneceu como letra morta o artigo do programa do PCUS de destruir o capitalismo e o imperialismo (norte-americano). Entretanto, uma retórica estridente num plano impraticável não deixa de produzir resultados mobilizadores na base.
No plano da ideologia, da propaganda e da imprensa engajada do pólo norte-americano, toda pessoa com preocupações sociais era taxada de comunista; com isso, nos Estados Unidos, tendo por epifenômeno a caça às bruxas do Senador McCarthy nos anos 50, o progresso social a partir do Estado seria lento. Mais do que isso, sob a vasta área de influência norte-americana do lado ocidental, se era possível a consolidação da social democracia no norte da Europa, tornou-se bem mais difícil importar esse modelo pelos países atrasados ou, como se diz hoje, em desenvolvimento. Uma das razões, talvez entre as principais, era de natureza contraditória, e inequivocamente ideológica: os comunistas não queriam reformas, queriam revoluções. Nisso, acabavam como aliados efetivos dos conservadores que também não queriam reformas.
A Europa teve mais sorte. Dois marxistas geniais, Eduard Bernstein e Karl Kautsky, se deram conta no começo do século XX de que entre a classe burguesa e a classe operária o movimento real da história, num curso bem diferente do previsto por Marx, estava produzindo relações sociais complexas na forma de classes médias cada vez mais amplas, com interesses próprios diferenciados das outras duas. Foram acusados de renegados e expurgados do marxismo oficial. Não obstante, foram eles que abriram as portas para o reconhecimento de uma síntese social democrata no plano teórico. Foi graças a ideólogos como eles que a pequena Suécia não caiu na armadilha da luta ideológica radical, fundando efetivamente a social democracia ainda nos anos 20.
Nós não tivemos a mesma sorte. O máximo de acomodação que nossos ideólogos de esquerda conseguiram produzir no espaço entre os dois pólos ideológicos foi o conceito de revolução nacional burguesa, num momento em que o capitalismo de fora para dentro já se estava tornando internacional e o capitalismo de dentro para fora conquistava boas oportunidades associando-se com o externo, ambos contribuindo para expandir os limites das incipientes classes médias. Fernando Henrique Cardoso elaborou o conceito com um trejeito de neutralidade acadêmica, expurgando-o do apelo revolucionário. Sua teoria da dependência é a teoria do desenvolvimento capitalista subordinado, por cima das relações sociais concretas internas, o que tentou levar à prática em sua Presidência. Certamente foi mais realista que os ideólogos revolucionários comunistas. Mas não correspondeu ao Brasil real, ou às forças sociais reais que prevalecem no Brasil desde os anos 90.
O quadro mais complexo do Brasil contemporâneo está retratado na Constituição original de 88. Foi essa Constituição, renegada inicialmente pelos parlamentares do PT e colocada sob suspeita pelos conservadores, que gerou Lula, sendo que Lula esteve no centro dos acontecimentos sociais e políticos que geraram a abertura política na ditadura, e a própria Constituinte de que seria uma consequência. Isso é dialética no mundo real, não no plano das idéias. O sentido mais profundo da Constituição é que ela refletia, ou aparentava refletir, uma força política que correspondia a uma efetiva democracia de cidadania ampliada. O fato político mais decisivo rumo à ampliação da cidadania foram as históricas greves de 1978, 79 e 80, em confronto direto com as restrições do governo autoritário. Lula foi o líder inconteste dos trabalhadores organizados nessa greve, e a aura do sucesso lhe abriu o caminho para que, transcendendo o sindicalismo, acabasse sendo o grande líder das massas indiferenciadas que acabou sendo: os pobres eternamente relegados a segundo plano pelo orçamento público no Brasil. Esses pobres, inclusive analfabetos, viram reconhecida sua cidadania na Constituição de 88, além de amplos direitos sociais. Os conservadores só tiveram tempo de espantar-se diante do novo quadro político, e preparar uma contra-ofensiva, através da recorrente pregação posterior de reformas liberais.
No início Lula foi celebrado como um herói contra a ditadura. Como boa parte das classes médias estava contra a ditadura, seja por razões ideológicas, seja por sentimentos democráticos genuínos, é possível que ele no início tenha tido relativamente mais apoio nas classes médias pelo que parecia ser, e menos apoio das classes subalternas pelo que ainda não era. Isso se reflete nas várias eleições presidenciais que disputou e perdeu, antes da vitória em 2002. O partido que construiu era um curioso ajuntamento de sindicalistas, intelectuais e católicos progressistas, com um poder de atração considerável sobre a juventude, dada a inclinação natural desta para uma espécie de veneração romântica da classe trabalhadora (o que, em outro tempo, era um grande fator de recrutamento de quadros pelos PCs).
Sabemos que a Constituição de 88 não foi plenamente aplicada. Aliás, em várias partes e em momentos posteriores ela foi de fato estuprada, desde o Governo Collor ao Governo Fernando Henrique. Qual a razão disso, à luz da dialética? A razão é que os avanços nela inscritos não correspondiam a uma expressão genuína do jogo de poder entre forças sociais reais, mas a uma concessão romântica de forças políticas progressistas, que detiveram por um momento o poder parlamentar, mas não o poder real. Este estava nas mãos dos conservadores que iniciaram o movimento anti-progressista ainda com o Centrão e iriam aprofundá-lo com o movimento de desestatização, privatização e corte de direitos sociais nos anos posteriores.
Estes foram anos em que o Brasil, tradicionalmente sujeito à influência de ideologias externas, sucumbiu à avalanche neoliberal em progresso no mundo. Já antes da desarticulação da União Soviética o socialismo real se desmoralizava mundialmente como conseqüência da falta de liberdade individual e de fracassos no plano material, desde o atraso tecnológico a ondas de desastres agrícolas. Depois da desarticulação, comunistas brasileiros e simpatizantes do socialismo viram-se sem referência política. Não era uma característica exclusiva nossa. Os tradicionais partidos de esquerda europeus, e o próprio Partido Democrata norte-americano, também sucumbiram. Não estranha que Fukuyama tenha, nesse contexto, vislumbrado o fim da História.
O Governo do intelectual Fernando Henrique foi o reflexo medíocre desse processo: passará à História como um apêndice irrelevante do neoliberalismo europeu e norte-americano. Foi a crise financeira de fins dos anos 90, coroando anos seguidos de virtual estagnação econômica, que apontou a fragilidade do modelo neoliberal adaptado a condições brasileiras. O relaxamento das certezas políticas em torno dele, que abalou parte das próprias classes dominantes, abriu espaço para que emergissem demandas de baixo para cima com potencial de influir no processo político. Lula ocupou esse espaço, porém com uma extraordinária habilidade instintiva para construir uma alternativa entre radicalismos de esquerda e de direita.
Poderia ter sido feito de outra forma? O início do primeiro Governo Lula foi decepcionante para a maioria dos progressistas, inclusive para mim. De saída, ele trouxe para o núcleo central da política econômica um presidente do Banco Central extraído do próprio sistema neoliberal. Acrescentou-se a isso, pela mão de um Ministro da Fazenda convertido à ortodoxia econômica, um compromisso explícito com uma política fiscal restritiva, igualmente a pleno gosto dos neoliberais. Em face de uma taxa de desemprego alarmante, esses movimentos na política econômica poderiam ser justificadamente considerados concessões excessivas à direita e uma traição à maioria do povo que o elegeu. Por cima de tudo, a política social oscilava num plano ainda indefinido.
Em contrapartida, o quadro herdado do Governo anterior era, por sua vez, de extrema complexidade. A despeito de uma taxa de juros básica elevada, a inflação tinha disparado. As reservas cambiais minguavam. Uma especulação desenfreada havia provocado uma explosão da taxa de câmbio. As expectativas empresariais eram sombrias em relação às iniciativas do primeiro partido de esquerda que chegava ao poder no Brasil. Diante disso, a presença de José Alencar, um grande empresário, no cargo de Vice Presidente, era um hábil expediente político, porém não necessariamente efetivo (acabou sendo).
Então aconteceu o imprevisível: os ventos internacionais começaram a soprar a favor. O boom da economia mundial e sobretudo da China puxou para níveis até então inimagináveis as quantidades exportadas e os preços das commodities vendidas pelo Brasil, possibilitando o início de um processo de rápida acumulação de reservas externas; a taxa de câmbio tinha atingido níveis tão altos (quase R$ 4,00) que, mesmo com sua progressiva redução por força do aumento da taxa de juros, subiram também as exportações de manufaturados, em face do ambiente externo igualmente favorável; por efeito da melhora do quadro externo, o mercado interno começou a reagir, inclusive com moderada recuperação do emprego, ao ponto de que, em 2004, o Banco Central se sentiu no direito de dar uma travada na economia para supostamente combater pressões inflacionárias. O resto é conhecido: recuo em 2005 e nova retomada, desta vez mais consistente, a partir de 2006. E uma firme virada política na direção do atendimento às aspirações dos mais pobres e das políticas sociais universais a partir de 2004.
Imagine-se um caminho diferente: Lula teria composto um Ministério econômico mais progressista e implementado políticas mais populares desde a saída. Seria um confronto direto com as classes dominantes conservadoras. No passado, estas tinham o Exército a seu favor, e reagiriam pelo recurso tradicional de um golpe. Agora, dispõem de forças igualmente poderosas: uma parte considerável da grande mídia que forma a opinião pública – muitas vezes em contradição com os interesses reais desta última.
Vimos, pela eleição de Dilma, que a grande mídia tem um poder construtivo limitado: a seu gosto, teria sido eleito Serra. Contudo, seu poder destrutivo não pode ser subestimado. Para o bem ou para o mal, ela destruiu o governo militar, desmoralizou o Plano Cruzado e a moratória do Governo Sarney, promoveu o impeachment de Collor, desestruturou o PT no mensalão. Não fora a força carismática imbatível de Lula, e sua empatia com o povo, além dos meios de informação mais democratizados da internet, e ele e sua sucessão seriam igualmente destruídos pela mídia. Imagine, pois, uma situação de crise geral do país, como anteriormente assinalada, em que um governo inexperiente de esquerda começasse a tomar medidas contra os interesses da classe dominante, muito especialmente os interesses do estamento financeiro entrelaçados com preconceitos ideológicos das classes médias, e que têm as maiores contas de publicidade: seria simplesmente massacrado e desestabilizado pela mídia, inclusive em face da contribuição eventual de petistas tão embriagados pelo poder que fossem capazes de produzir algo tão moralmente repugnante como um mensalão na órbita do palácio!
É claro que a especulação sobre o que poderia ter acontecido se Lula tivesse tentado fazer um governo puro de esquerda (o que é exatamente isso?) é perfunctória, depois do fato consumado. Entretanto, o caminho seguido é uma lição de história... e de dialética, ou da aplicação prática da doutrina de Lao Tsé. Estranho que, quem a tenha dado, seja um torneiro mecânico treinado apenas no sindicalismo, sucessor de quem era considerado um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros. Contudo, talvez seja essa a explicação. Lula nunca pregou a destruição do capitalismo. Nas greves históricas que promoveu, era sobretudo um negociador de aumentos salariais. E em geral sabia até onde poderia ir em termos de reivindicações para não inviabilizar a empresa e destruir a fonte de emprego do próprio trabalhador.
Testemunhei isso. Em 1978, eu era subeditor de Economia do “Jornal do Brasil” e fui indicado pelo editor, Paulo Henrique Amorim, para coordenar as edições das greves do ABC. Na época o “Jornal do Brasil” era o principal formador de opinião brasileiro e o fato de ter aberto duas páginas diárias para as greves foi decisivo para sua repercussão em nível nacional, já que a conservadora imprensa paulista praticamente se omitiu no início delas.
Terminadas 40 dias de greves, fui a São Bernardo para conhecer pessoalmente Lula. Estive com ele um dia inteiro. Entre os relatos que me fez, lembro-me de um sobre uma fábrica de uns 400 empregados que haviam parado e o chamado para negociar o aumento. Queriam 20%. Lula negociou, e obteve o acordo. Duas semanas depois, os operários entraram em greve de novo. Queriam mais 20%. O dono da fábrica desesperou-se. Não podia dar. Lula foi à fábrica e convenceu os empregados, em assembléia, a desistir do pedido.
Esse fato singelo antecipa o que Lula foi na Presidência da República: um hábil negociador e conciliador. Ele não é e nunca foi um revolucionário que quer fazer a História dar saltos, mas um visionário que quer empurrá-la aos pouco. É a personificação da síntese entre contrários na visão dialética: é a negação da negação, a continuação da política por meio da política. Não o confundam, porém, com o estereótipo do político mineiro tradicional: o político mineiro é um protótipo do príncipe de Lampeduza, que quer mudar para que as coisas continuem como estão. Lula quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de fazer composição, arranca compromissos aos poucos, sem ruptura.
Por que, então, ele é tão odiado por uma fração das elites e das classes médias? É uma parte pequena da sociedade, mas com capacidade de vocalização. E é a clientela preferencial dos grandes jornais. Em geral, são privilegiados, e seus interesses básicos foram preservados no Governo Lula. Assim, seu ódio é de estrito fundo ideológico. É um reflexo tardio da doutrina neoliberal que, derrotada pelos fatos a partir da crise financeira iniciada em 2008, ainda não foi entendida como um fracasso retumbante no Brasil, em razão justamente da mediocridade ou da parcialidade de grande parte de nossa mídia. Diga-se, a bem da verdade, que o Ministério de Lula e de sua sucessora também guardaram e guardam resíduos neoliberais. Entretanto, a direção geral das políticas públicas tem um claro viés popular. Não é o ideal, mas o que talvez permitam as circunstâncias.
Isso se revelou sobretudo no enfrentamento da crise financeira mundial que eclodiu em 2008. Alguém deve ter dito a Lula que se tratava de uma marolinha, que o Brasil passaria ao largo dela. Entretanto, quando os fatos demonstraram o contrário, em especial em face de uma explosão no desemprego em dezembro de 2008, o Governo começou a mexer-se. E a medida a meu ver mais eficaz sequer podia ser interpretada como uma iniciativa conjuntural anticíclica. Foi o aumento real de 7% do salário mínimo, fruto de negociação anterior entre centrais sindicais e patronato sob condução de Lula.
O aumento do mínimo injetou uma soma considerável de recursos novos na economia pelo lado da demanda, o que, somado ao estabilizador automático do Bolsa Família e de outros programas sociais, parou a queda do produto e sustentou o início da retomada, estimulado também por reduções de tributos. Do lado da oferta, a principal iniciativa foi a transferência ao BNDES de R$ 100 bilhões (depois mais R$ 80 bilhões) diretamente do Tesouro, o que assegurou a sustentação e ampliação do investimento produtivo deficitário para fazer face à reativação de demanda que estava sendo estimulada. Se não foi possível evitar a queda do PIB em 2009, já no terceiro trimestre havia sinais claros da recuperação que se configuraria em 2010.
Evidentemente que haverá quem, de forma sincera, ache que Lula fez pouco. Isso suscita uma das recorrentes discussões teóricas em dialética: qual a margem de liberdade que o conflito entre interesses reais deixa para a decisão individual do líder? Sabemos que há margens de liberdade, mas sabemos também que, no processo político em andamento, o líder não sabe de antemão quais são. É justamente aí que entra sua inteligência, ou sua intuição. Depois do fato, e sobretudo depois que se sabe a reação do adversário, ou de suas conseqüências, é fácil dizer que haveria um caminho melhor. No fragor da luta, tudo depende de uma avaliação que nem sempre está no campo racional, mas sim no da intuição.
Entre o primeiro e o segundo mandato, Lula poderia ter mandado o presidente do Banco Central para casa. Era o principal empecilho a um crescimento brasileiro mais vigoroso. Talvez ele o fizesse, não fosse a eclosão do mensalão, que o deixou muito fragilizado politicamente. Poderia também ter recorrido a uma política fiscal efetivamente desenvolvimentista, forçando a redução dos juros e por aí liberando recursos fiscais para investimentos produtivos, como queria José Alencar. Não o fez, talvez temendo a reação da mídia. E isso, como dito, não é de subestimar: duas medidas importantíssimas do segundo Governo, a liberação do controle fiscal sobre os investimentos da Eletrobrás, e a capitalização da Petrobrás com reservas do pré-sal, foram recebidas com uma avalanche impressionante de críticas, não obstante sua importância vital para o desenvolvimento brasileiro.
No balanço geral, Lula fez um governo bom para todo mundo, o que se refletiu com justiça nas pesquisas de opinião. Poderia, aliás, inverter a frase: como mostram as pesquisas de opinião, Lula fez um governo bom para todo mundo. Só os obstinados radicais de oposição podem questionar isso. O que se pode tentar fazer é explicar esse fenômeno racionalmente. Talvez nem seja racional. Lembro-me que, no início da crise do mensalão, e amargando uma queda de popularidade que vinha desde antes, Lula deu a uma repórter de tevê amadora uma entrevista em Paris. Foi uma coisa patética, num ambiente patético, e com uma aparência patética. Entre outras coisas, disse que quem está no quarto andar do palácio (Planalto) não sabe o que acontece no terceiro, e que foi traído por alguns companheiros. Assisti à entrevista e fiquei perplexo. Lula parecia destruído.
A partir dali, nas semanas seguintes, a credibilidade de Lula começou a subir. Subiu até ganhar a reeleição. A única explicação é que o povo se apiedou dele, de seu isolamento, visível naquela entrevista improvisada, e se identificou ainda mais com o homem do povo que chegou ao poder e que estava sendo atacado impiedosamente pelas elites dominantes.
Critiquei muito a política econômica do Governo Lula no primeiro mandato. Não tenho muitos motivos hoje para mudar de opinião, mesmo em relação ao segundo mandato. Entretanto, como disse uma vez Alencar, “fizemos tudo errado mas deu tudo certo”. Examinando o passado e sondando o futuro, Delfim Netto disse a mesma coisa, com outras palavras: “Lula teve vento a favor, Dilma terá vento contra”. Em qualquer hipótese, a marca das políticas sociais de Lula ficará gravada para sempre na História do Brasil. Dificilmente se poderá recuar delas, sobretudo depois que ele fez sua sucessora. Isso não compensa exatamente a política econômica conservadora, mas é muito mais que simples populismo porque tem a força de criação de direitos ancorados na democracia de cidadania ampliada.
Em certo momento do primeiro mandato de Lula, estava tão indignado, como disse, com sua política econômica que encerrei um ensaio com uma paródia mais ou menos assim: “Lula, como Moisés, levou seu povo até a beira da Terra Prometida. Mas diferente de Moisés, que não entrou nela, Lula entrou sozinho”. Esse juízo se revelaria, com o tempo, um dos mais injustos que fiz em mais de 40 anos de jornalismo. Acho hoje que um pedaço do Brasil, justamente o dos mais desassistidos desde a escravatura, recebeu de Lula uma oportunidade para entrar na Terra Prometida. Afinal, o que prometeu em suas campanhas, de modo mais enfático, não foi mudar a política econômica. Foi ver dois pratos de comida, por dia, na mesa de cada brasileiro.
Por isso vejo Lula como o filho da dialética. Em escala, é um modelo reduzido, embora eloqüente, do futuro do mundo. Esse futuro não será uma volta pura e simples ao capitalismo liberal dos Estados Unidos, ainda a potência econômica dominante, nem o avanço em direção ao modelo de capitalismo sem liberdade da China, a potência emergente. Será uma superação de ambos. Algum forma política que combine liberdade empresarial e liberdade individual, e alguma forma econômica que combine estímulo ao empreendedorismo privado e maior regulação estatal.
(*) Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB.
Estado do RS prepara ação em defesa do piso nacional dos professores
Documento já vinha sendo elaborado pela assessoria jurídica do governador Tarso Genro.
A Adin foi impetrada em 2008 por cinco governadores, entre eles a ex-governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius. "Queremos mostrar aos ministros do STF que o nosso governo é favorável e fará todos os esforços para cumprir com o piso dos professores", ressalta o secretário chefe da Casa Civil, Carlos Pestana. A petição já vinha sendo elaborada pela assessoria jurídica do governador.
De acordo com o artigo 5° da lei número 9.868, depois de proposta a ação direta, não se admite desistência.
Ainda no primeiro semestre deste ano o Governo Tarso irá convocar os professores para negociar a forma de pagamento do piso. Desde a campanha eleitoral o governador vem ressaltando que a concessão do benefício é um compromisso, mas em função das dificuldades financeiras do Estado ele será pago de forma processual.
O piso nacional dos professores da educação básica foi criado pela Lei nº 11.738/2008.
http://www.jornalvs.com.br/site/noticias/ensino,canal-8,ed-149,ct-730,cd-302234.htm
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