sábado, 3 de setembro de 2011

Como entender a Rússia de hoje


Adelto Gonçalves (*)no PORTAL PRAVDA
                                                          

I
Como entender a Rússia de hoje. 15424.jpegMOSCOU - Quem tem a cabeça no século XX e ainda pensa ideologicamente nunca vai entender a Rússia de hoje. O poder hoje no país é exercido e disputado por grupos políticos que defendem interesses econômicos e não estão interessados nas velhas divisões marxistas de classe. O que esses grupos mais querem, além de acumular altos lucros, é dinamizar a economia da Rússia para afastar da população mais carente certa nostalgia dos tempos soviéticos, quando, acredita-se, o país crescia mais devido à competição com os Estados Unidos, motivada pela Guerra Fria. 
            Hoje, em Moscou, o que mais preocupa as autoridades é o futuro daquela que é a maior cidade da Europa, com mais de 10 milhões de habitantes. O prefeito de Moscou, Sergei Sobyanin, e o governador da região de Moscou, Boris Gromov, andam às voltas com planos que prevêem a construção de um distrito financeiro internacional no distrito Oeste da cidade. Um desses projetos estabelece uma expansão de 144 mil hectares de terras na periferia de Moscou nos próximos 20 anos.
            De acordo com esse plano de expansão dos limites da cidade, que está hoje nas mesas de Sobyanin e Gromov e do presidente Dimitri Medvedev, Moscou cresceria 2,4 vezes, cobrindo uma área de 251 mil hectares, em vez dos 107 mil atuais. Mas, mesmo sem o plano, a cidade já cresce a um ritmo intenso, pois onde quer que se vá vê-se prédios em construção tanto para fins residenciais como comerciais. Até porque mais e mais gente vem se instalando em áreas periféricas de Moscou, embora a maioria procure e encontre emprego no centro da cidade.
            Duas áreas estão na mira dos planejadores: o distrito de Rublyovo-Arkhangeskoye, no Oeste da cidade, o lugar favorito da nova classe média alta, e Varshavskoye Shosse e Kievskoye Shosse, no Sudoeste. São áreas menos povoadas. Mas Rublyovo-Arkhangeskoye aparece como o lugar mais viável para se tornar esse centro financeiro internacional projetado para Moscou. Segundo os planos, deverá abrigar pelo menos dois milhões de moradores e oferecer emprego para pelo menos 10% da força trabalhadora de Moscou.
            Financiar o projeto é o que mais preocupa as autoridades, mas, seja como for, boa parte do financiamento deve sair dos cofres do governo. Para tanto, pensa-se que o governo pode vender os escritórios que hoje ocupa no centro de Moscou, nos arredores da Praça Vermelha, onde está o Kremlin, com o objetivo de torná-los hotéis de três, quatro ou cinco estrelas.
            O problema é que, segundo os especialistas, Moscou dispõe da pior infraestrutura entre as grandes cidades dos países do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). De qualquer modo, a área de Rublyovo-Arkhangeskoye já oferece conexões com o centro de Moscou, embora o metrô moscovita seja muito antigo, se comparado, por exemplo, com o de São Paulo.  É barulhento e extremamente abafado nos dias de verão. Além disso, precisa passar por reformas urgentes, já que, em muitas estações, as escadas rolantes não funcionam e as sinalizações em russo transformam o turista em barata tonta. Sem contar que, em algumas estações, as catracas são bem antigas.
                                                            II
            Para se tornar uma capital turística com um centro financeiro internacional, Moscou precisa também domar a ânsia desenfreada por dinheiro de seus motoristas de táxi. Não há turista que não saia do aeroporto Domododevo com má impressão dos taxistas. Este articulista, em seu primeiro dia de Moscou, teve de pagar 500 rublos (30 reais) por uma corrida de menos de cinco minutos, que, no Brasil, não sairia por mais de 7 reais, da estação de metrô Yugo-Zapadnaya ao Hotel Astrus, na Leninskiy Prospect.
            Pior ocorreu com um casal de franceses que se perdeu de seu grupo de viagem e ficou um bom tempo no aeroporto Domododevo sem saber o que fazer. Sem nenhum contato na cidade, sem reserva em hotel e sem falar uma palavra de russo, o casal passou pela pior experiência que Moscou pode oferecer: caiu nas mãos da máfia de taxistas.
            Depois de 14 horas no aeroporto tentando obter informações, os franceses conseguiram dormir num hotel nas proximidades do Domododevo. Mas para levá-los do aeroporto ao hotel o taxista cobrou-lhes 5 mil rublos (321 reais). E, quando o francês recusou-se a pagar, teve de entrar em luta corporal com o taxista, o que lhe valeu escoriações e arranhões nos braços. A situação dos franceses só melhorou no dia seguinte quando eles conheceram, no balcão da Air Moldova, no aeroporto, o jornalista Olaf Koens, que fala francês.  Koens contou a triste história do casal francês numa crônica publicada na edição de 15-18 de julho de 2011 do The Moscow News (pág. 15).
            De qualquer modo, se os franceses soubessem falar pelo menos inglês, talvez tivessem tido melhor sorte. Tanto no aeroporto Domododevo como nas principais estações de trem de Moscou - são nove -, há postos de informação com atendentes que falam inglês. Basta dizer o destino a que se pretende ir para que a atendente informe antecipadamente o valor da viagem e chame um taxista autorizado. De preferência, deve-se pedir à atendente que escreva num papel o valor em rublos da viagem. Depois, é só exibi-lo ao taxista. É melhor tomar essa precaução porque pegar um táxi na rua é correr o risco de sofrer um constrangimento igual ao que passou o casal de franceses.
            Até porque, em função de dificuldades financeiras, há muitas pessoas que usam o próprio automóvel como táxi. E não trabalham com taxímetro, cobrando de acordo com a cara do freguês. Em dias de calor, é comum ver-se taxistas trabalhando muito à vontade: de bermudas e chinelos. Muitos, inclusive, dispensam o uso do cinto de segurança. E, ao que parece, não correm riscos de sofrer multa por isso.
                                                            III
            Olhando sob uma perspectiva macro para a Rússia pós-soviética, percebe-se que o país ainda carrega um pesado fardo histórico deixado pelo antigo regime - burocracia, corrupção e fragilidade das instituições, além de certa vulnerabilidade econômica. Além disso, há quem veja na era Putin-Medvedev um retrocesso em relação às reformas liberais empreendidas por Boris Yeltsin a partir de julho de 1991, quando o presidente assinou a lei de privatização de moradias, garantindo a propriedade àqueles que já moravam no mesmo apartamento desde os anos 70.
            De início, houve uma explosão nos preços dos imóveis e muita especulação. Máfias atuaram nesse mercado, forçando muitos moradores desfavorecidos a deixar suas casas. Mas a situação hoje parece normalizada, ainda que os prédios de apartamentos residenciais de áreas mais próximas ao centro Moscou, que foram construídos dentro de áreas verdes, mostrem-se, na maioria, em situação crítica, exibindo janelas em condições precárias. Sem contar o espetáculo um tanto deprimente dos fios que passam de um prédio para outro.
            Na época stalinista, os locais e prédios mais próximos do centro de Moscou eram os de maior prestígio e mais valorizados, mas hoje já não é assim. Casas que mais parecem pequenos castelos começaram a ser levantadas em locais mais distantes do centro, inclusive, em áreas próximas do aeroporto Domodedovo.
                                                            IV
            Hoje, quem manda na Rússia são alguns oligarcas-burocratas que se deram bem com as reformas de Yeltsin: dominam os negócios privados com o beneplácito do poder público. Há cada vez maior conexão entre a esfera dos negócios privados e a esfera política. Em outras palavras: há uma interpenetração cada vez mais intensa entre o capital e o Estado. Aqueles que usufruem desses negócios, geralmente, são os proprietários dos carrões modernos que se vêem estacionados nas avenidas do centro de Moscou. O partido Rússia Unida (Yedinaya Rossiya), que domina o Parlamento, tem apoiado algumas intervenções do Estado sobre a economia.
            O que se discute hoje nas ruas é a iniciativa do primeiro-ministro Vladimir Putin, que foi presidente de 2000 a 2008, de articular a formação de um bloco de livre comércio entre Rússia, Belarus e Cazaquistão, que muitos já começam a chamar de "mini-União Soviética". Desde o dia 1º de julho, já não há maiores exigências alfandegárias nas fronteiras entre esses países: os cidadãos ainda têm de exibir seus passaportes, mas já não pagam taxas aduaneiras para passar com mercadorias.
            Desde janeiro, trabalhadores e empresas de serviços podem atuar indiferentemente nos três países. Mas no Cazaquistão e em Belarus já surgiram protestos contra essa zona de livre comércio: os preços da gasolina são diferentes nos três países e começou a haver uma entrada excessiva de carros de segunda mão.
            Há planos para a formação de uma União Econômica Euroasiática, que poderia começar a funcionar no início de 2013.  Seria, na verdade, uma restauração do antigo espaço soviético, mas dentro de moldes capitalistas. Não está em discussão a restauração da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), mas maior inter-relação entre as nações do antigo bloco.
            O Cazaquistão, por exemplo, dispõe de três milhões de metros cúbicos de reservas de gás, a que a Rússia poderia ter maior acesso, desde que desse uma contrapartida, permitindo que os empresários daquele país colocassem seus produtos no seu mercado interno. Como o país tem crescido nos últimos anos, a popularidade de Putin continua em alta e não será difícil que venha a suceder Medvedev na presidência. Nesse caso, a formação desse bloco estaria assegurada.
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br

luta antidrogas visa grupos sociais específicos

Do portal GRANMA INTERNACIONAL
Tradução COLETIVO DAR

A raiz do “problema das drogas” está nos Estados Unidos e não no México, e as estratégias de ambos os países não podem resolver o problema, afirmou o linguista estadunidense Noam Chomsky.

Em entrevista à revista cibernética Guernica, dos EUA, o pensador declarou: “O problema das drogas está nos EUA, não no México. É um problema de demanda e precisa ser tratado aqui, mas isso não é feito. Provou-se uma e outra vez que a prevenção e o tratamento são muito mais efetivos do que a ação policial, as operações fora do país, o controle fronteiriço e muito mais. Mas o dinheiro vai em outra direção e nunca tem impacto. Quando os líderes aplicam durante décadas políticas que não têm consequências para os fins indicados e são muito caras, é preciso saber se eles estão dizendo a verdade e se essas políticas são para outro alvo, porque elas não reduzem o uso de drogas”.

Chomsky questiona por que são aplicadas essas políticas ineficazes e dispendiosas embora se saiba que há outras mais eficazes e mais baratas. “Há apenas duas respostas possíveis: ou todos os líderes são coletivamente insanos, o que podemos descartar, ou simplesmente temos que buscar outros objetivos. No exterior é uma campanha de contra-insurgência, em casa, uma maneira de se livrar de uma população supérflua, há uma correlação muito estreita de raça e classe, não perfeita, mas quase: na verdade, os homens negros estão sendo jogados fora. Na Colômbia, chamam de limpeza social. Aqui nós simplesmente dizemos que é colocá-los na prisão”.

Ele disse que o aumento maciço do encarceramento, especialmente entre os afroamericanos e latinos, é devido à chamada guerra contra as drogas na América, mas tem raízes em uma longa história de controle e escravização, tanto formal como através do sistema de justiça criminal contra os negros.

Enfatizou também que as conseqüências dessas políticas “são significativas para os centros de poder: empreender operações de contra-insurgência na Colômbia e em outros lugares, e limpeza social aqui, na tradicional maneira estadunidense. Está tudo muito claro”.

Os líderes sabem como proceder

Chomsky acredita que a outra parte do problema são as armas. “Onde os cartéis de drogas conseguem suas armas? Elas são fornecidas pelos Estados Unidos. Se você cortar o fluxo de armas não iria acabar com a violência, mas teria um grande efeito. Se os cartéis no México querem rifles de assalto, buscam no Arizona”.

Questionado sobre as opções disponíveis para o governo do México enfrentar a violência e se seria justificável a suspensão de garantias para restaurar a ordem em áreas como Ciudad Juarez, Chomsky disse: “Primeiro é preciso perguntar o que o governo do México está tentando fazer, e que é um pouco opaco. Parece que em algum grau apoiaum dos cartéis contra os outros. Se é isso que está tentando fazer, não há justificativa”.

“Mas se você quer parar o negócio da droga, acho que se sabe como proceder, e não é com ação militar: você tem que ir ao cerne da questão. Parte da resposta foi dada na declaração dos ex-presidentes (Ernesto) Zedillo, (Fernando Henrique) Cardoso e (Cesar) Gaviria: alguns anos atrás, apresentaram um relatório que propunha que a criminalização das drogas só aumentou o problema e que algunmas devem ser legalizadas, como o álcool, e regulamentadas. Isso é parte do assunto, mas a questão de fundo está aqui nos Estados Unidos”.

Na entrevista, Chomsky disse que se reuniu com repórteres e editores de La jornada, com quem discutiu, entre outras coisas, o perigo enfrentado pelos jornalistas ao tentarem abranger a questão do tráfico de drogas e a inevitável auto-censura. Ele explicou que falaram sobre relatórios que abordam o problema e inclusive sobre a grande quantidade de negócios no México que estão de alguma forma envolvidos com o tráfico de drogas. “Quando alguém publica coisas assim e as investiga, está ameaçando os centros de poder na sociedade mexicana, que não desejam ser expostos. Se podem usar pistoleiros para pará-lo, eles o farão”.

Ele disse que há cada vez mais áreas no norte do México protegidas por criminosos e forças de segurança, e que áreas antes dedicadas à agricultura são hoje parte do negócio ilegal. Destacou ainda um relatório de La Jornada revelou que os economistas dz Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) estimam que a renda real dos trabalhadores caiu drasticamente como resultado das políticas econômicas do governo de Felipe Calderón. Por isso, “o México tem opções limitadas”, no que tange ao problema das drogas, “já que o chefão da máfia está aqui, do outro lado”.

Chomskyu considera que o problema está ligado a uma série de políticas em ambos os países e que, nos Estados Unidos, nos últimos 30 anos, a promoção do setor financeiro da economia e a destruição do sistema produtivo fizeram com que os rendimentos reais estagnassem para a maioria da população. “Tem o mesmo efeito que o neoliberalismo no México, de forma menos aguda, mas similar.”

Isso tende a confirmar que, da mesma forma que acontece com as políticas de drogas, “os governos não servem aos seus cidadãos; trabalham para suas estruturas”, que são principalmente formadas por membros do setor financeiro.
 
Livres Mercados e trabalho livre

Perguntado se de alguma maneira se opunha à ideia de um país soberano como os Estados Unidos para tomar as medidas necessárias para deter e deportar imigrantes ilegais, Chomsky disse: “É uma questão interessante essa nos EUA, onde todos são imigrantes ilegais, exceto aqueles que vivem em reservas indígenas.” Ele disse que tudo depende do que você está falando. “Se alguém se diz ‘campeão do livre mercado’, então deve estar a favor da livre circulação dos trabalhadores. Segundo Adam Smith, não se pode ter livre mercado sem isso”.

A defesa irrestrita da educação pública



Hoje, a educação pública argentina é paradigmática na América Latina. Em 2004, o ex-presidente Néstor Kirchner definiu que a educação pública não era um gasto, mas sim “um instrumento transformador”. Esta decisão política foi fundamental para priorizar a possibilidade de igualdade e oportunidade para todos e um acesso a uma educação de qualidade. A partir daquele momento, o Estado argentino passou a realizar significativos investimentos na área, passando de 3% do PIB, em 2003, para 6%, hoje. Deste total, 1% é destinado às universidades.

“A educação pública deve ser defendida”, assinala enfática a doutora Olga Ciencia, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, enquanto observa pela televisão a gigantesca marcha convocada por estudantes chilenas, motivada pela crise estrutural na educação chilena.

Os estudantes argentinos entendem de mobilizações em defesa da educação. No ano passado, um “estudiantazo” de secundaristas e universitários paralisou suas atividades por três meses. O protesto foi contra a má gestão do setor e a demora nos trabalhos de melhoria da infraestrutura de algumas escolas. Finalmente, o governo de Buenos Aires cedeu ante as demandas dos estudantes.

Para Ignacio Kostzer, presidente da Federação de Estudantes da Universidade de Buenos Aires (FUBA), no último período, a Argentina conseguiu resistir em melhores condições ao avanço neoliberal privatizador e mercantil sobre o sistema educacional. Ele sabe, porém, que a batalha não está ganha e que o sistema educacional não está isento às pressões do mercado. Mas indiscutivelmente não sofreu a derrota ideológica e cultural que sofreram os estudantes chilenos.

“O movimento popular argentino, dentro do qual se destaca especialmente o movimento estudantil, teve a capacidade de resistir mesmo nas piores condições às investidas privatizadoras contra a educação. Seja em relação às tentativas explícitas de privatizar, como ocorreu com as universidades nos anos 90, por meio das políticas de Carlos Menem e Fernando de la Rúa, seja quanto às formas relativamente “indiretas” de avançar na direção da lógica de mercado, como ocorre hoje. A defesa da gratuidade e do acesso universal tem sido reivindicações prioritárias do movimento popular na Argentina”, sustenta.

Afirma ainda que o nível de publicidade ou de elitismo do sistema educacional reflete necessariamente uma correlação de forças políticas e sociais em luta. É no terreno político onde se resolve a disputa entre os que entendem a educação como um negócio (um dos que mais movimenta dinheiro no mundo) e os que a concebem como um direito humano básico e universal. Essa disputa está presente tanto na Argentina como no Chile, ainda que estas sejam, sem dúvida, duas realidades qualitativamente distintas.

Hoje, a educação pública argentina é paradigmática na América Latina. Assegura a todos os habitantes do país – e, nos últimos anos, a uma quantidade importante de estudantes latino-americanos – o exercício efetivo de seu direito a aprender, mediante a igualdade de oportunidades e possibilidades, sem discriminação alguma. Todos os organismos correspondentes garantem o princípio da gratuidade nos serviços públicos, em todos os níveis e regimes especiais, mediante identificação nos respectivos orçamentos educacionais, e um sistema de uniformes para alunos(as) em condições socioeconômicas desfavoráveis.

Em 2004, o ex-presidente Néstor Kirchner definiu que a educação pública não era um gasto, mas sim “um instrumento transformador”. Esta decisão política foi fundamental para priorizar a possibilidade de igualdade e oportunidade para todos e um acesso a uma educação de qualidade.

A partir daquele momento, o Estado argentino passou a realizar significativos investimentos na área, passando de 3% do PIB, em 2003, para 6%. Deste total, 1% é destinado às universidades. Segundo anunciou a presidenta Cristina Fernández, o objetivo é subir para 6,49% em 2012.

Os estudantes argentinos sabem que esta luta é também latino-americana. A FUBA esteve presente e apoiou a mobilização estudantil chilena. Entendem que, em todo o continente, a defesa da Educação pública, gratuita e de qualidade constitui um ponto central para qualquer programa de espírito transformador, democrático e emancipatório.

Ignazio Kostzer sustenta que o continente tem uma história muito em rica em experiências de educação popular e alternativa. De Simón Rodríguez a Paulo Freire, passando pelos programas de alfabetização da revolução cubana, etc. “A América Latina tem muito para contrapor ao sistema educacional liberal hegemônico. Entendendo que o processo educacional não é formado por alunos ignorantes que recebem a luz do conhecimento pelo professor, mas que há também valores em jogo neste processo dialógico entre pessoas, apontamos na direção da construção de uma educação que ensine a aprender, que ensine a exercer a dignidade e a democracia, a solidariedade e a soberania popular.

“Sabemos bem que as reformas educacionais estão sempre ligadas às reformas sociais mais gerais. Não há educação para a mudança social isolada dos processos político emancipatórios. É por isso que entendemos que parte da defesa da educação pública na América Latina, tem a ver com o desenvolvimento e a consolidação dos processos de mudança de nosso continente. Justiça e igualdade para todos os povos de nossa Pátria Grande”.

Tradução: Katarina Peixoto

A grande oportunidade perdida

  Mário Maestri no CORREIO DA CIDADANIA   


Em fins de 1959, o candidato paulista conservador Jânio Quadros venceu as eleições presidenciais, com 48% dos sufrágios, apoiado na imagem demagógica de batalhador contra a corrupção e a ineficiência administrativa. Seu apoliticismo moralizador expressava-se na "vassoura" que varreria a corrupção, como símbolo, e na consigna da campanha "Jânio vem aí", que nada dizia.

O projeto político de Jânio Quadros era liberal: controle ortodoxo da inflação, abertura ao capital mundial, repressão ao sindicalismo. Para se aproximar do eleitor nacionalista e popular, não defendeu a internacionalização da Petrobrás e propôs política externa independente.

O marechal Lott, candidato da aliança PDS-PTB, nacionalista e progressista, sem charme e experiência política, foi facilmente derrotado. Porém, o eleitorado que consagrou Jânio, designou a trabalhista João Goulart, vice na chapa de Lott, para vice-presidente, como permitia a legislação.

Jânio Quadros empossou ministério conservador apoiado na UDN e empreendeu a estabilização ortodoxa exigido pelo FMI – forte desvalorização da moeda; abertura ao capital estrangeiro; redução dos subsídios da gasolina, pão etc.; congelamento de salários e crédito. O FMI suspendeu o bloqueio em que mantivera o final do governo JK para que pagasse a dívida com o capital internacional.

Jânio Quadros reduziu as promessas de modernização administrativa e combate à corrupção a infinidade de instruções anódinas, através dos "bilhetes" presidenciais, e a inquéritos midiatizados, de poucos resultados, contra o PDS e PTB derrotados e João Goulart, seu substituto constitucional. Também para contrabalançar o conservadorismo interno, propôs política externa equilibrada entre os USA, Europa e o Bloco Soviético. Visitara a Cuba revolucionária e o Egito nacionalista e propunha reatar relações com a URSS e a China.

Ninguém me quer!

Jânio Quadros viu seu apoio esvaziar-se entre os empresários nacionais, sem créditos; entre os trabalhadores e a população, pelo arrocho salarial e inflação; entre os militares, pela política terceiro-mundista; entre o PDS e PDT, pela faxina unilateral; na sua base de apoio, UDN, por seu voluntarismo. Em julho, Carlos Lacerda, da UDN, iniciou campanha anti-janista, atacando a condecoração de Che Guevara. Em 24 de agosto, denunciou pela rádio convite do ministro da Justiça de Jânio para que participasse de golpe, de corte gaullista

No dia seguinte, 25 de agosto, aniversário do suicídio de Vargas, pela manhã, Jânio Quadros entregou carta de renúncia aos ministros militares, denunciando “forças ocultas” que exigiriam poderes extraordinários. Esperava retornar à presidência, com poderes excepcionais, apoiado nas forças armadas, no bojo de explosão de indignação popular, ao igual à que varrera o país quando da morte de Getúlio Vargas. O destinatário da renúncia era o ministro da Guerra, Odílio Denys, anti-trabalhista e pró-estadunidense. Jânio Quadros confiava que vetaria a posse de Jango, em viagem oficial à China comunista.

Nos oito meses de governo, Jânio Quadros fora personagem imprevisível, inábil, depressivo, dado a bebedeiras. Sua orientação terceiro-mundista e a recente abertura ao desenvolvimentismo levaram a que os generais e a UDN desconfiassem das suas intenções e capacidades pessoais.

Os militares não chamaram o presidente de volta a Brasília. Entregaram a carta de renúncia ao presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, junto ao veto militar à posse do vice-presidente. Às 15 horas do dia 25 de agosto, a declaração de renúncia foi lida diante de alguns poucos e perplexos congressistas e, a seguir, Mazzilli assumiu a chefia formal da República, e os três ministros militares apossaram-se do poder. Era o golpe em marcha, com arremedo de respeito à constitucionalidade.

Jânio Quadros viajou para São Paulo, seu reduto eleitoral, onde pode dimensionar sua abismal inabilidade e falta de apoio social sólido. Fora rejeitado pelos generais e pela população, que não deu um passo em sua direção. Retornaria mais tarde à vida política paulista, sem poder justificar sua ação, sem desvelar o projeto golpista. Sintetizaria a renúncia em frase célebre pela impertinência política e gramatical: "Fi-lo porque qui-lo".

A resposta inesperada

Com o veto ao vice-presidente João Goulart, os altos chefes militares procuraram abrir caminho para governo conservador, autoritário e mais confiável, sem Jânio Quadros, promovendo a liquidação definitiva do populismo nacional-desenvolvimentista. A tentativa golpista – apoiada pelo imperialismo e pelas classes proprietárias, sob a direção da grande burguesia industrial – foi vergada devido à mobilização popular e militar do Rio Grande do Sul, que se espraiou para o Brasil, ensejada pela oposição do jovem governador do Rio Grande do Sul.

Imediatamente após o pronunciamento militar, desde estúdio improvisado nos porões do palácio Piratini, Leonel Brizola organizou rede radiofônica – Cadeia da Legalidade –, que cobriu, primeiro, o Sul e, a seguir, parte do Brasil, conclamando a população à resistência armada em defesa da Constituição, se preciso fosse. Tropas da Brigada Militar entrincheiraram-se nas cercanias do palácio Piratini e metralhadoras anti-aéreas foram colocadas nos terraços dos edifícios que cercavam a casa do governo, à espera do ataque do Exército e da Aeronáutica.

No contexto da crescente mobilização popular, a ordem do comando da Aeronáutica de que caças bombardeassem o palácio Piratini foi impedida devido ao controle da Base Aérea de Canoas por sargentos e oficiais constitucionalistas, nacionalistas e de esquerda. O ataque do palácio Piratini por tanques M-3 da II Companhia Mecanizada da Serraria não prosperou devido à decisão da Brigada Militar de resistir ao ataque e à oposição de boa parte da sub-oficialidade daquela arma. Quebrando a disciplina golpista, sob a direção sobretudo de sub-oficiais nacionalistas, parte da tropa das forças armadas colocava-se ao lado da Constituição, da população e dos trabalhadores.

Armas para o povo

Nos dias seguintes, em Porto Alegre, mais de trinta mil populares arrolaram-se como voluntários para os combates e revólveres foram distribuídos à população. A adesão ao constitucionalismo dos generais Pery Bevilaqua, comandante da III Divisão de Infantaria, de Santa Maria, e Oromar Osório, da I Divisão de Cavalaria, de Santiago, determinou o pronunciamento do vacilante comandante do III Exército, no dia 28 de agosto, em favor da Constituição. Tropas da Brigada e do Exército organizaram a defesa das fronteiras do Rio Grande, enquanto a agitação constitucionalista de Leonel Brizola espalhava-se pelo Brasil, fazendo o golpismo militar e civil retroceder, cada vez mais frágil e confuso. Coluna militar partiu do Rio Grande, em caminhões e trens, e entrou em Santa Catarina, em direção ao Paraná.

Em 3 de setembro, o vice-presidente João Goulart desembarcou em Porto Alegre, chegado de Montevidéu, de volta ao Brasil, de onde seguiu para o Rio de Janeiro, para assumir, em 7 de setembro, a presidencial vacante, com os poderes restringidos devido à instauração do parlamentarismo pelo Congresso Nacional, que se colocara, em forma majoritária, ao lado do golpismo.

Brizola opôs-se inutilmente à solução parlamentarista aceita por João Goulart, que significava recuo diante das forças golpistas acurraladas pela crescente mobilização popular e fratura das forças armadas. O governador sulino propunha respeito à Constituição e, portanto, novas eleições, após a destituição dos ministros militares e dissolução do Congresso comprometido com o golpismo. Esperava confiante uma vitória popular maciça nas urnas.

A aceitação da solução parlamentarista por Goulart interrompeu o confronto político e social, quando o golpismo retrocedia. Em 1961, há cinqüenta anos, a leniência de João Goulart e dos segmentos sociais que representava desmobilizaram a população e abriram caminho à vitória do golpe de 1964.

No poder durante vinte anos, em nome sobretudo do grande capital industrial, os militares imporiam à população perda de conquistas históricas e reformatação das instituições do país que mantém suas seqüelas fundamentais até hoje.

Mário Maestri é professor do curso e do programa de pós-graduação em História da UPF.
E-mail: maestri(0)via-rs.net

Galeano faz 71 anos enquanto as veias permanecem abertas há 40, ou muito mais


Milton Ribeiro no Sul21

"Lamento que As Veias Abertas ainda não tenha perdido a atualidade".

No dia 18 de abril de 2009, o presidente Hugo Chávez presenteou seu colega americano, Barack Obama, com o livro As Veias Abertas da América Latina, clássico ensaio do escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano. O exemplar estaria autografado pelo autor. O livro fala basicamente sobre o saque dos recursos naturais sofrido pelo continente latino-americano do século XV até o fim do século XX e é citado frequentemente por Chávez. Tendo iniciado o dia 18 na 54.295ª posição entre os livros mais vendidos da megavendedora de livros Amazon, o livro amanheceu o dia 19 em 2º lugar. Atualmente, a avaliação dos leitores da Amazon demonstra uma curiosidade. Dos163 leitores que escreveram resenhas a respeito da obra, 86 dão-lhe nota 5, a máxima, enquanto 50 dão-lhe a nota mínima, 1. Dos 163, somente 27 não lhe dão as notas extremas.
Tais avaliações não chegam a ser surpreendentes. Afinal, As Veias Abertas não parece prestar-se a opiniões desapaixonadas. A direita costuma chamá-lo de um “anacrônico clássico da literatura esquerdista do continente”, o qual questiona o imperialismo americano e europeu na região. Já a esquerda:
Depois do golpe de 1973 não pude levar muita coisa comigo: algumas roupas, fotos da família, um saquinho com barro do meu jardim e dois livros: uma velha edição de Odes, de Pablo Neruda, e o livro de capa amarela, As Veias Abertas da América Latina.
Isabel Allende, no prefácio da edição chilena
Neste sábado (3), Galeano completa 71 anos, enquanto que sua principal obra — escrita anos antes, mas publicada em 1971 — completa 40.
Escritor foi um dos responsáveis pela fundação de três jornais: Marcha, Crisis e Brecha.

Eduardo Galeano nasceu em Montevidéu em 3 de setembro de 1940. Começou sua carreira de jornalista no início dos anos 60, como editor do “Marcha”, um influente jornal semanal que tinha como colaboradores Mario Benedetti, Mario Vargas Llosa, Manuel Maldonado e Denis Fernández Retamar.
Durante o golpe de 27 de junho de 1973, Galeano foi preso e forçado a deixar o Uruguai. Foi para a Argentina, onde fundou a revista cultural “Crisis”. Em 1976, após seu livro As Veias Abertas da América Latina ser censurado pelos governos militares do Uruguai, Argentina e Chile, teve seu nome colocado na lista dos esquadrões da morte de Videla e, temendo por sua vida, exilou-se na Espanha, onde deu início à trilogia Memória do Fogo.
No início de 1985, retornou a Montevidéu. Em outubro do mesmo ano, juntamente com Mario Benedetti, Hugo Alfaro e outros jornalistas e escritores que haviam pertencido ao semanário “Marcha”, fundou o semanário “Brecha”, no qual segue até hoje como membro do Conselho Consultivo. Em 2010, a Brecha instituiu o prêmio Memória do Fogo, entregue anualmente a um artista a cujos talentos se somem a luta pelos direitos humanos e sociais. O primeiro vencedor foi o cantor espanhol Joan Manuel Serrat, que o recebeu a 16 de dezembro de 2010 no Teatro Solís em Montevidéu.
Em 2007, recuperou-se satisfatoriamente de uma operação de câncer de pulmão.
Escritos que combinam ficção, jornalismo, análise política e história.

Galeano tem mais de 30 livros publicados e, se pudéssemos caracterizá-los através de uma frase, talvez desta devesse constar o convite que o autor nos faz para olhar simultaneamente o passado e o futuro. Suas obras também buscam estabelecer uma frente comum contra a miséria moral e material do continente. Há um risco demagógico e piegas neste tipo de proposta, mas Galeano salva-se disto com um texto limpo e objetivo, às vezes duro. Com o tempo, amenizou seu estilo, chegando com naturalidade à prosa poética e mesmo à poesia. Seu projeto de refletir o drama da América Latina é abertamente de esquerda e, ao longo dos anos, o autor manteve um compromisso contínuo com suas ideias, rejeitando uma existência sem utopias.
Seus escritos combinam ficção, jornalismo, análise política e história. Ao lado de As Veias Abertas da América Latina, talvez seus livros mais importantes sejam a trilogia Memória do Fogo, dividida em Os Nascimentos (1982), As Caras e a Máscaras (1984) e O Século do Vento (1986). Trata-se de uma ousada e inclassificável mistura de gêneros unidas por onipresente espírito crítico. Os personagens são generais, artistas, revolucionários e operários, os quais são retratados em pequenos episódios que começam nos mitos dos povos pré-colombianos chegando até a década de 80 do século XX.
 
Como fã de futebol e hincha do Nacional de Montevidéu, Galeano escreveu O futebol ao sol e à sombra (1995), onde revisa a história do esporte. Sua paixão pelo jogo supera a paixão por uma camisa. O autor traça comparações com o teatro e a guerra, critica a presença das grandes corporações, de um lado, e, por outro, ataca sem tréguas os intelectuais de esquerda que rejeitam o jogo por motivos ideológicos. O formato escolhido é o da crônica, mas uma crônica de poesia derramada de paixão pelo futebol. “Aos descendentes dos rituais astecas, aos filhos do tango, do samba e da capoeira, da sombra da miséria e do sol dos sonhos de glória”: é a estes, a sua tradição de virtuosismo e a seus cultores, em todo o mundo e ao longo dos tempos, que o autor presta homenagem. Mas…
Como todos os meninos uruguaios, eu também quis ser jogador de futebol. Jogava muito bem, era uma maravilha, mas só de noite, enquanto dormia: de dia era o pior perna-de-pau que já passou pelos campos do meu país.
(…)
Os anos se passaram, e com o tempo acabei assumindo minha identidade: não passo de um mendigo do bom futebol. Ando pelo mundo de chapéu na mão, e nos estádios suplico:
– Uma linda jogada, pelo amor de Deus!
E quando acontece o bom futebol, agradeço o milagre — sem me importar com o clube ou o país que o oferece.
A nova tradução, por Sergio Faraco

No ano passado, a L&PM lançou uma nova tradução de As Veias Abertas da América Latina. O tradutor, a pedido do próprio autor, foi Sergio Faraco. “Fiz a tradução a pedido de Galeano e acompanhado por ele. Enviava diariamente e-mails com minhas dúvidas, os quais eram respondidos imediatamente. Demorei 3 meses para terminar as quase 400 páginas. A maior dificuldade não foi o texto original, foi a comparação com a outra tradução brasileira, de Galeno de Freitas, muito boa, feita em 1971. Era inevitável, acho que tudo ficou muito parecido”, conta Faraco.
Galeano elogiou a nova tradução, que teria ficado superior ao original em espanhol. “Minha obra hoje soa melhor em português”, disse, referindo-se ao fato de ter não apenas Faraco como tradutor de sua obra, mas também Eric Nepomuceno. Só aqui no Brasil já saíram 52 edições do livro. Faraco completa: “As Veias Abertas é um ensaio com altíssimo grau de informação. É inacreditável que ele tenha feito aquela imensa pesquisa histórica e escrito o livro na idade de aproximadamente 30 anos. O livro retrata uma realidade vergonhosa de surpreendente atualidade em nossos dias, pois nossa miséria e dependência permanecem. É curioso que alguns chamam o livro de anacrônico. Apesar de ter sido escrito há 40 anos, ele não tem nada de anacrônico, até porque revela de forma brilhante uma realidade incontestável – a realidade histórica”.
O professor do Instituto de Biociências da UFRGS, Paulo Brack, em entrevista à Rádio da UFRGS, rebate enfaticamente as acusações de anacronismo. “Vejam, por exemplo, a questão de Belo Monte. Ela confrontou o Brasil e a Comissão de Direitos Humanos da OEA, que questionou o tratamento que o governo brasileiro está dando ao problema. Também a aprovação do novo Código Florestal na Câmara demonstra a vitória de um sistema que há séculos está enraizado no país. O Código Florestal anterior era uma das legislações mais avançadas do mundo. Agora foi alterada em favor do agronegócio, cujo sistema de produção teve origem nos grandes latifúndios. Ou seja, muita coisa que Galeano fala em seu livro está ainda atual. Apenas mudou a cara de quem faz. Antes, havia a presença militar, agora não mais”.
A América latina parece ter-se especializado em prover o desenvolvimento das economias europeia e norte-americana.

Em As Veias Abertas, Galeano apresenta uma análise histórica sobre formação da América Latina desde sua ocupação pelos europeus até os dias de hoje, fundando sua crítica na espoliação econômica, na dilapidação dos recursos naturais do continente e na dominação política, primeiro pela Europa e depois pelos Estados Unidos. A professora de Geografia Ilana Freitas faz uma curiosa constatação. “Durante a ditadura, As Veias Abertas era muito usado por professores de segundo grau de História e Geografia. Eram pessoas que, de forma muito corajosa, preocupavam-se em marcar uma posição de esquerda ou de crítica à ditadura”.
Lamento que este livro ainda não tenha perdido a atualidade.
Eduardo Galeano
Sem ser hostil, o jornalista e escritor Juremir Machado da Silva, também em entrevista à Rádio da UFRGS, faz ressalvas ao livro. “Galeano defendia que o fim da dependência da América Latina deveria ser baseado na implantação de modos modos de produção. O livro indica que a solução para a dependência latino-americana seria o socialismo. Este aspecto implícito ou explícito do livro, caducou”. Porém, Juremir concorda com Galeano no cerne: “É claro que o Brasil é um vendedor de commodities. Ou seja, vende matéria-prima barata e compra de volta o produto pronto daqueles países que agregam valor a eles. Vende para recomprar a preço maior o produto beneficiado. É uma questão não só de tecnologia, de capital, mas de mentalidade. Hoje, nada nos impede de mudar esta situação, só o fato de existir uma elite que está satisfeita como vendedora de commodities e que não deseja outro tipo de organização sócio-econômica”.
“A divisão internacional do trabalho consiste em que uns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: se especializou em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se lançaram através do mar e cravaram-lhe os dentes na garganta. Passaram-se os séculos e a América Latina aperfeiçoou suas funções. Ela já não é o reino das maravilhas em que a realidade superava a fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus da conquista, as jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região segue trabalhando como serviçal, continua existindo para satisfazer as necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, cobre e carne, frutas e café, matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que, consumindo-os, ganham muito mais do que a América Latina ganha ao produzi-los.”
Parágrafo de abertura de As Veias Abertas da Amérca Latina
Quando nos vamos, eles se vão?

Atualmente, passados 40 anos, talvez a crítica que se possa fazer a Galeano seja a do tom indignado da narrativa, porém isto não anula ou diminui os fatos descritos e não retifica a história, pois é difícil negar que as colônias e nações latino-americanas têm sido, desde o início do século XVI, especialistas em prover o desenvolvimento das economias europeia e norte-americana, com seu consequente fortalecimento político.
Seu último livro Espelhos (2008) consiste em quase 600 histórias breves que, segundo Galeano, proporcionam ao leitor “viajar através de todos os mapas de todos os tempos, sem limites”.
Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos nos lembram.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, eles se vão?
Este livro foi escrito para que não partam.
Nestas páginas unem-se o passado e o presente.
Renascem os mortos, os anônimos têm nome:
os homens que ergueram os palácios e os templos de seus amos;
as mulheres, ignoradas por aqueles que ignoram o que temem;
o sul e o oriente do mundo, desprezados por aqueles que
desprezam o que ignoram;
os muitos mundos que o mundo contém e esconde;
os pensadores e os que sentem;
os curiosos, condenados por perguntar, e os rebeldes e
os perdedores e os lindos loucos que foram e são o
sal da terra.