O grande empresariado se diverte ao financiar campanhas dos mesmos políticos que serão seus fiéis servidores e que sempre acusarão de preguiçosos e corruptos
A democracia liberal de massas é bem mais jovem do que o capitalismo.
Até a virada do século XVIII para o XIX, a maioria dos que se dedicavam à
política, bem como dos que refletiam sobre ela, era liberal e
visceralmente antidemocrática. Já os que defendiam a democracia
consideravam-na incompatível com uma sociedade dividida em classes. E os
terrenos adequados ao poder do povo eram a sociedade sem classes ou,
então, para usar a expressão de Crawford B. Macpherson, uma "sociedade
de classe única", ou seja, de pequenos proprietários. Pode-se sintetizar
essa última posição com a célebre passagem de Rousseau, em O contrato social:
uma sociedade onde ninguém seja tão rico para poder comprar alguém, nem
tão pobre que seja obrigado a se vender. Trocando em miúdos, uma
sociedade de pequenos proprietários (granjeiros, comerciantes,
artesãos), sem a conhecida desigualdade entre os ricaços e os que pouco
ou nada têm.
No interior dessa polaridade, não é de se estranhar a aversão - ou
mesmo o temor - dos liberais ao sufrágio universal. Já durante a
Revolução Francesa, os moderados admitiam a generalização dos direitos
civis, mas consideravam que ampliar os direitos políticos a todos os
homens (as mulheres ficavam de fora) não era razoável. O maior medo era
de que a maioria abolisse, por meio do voto, a propriedade privada.
Monstrengo inesperado
Duras lutas levaram ao parto do monstrengo inesperado: a mistura de democracia com sociedade de classes.
Vários fatores contribuíram para esse processo de constituição da
democracia liberal de massas. Do ponto de vista dos dominantes, foi
decisiva a descoberta de que um aparelho estatal fortemente
burocratizado, até porque protegido das intempéries eleitorais, estaria
apto a recorrer à violência para "manter a ordem" (leia-se a propriedade
privada dos meios de produção ou, como atualmente juram os principais
candidatos, "o respeito aos contratos"). Outra descoberta fascinante: as
próprias eleições poderiam se integrar ao, aparentemente inesgotável,
repertório ideológico de que o capitalismo dispõe para se legitimar
junto aos dominados.
Agora, sim: com o núcleo do aparelho estatal garantindo a ordem, ou
seja, "fora disso", porque voltado para o interesse público e dotado dos
recursos de violência necessários para defendê-lo; e as eleições
girando em torno da disputa sobre quem melhor gerencia os conflitos no
interior da "ordem", mesmo que simulando contestá-la, os dominantes
poderiam ir à luta pelo voto dos dominados, sem os quais, enquanto
minoria, não poderiam se eleger para também cuidar da "coisa pública",
inclusive, a boa elaboração das leis.
Político sagaz e sem papas na língua, o truculento Bismarck
sentenciou que, se o povo soubesse de que eram feitas as leis e as
salsichas, não dormiria tranquilo. De outro ponto de vista, Eric
Hobsbawm, o grande historiador da sociedade burguesa, observou que a era
da democratização é gêmea da hipocrisia política em larga escala.
Como se vê, não é fácil definir corrupção política.
Se a considerarmos como apropriação indébita da coisa pública por
interesses privados, os problemas, ao invés de resolvidos, mal começam.
Até pela difícil distinção entre público e privado no capitalismo. Pois,
apesar de todo o imenso e criativo esforço intelectual despendido,
resta a dura realidade de que os interesses fundamentais dos dominantes
são consagrados, inclusive no plano jurídico, como públicos no mesmo
processo em que os interesses dos dominados são constituídos como
particulares.
No interior dessa moldura estrutural, existem, por exemplo, mil e um
modos de arrancar recursos do BNDES para estimular o agronegócio. Nem
vamos perder tempo com o que sobra para a caminhonete do ano, o
consumismo afetado, tipo assim. Ainda restam a superexploração de homens
e mulheres (crianças e adultos), a degradação ambiental, as boas
relações com os centros decisórios. Foram até chamados de heróis pelo
presidente da República (da coisa pública). Pois, graças ao seu
empreendedorismo, a balança comercial segura as pontas de uma política
econômica que remunera, com juros elevadíssimos, uma casta de
sanguessugas planetários. E pobres de nós que precisamos desses heróis.
Quando a grana (deles) encurta, empreendem uma série de ações,
inclusive entupindo rodovias (coisa pública) com "seus" tratores, fazem lobbies em
dezenas de agências governamentais, mobilizam sua bancada parlamentar e
terminam por conseguir alongamento das dívidas. E mais empréstimos.
Sempre, é claro, em nome do interesse maior, em nome da coisa pública.
Compare essa situação corriqueira com o tratamento que os grandes
meios de comunicação dispensaram a um grupo de sem-terras que ocupou uma
área explorada pela Cutrale, o maior conglomerado sucroalcooleiro do
mundo: foram chamados de invasores, inimigos do país, destruidores do
meio ambiente, em suma, criminalizados sob todas as formas. Tive a
oportunidade de participar de um debate na Globo News e ouvir do
presidente da Sociedade Ruralista Brasileira (uma pessoa muito
agradável), que a ação dos sem-terra foi "guerrilheira"; de um
procurador do ministério público, que o MST recebia, de modo indevido,
verbas estatais e que a privatização da Vale foi um grande bem para o
Brasil; e, como tentei abordar o tema da coisa pública, a coordenadora
do programa foi taxativa ao determinar que a coisa pública era muito
grande para caber naquele debate. Não deixa de ser um modo de
simplificar as coisas.
Corrupção na mídia
Passemos aos alvos preferidos das conversas sobre corrupção, até
porque são insistentemente pautadas pelos grandes meios de comunicação.
Um simples exame superficial revela que a evolução do patrimônio
privado de grande parte dos políticos brasileiros é incompatível com os
rendimentos que legalmente auferem do exercício de suas funções
públicas. Somente por esse critério, a ficha limpa seria supérflua.
Diante da permanente avalanche de denúncias, o curioso é que os
grandes denunciados não costumam se hospedar nas infectas prisões que
eles mesmos mandaram construir. Ainda mais curioso: geralmente, os
grandes denunciados de corrupção controlam, em seus redutos políticos,
as sucursais dos mesmíssimos grandes meios de comunicação (repetidoras
de TV inclusas) que os denunciam. E alguns - oh, mundo cruel! - são ou
foram colunistas de jornalões que se apresentam como arautos da
moralidade política. É bastante comum que esse mesmo político seja
denunciado e tratado com reverência em diferentes espaços ou momentos do
mesmo jornal.
Esse é um dos motivos para a grande imprensa, sempre contra o
"radicalismo", insistir no discurso de que a luta contra a corrupção
leva tempo, que Deus não fez o mundo em um só dia e que, com o tempo, as
instituições se aperfeiçoam, os partidos se tornarão programáticos e
ideológicos e, enfim, melhoraremos a "qualidade da democracia".
O problema é que esse evolucionismo meia-boca não resiste a qualquer
exame do passado. Não vamos muito longe. Basta lembrar que, nos anos 20,
os levantes tenentistas tinham como um de seus principais alvos "os
políticos" profissionais, todos considerados corruptos. Na década
seguinte, idos de 1937, o lema de José Américo de Almeida, um quase
candidato à presidência da República (Getúlio deu o golpe antes das
eleições), era "Eu sei onde está o dinheiro". Nos anos 40, com a
"redemocratização", fundou-se a UDN (União Democrática Nacional), um
partido que se celebrizou pelo moralismo, pelo golpismo, inclusive o
apoio ativo ao golpe de 1964, que, sempre em nome da luta contra a
corrupção e a subversão, abriu caminho para 21 anos de ditadura militar.
Em tempo, Antonio Carlos Magalhães e José Sarney eram da UDN.
Essa contação de caso não leva mesmo muito longe, mas talvez ajude a
desconfiar não apenas do evolucionismo tipo "me engana que eu gosto",
mas também das propostas de reforma política de fachada. Como insiste o
bom senso, uma corda tem duas pontas. Não adianta focar no corrupto e
ocultar o corruptor.
Financiamento de campanha
Voltemos aos nossos heróis e similares, pois é aí que o bicho pega.
Para recomeçar, observe este fantástico processo ideológico: a
insistência na denúncia da corrupção "ilegal" é um extraordinário meio
de legitimação da exploração dos trabalhadores pelos capitalistas. É
como se desejássemos uma sociedade onde o capitalismo funciona em estado
quimicamente puro, com os capitalistas se apropriando "apenas" do
sobretrabalho produzido pelos proletários e o Estado "bem longe" dessa
encrenca, limitando-se a zelar pelo interesse público. Só que vendo bem
de perto, essa é justamente a mais poderosa ideologia - o liberalismo
-, que cimenta, ocultando, as relações sociais capitalistas.
O grande empresariado se diverte ao financiar campanhas dos mesmos
políticos que serão seus fiéis servidores e que sempre acusarão de
preguiçosos e corruptos. Mais tarde, será muito mais fácil tapar o
buraco de operações financeiras desastradas recebendo o generoso socorro
do Banco do Brasil e do BNDES. Sem perder a pose de defensor do bom uso
da coisa pública.
Nesse processo, a grande imprensa presta contribuição inestimável.
Até porque ela condensa maravilhosamente as duas funções: de empresário e
de agente político-ideológico, sempre alardeando que é independente, ou
seja, não tem rabo preso com ninguém (antigo slogan do
principal jornal de um grupo que emprestava seus veículos para
torturadores e assassinos de presos políticos). Não por acaso, a grande
imprensa, que passa quase todo o tempo denunciando a corrupção das
instituições políticas, pressiona movimentos sociais para que se
transformem em partidos políticos e restrinjam sua atuação ao mesmíssimo
campo institucional que ela denuncia. Não se trata de uma contradição,
mas de uma luta político-ideológica para domesticar esses movimentos.
Quer dizer que não adianta reclamar da corrupção?
De fato, como se vê, não adianta muito e é pouquíssimo provável que o
ficha limpa altere as relações de opressão política e exploração
econômica vigentes na sociedade brasileira. Isso é o fundamental. Em um
plano mais secundário, só os incompetentes, os descartáveis ou as
eventuais vítimas de acidentes de trabalho (no geral, em feroz confronto
com seus colegas de profissão) serão pegos. Quer dizer que não adianta
lutar contra a corrupção? Êpa! Não foi o que escrevi.
Uma coisa é reclamar e reproduzir bovinamente aquilo de que se
reclama. Outra coisa é lutar contra a corrupção de modo consequente, o
que implica atacar suas causas. Aí, mais do que reclamar dos
"políticos", cabe levar adiante uma luta política. Mas, para isso, é
preciso fazer política de outro modo, com outro tipo de gente e,
fundamentalmente, contra o sistema que, ao mercantilizar cada vez mais
todas as relações humanas, não deixaria de fora exatamente a atividade
política. Sobre isso aí temos assunto para diversos artigos.
Lucio Flávio Rodrigues de Almeida é cientista político e professor da PUC-SP.
Fonte: Caros Amigos