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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

50 verdades sobre Nelson Mandela


As grandes potências ocidentais se opuseram até o último instante a sua luta e apoiaram o governo racista de Pretória


O herói da luta contra o apartheid marcou para sempre a história da África. No crepúsculo de sua existência, Nelson Mandela é venerado por todos. Ainda assim, as grandes potências ocidentais se opuseram até o último instante à sua luta pela emancipação humana e apoiaram o governo racista de Pretoria.
1.       Nascido no dia 18 de julho de 1918, Nelson Rolihlahla Mandela, apelidado de Madiba, é o símbolo por excelência da resistência à opressão e ao racismo na luta pela justiça e pela emancipação humana.
2.       Procedente de uma família de treze filhos, Mandela foi o primeiro a estudar em uma escola metodista e a cursar direito na Universidade de Fort Hare, a única que aceitava, então, pessoas de cor no governo segregacionista do apartheid.
3.       Em 1944, aderiu ao Congresso Nacional Africano (CNA) e, particularmente, à sua Liga da Juventude, de inclinação radical.
4.       O apartheid, elaborado em 1948 depois da vitória do Partido Nacional Purificado, instaurava a doutrina da superioridade da raça branca e dividia a população sul-africana em quatro grupos distintos: os brancos (20%), os índios (3%), os mestiços (10%) e os negros (67%). Esse sistema segregacionista discriminava 4/5 da população do país.
5.       Foram criados “bantustões”reservas territoriais destinadas às pessoas de cor, para amontoar as pessoas não brancas. Assim, 80% da população tinha de viver em 13% do território nacional, muitas vezes sem recursos naturais ou industriais, na total indigência.
6.       Em 1951, Mandela se transformou no primeiro advogado negro de Johanesburgo e assumiu a direção do CNA na província de Transvaal um ano depois. Também foi nomeado vice-presidente nacional.
7.       À frente do CNA, lançou a defiance campaign, contra o governo racista do apartheid, e utilizou a desobediência civil contra as leis segregacionistas. Durante a manifestação do dia 6 de abril de 1952, data do terceiro centenário da colonização da África do Sul pelos brancos, Mandela foi condenado a um ano de prisão. De sua prisão domiciliar em Johanesburgo, criou células clandestinas do CNA.

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8.       Em nome da luta contra o apartheid, Mandela preconizou a aliança entre o CNA e o Partido Comunista Sul-africano. Segundo ele, “o CNA não é um partido comunista, mas um amplo movimento de libertação que, entre seus membros inclui comunistas e outros que não o são. Qualquer pessoa que seja membro leal do CNA, e que respeite a disciplina e os princípios da organização, tem o direito de pertencer às suas filas. Nossa relação com o Partido Comunista Sul-Africano como organização é baseada no respeito mútuo. Nos unimos ao Partido Comunista Sul-Africano em torno daqueles objetivos que nos são comuns, mas respeitamos a independência de cada um e sua identidade visual. Não houve tentativa alguma por parte do Partido Comunista Sul-Africano de subverter o CNA. Pelo contrário, essa aliança nos deu força política.”
9.       Em dezembro de 1956, Mandela foi preso e acusado de traição com mais de uma centena de militantes antiapartheid. Depois de um processo de quatro anos, os tribunais o absolveram.
10.   Em março de 1960, depois do massacre de Sharperville, perpetrado pela polícia contra os manifestantes antisegregação, que custou a vida de 69 pessoas, o governo do apartheid proibiu o CNA.
11.   Mandela fundou então o Umkhonto we Sizwe (MK)  e preconizou a luta armada contra o governo racista sul-africano. Antes de optar pela doutrina da violência legítima e necessária, Mandela se inspirou da filosofia da não violência de Gandhi: “Embora tenhamos pegado em armas, não era nossa opção preferida. Foi o governo do apartheid que nos obrigou  a pegar em armas. Nossa opção preferida sempre foi a de encontrar uma solução pacífica para o conflito do apartheid.”
12.   O MK multiplicou, então, os atos de sabotagem contra os símbolos e as instituições do apartheid, preservando ao mesmo tempo as vidas humanas, lançou com sucesso uma greve geral e preparou o terreno para a luta armada com o treinamento militar de seus membros.
13.   Durante sua estada na Argélia, em 1962, depois da intervenção do presidente Ahmed Ben Bella, Mandela aproveitou para aperfeiçoar seus conhecimentos sobre a guerra de guerrilhas. A Argélia colocou à disposição do CNA campos de treinamento e deu apoio financeiro aos residentes antiapartheid. Mandela recebeu ali uma formação militar. Inspirou-se profundamente na guerra da Frente de Libertação Nacional do povo argelino contra o colonialismo francês. Quando libertado, Mandela dedicaria sua primeira viagem ao exterior à Argélia, em maio de 1990, e renderia tributo ao povo argelino: “Foi a Argélia que fez de mim um homem. Sou argelino, sou árabe, sou muçulmano! Quando fui ao meu país para enfrentar o apartheid, me senti mais forte”. Recordaria ter sido “o primeiro sul-africano treinado militarmente na Argélia.”

Agência Efe

14.   Mandela estudou minuciosamente os escritos de Mao e de Che Guevara. Transformou-se em um grande admirador do guerrilheiro cubano-argentino. Depois de ser libertado, declararia: As “façanhas revolucionárias [de Che Guevara] — inclusive no nosso continente — foram de tal magnitude que nenhum encarregando de censura na prisão pôde escondê-las. A vida do Che é uma inspiração para todo ser humano que ame a liberdade. Sempre honraremos sua memória.”
15.   Cuba foi uma das primeiras nações que deu sua ajuda ao CNA. A esse respeito, Nelson Mandela destacou: “Que país solicitou a ajuda de Cuba e lhe foi negada? Quantos países ameaçados pelo imperialismo ou que lutam pela sua libertação nacional puderam contar com o apoio de Cuba? Devo dizer que quando quisemos pegar em armas nos aproximamos de diversos governos ocidentais em busca de ajuda e somente obtivemos audiências com ministros de baixíssimo escalão. Quando visitamos Cuba fomos recebidos pelos mais altos funcionários, os quais, de imediato, nos ofereceram tudo o que queríamos e necessitávamos. Essa foi nossa primeira experiência com o internacionalismo de Cuba.”
16.   No dia 5 de agosto de 1962, depois de 17 meses de vida clandestina, Mandela foi levado à prisão em Johanesburgo, graças à colaboração dos serviços secretos dos Estados Unidos com o governo de Pretoria. A CIA deu às forças repressivas do apartheid a informação necessária para a captura do líder da resistência sul-africana.
17.   Acusado de ser o organizador da greve geral de 1961 e de sair ilegalmente do território nacional, ele foi condenado a cinco anos de prisão.
18.   Em julho de 1963, o governo prendeu 11 dirigentes do CNA em Rivonia, perto de Johanesburgo, sede da direção do MK. Todos foram acusados de traição, sabotagem, conspiração com o Partido Comunista e complô destinado a derrubar o governo. Já na prisão, Mandela foi acusado das mesmas coisas.
19.   No dia 9 de outubro de 1963, começou o famoso julgamento de Rivonia na Corte Suprema de Pretoria. No dia 20 de abril de 1964, frente ao juiz africâner Quartus de Wet, Mandela desenvolveu sua alegação brilhante e destacou que, frente ao fracasso da desobediência civil como método de combate para conseguir a liberdade, a igualdade ou a justiça, frente aos massacres de Sharperville e à proibição de sua organização, o CNA não teve outro remédio senão recorrer à luta armada para resistir à opressão.
20.   No dia 12 de junho de 1964, Mandela e seus companheiros foram declarados culpados de motim e condenados à prisão perpétua.

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21.   O Conselho de Segurança das Nações Unidas denunciou o julgamento de Rivonia. Em agosto de 1963, condenou o governo do apartheid e pediu às nações do mundo que suspendessem  o fornecimento de armas à África do Sul.
22.   As grandes nações ocidentais, como Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, longe de respeitarem a resolução do Conselho de Segurança, apoiaram o governo racista sul-africano e multiplicaram o fornecimento de armas.
23.   De Charles de Gaulle, presidente da França de 1959 a 1969, até o governo de Valéry Giscard d'Estaing, presidente da França de 1974 a 1981, a França foi um fiel aliado do poder racista de Pretoria e se negou sistematicamente a dar apoio ao CNA em sua luta pela igualdade e pela justiça.
24.   Paris nunca deixou de fornecer material militar para Pretoria, provendo até mesmo a primeira central nuclear da África do Sul, em 1976. Sob os governos de De Gaulle e de Georges Pompidou, presidente entre 1969 e 1974, a África do Sul foi o terceiro maior cliente da França em matéria de armamento.
25.   Em 1975, o Centro Francês de Comércio Exterior (CFCE) disse que “a França é considerada o único verdadeiro apoio da África do Sul entre os grandes países ocidentais. Não apenas fornece ao país o essencial em matéria de armamentos necessários para sua defesa, mas também tem se mostrado benevolente, ou, mais ainda, um aliado nos debates e nos votos das organizações internacionais.”
26.   Preso em Robben Island, com o número 466/64, Mandela viveu 18 anos de sua existência em condições extremamente duras. Não podia receber mais de duas cartas e duas visitas ao ano e esteve separado de sua esposa Winnie — que não tinha permissão para visitá-lo — durante 15 anos. Foi condenado a realizar trabalhos forçados, o que afetou seriamente a sua saúde, sem conseguir jamais quebrar sua força moral. Dava cursos de política, literatura e poesia a seus camaradas de destino e clamava pela resistência. Mandela gostava de recitar o poema Invictus de William Ernest Henley: “It matters not how strait the gate/How charged with punishments the scroll./I am the master of my fate:/I am the captain of my soul”. (Não importa quão estreito é o portão/ E quantas são as punições listadas/ Eu sou o mestre do meu destino/ Eu sou o capitão da minha alma)
27.   No dia 6 de dezembro de 1971, a Assembleia Geral das Nações Unidas qualificou o apartheid como crime contra a humanidade e exigiu a libertação de Nelson Mandela.
28.   Em 1976, o governo sul-africano propôs a Mandela sua libertação em troca de que ele renunciasse à luta. Madiba negou firmemente a proposta do governo segregacionista.

Agência Efe

29.   Em novembro de 1976, depois das revoltas de Soweto e da sangrenta repressão que o governo do apartheid desatou, o Conselho de Segurança das Nações Unidos impôs um embargo sobre as armas destinadas à África do Sul.
30.   Em 1982, Mandela foi transferido para a prisão de Pollsmoor, perto de Cape Town.
31.   Em 1985, Pieter Willen Botha, presidente de fato da nação, propôs libertar Mandela se ele se comprometesse, em troca, a renunciar à luta armada. O líder da luta antiapartheid recusou a proposta e exigiu a democracia para todos: “um homem, um voto.”
32.   Frente ao recrudescimento das operações de guerrilha do MK, o governo segregacionista criou esquadrões da morte com a finalidade de eliminar os militantes do CNA na África do Sul e no exterior. O caso mais famoso é o de Dulci September, assassinada em Paris no dia 29 de março de 1988.
33.   A mobilização internacional a favor de Nelson Mandela culminou em um show em Wembley, em junho de 1988, em homenagem aos 70 anos do resistente sul-africano, que foi assistido por 500 milhões de pessoas pela televisão. 

34.   O elemento decisivo que pôs fim ao apartheid foi a estrepitosa derrota militar que tropas cubanas infringiram ao exército sul-africano em Cuito Cuanavale, no sudeste de Angola, em janeiro de 1988. Fidel Castro enviou seus melhores soldados a Angola depois da invasão do país pelo governo de Pretoria, apoiada pelos Estados Unidos. A vitória de Cuito Cuanavale também permitiu à Namíbia, até então ocupada pela África do Sul, conseguir sua independência.

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35.   Em um artigo intitulado “Cuito Cuanavale: a batalha que acabou com o apartheid”, o historiador Piero Gleijeses, professor da Universidade John Hopkins, de Washington, especialista na política africana de Cuba, aponta que “a proeza dos cubanos nos campos de batalha e seu virtuosismo na mesa de negociações foram decisivos para obrigar a África do Sul a aceitar a independência da Namíbia. Sua exitosa defesa de Cuito foi o prelúdio de uma campanha que obrigou o exército sul-africano a sair de Angola. Essa vitória repercutiu para além de Namíbia.”
36.   Nelson Mandela, durante sua visita história a Cuba, em julho de 1991, lembrou-se daquele episódio: “A presença de vocês e o reforço enviado para a batalha de Cuito Cuanavale têm uma importância verdadeiramente histórica. A derrotada esmagadora do exército racista em Cuito Cuanavale constituiu uma vitória para toda a África! Essa contundente derrota do exército racista em Cuito Canavale deu a Angola a possibilidade de desfrutar da paz e de consolidar sua própria soberania. A derrota do exército racista permitiu que o povo combatente da Namíbia alcançasse finalmente a sua independência! A decisiva derrota das forças agressoras do apartheid destruiu o mito da  invencibilidade do opressor branco! A derrota do apartheid serviu de inspiração para o povo combatente da África do Sul! Sem a derrota infringida em Cuito Cuanavale nossas organizações não teriam sido legalizadas! A derrota do exército racista em Cuito Cuanavale possibilitou que hoje eu possa estar aqui com vocês! Cuito Cuanavale é um marco na história da luta pela libertação da África austral! Cuito Cuanavale marca a virada da luta para libertar o continente e nosso país do flagelo do apartheid! A decisiva derrota infringida em Cuito Cuanavale alterou a correlação de forças da região e reduziu consideravelmente a capacidade do governo de Pretoria para desestabilizar seus vizinhos. Este feito, em conjunto com a luta do nosso povo dentro do país, foi crucial para fazer Pretoria entender que tinha de se sentar à mesa de negociações.”
37.   No dia 2 de fevereiro de 1990, o governo segregacionista, moribundo depois da derrota de Cuito Cuanavale, viu-se obrigado a legalizar o CNA e aceitar as negociações.
38.   No dia 11 de fevereiro de 1990, Nelson Mandela foi finalmente libertado, depois de 27 anos de prisão.
39.   Em junho de 1990 foram abolidas as últimas leis segregacionistas depois da pressão feita por Nelson Mandela, pelo CNA e pelo povo.
40.   Eleito presidente do CNA em junho de 1991, Mandela recordou os objetivos: “No CNA sempre estaremos ao lado dos pobres e dos que não têm direitos. Não apenas estaremos junto deles. Vamos garantir antes cedo que tarde os pobres e sem direitos rejam a terra onde nasceram e que — como expressa a Carta da Liberdade — seja o povo que governe.”
41.   Fortemente criticado por sua aliança com o Partido Comunista Sul-Africano por causa das potências ocidentais que seguiam apoiando o governo do apartheid durante o processo de paz, Mandela replicou de modo contundente. “Não temos a menor intenção de fazer caso aos que nos sugerem e aconselham que rompamos essa aliança [com o Partido Comunista]. Quem são os que oferecem esses conselhos não solicitados? Provêm, em sua maioria, dos que nunca nos deram ajuda alguma. Nenhum desses conselheiros fez jamais os sacrifícios que fizeram os comunistas pela nossa luta. Essa aliança nos fortaleceu e a tornaremos ainda mais estreita.”
42.   Em 1991, Mandela condenou o persistente apoio dos Estados Unidos ao governo do apartheid:  “Estamos profundamente preocupados com a atitude que a  administração Bush adotou sobre esse assunto. Este foi um dos poucos governos que esteve em contato habitual conosco para examinar a questão das sanções e lhe fizemos ver claramente que eliminar as sanções seria prematuro. No entanto, essa administração, sem nem nos consultar, simplesmente nos informou que as sanções estadunidenses seriam anuladas. Consideramos isso totalmente inaceitável.”

Agência Efe

43.   Em 1993, Mandela recebeu o Prêmio Nobel da Paz por sua obra a favor da reconciliação nacional.
44.   Durante a primeira votação democrática da história da África do Sul, no dia 27 de abril de 1994, Nelson Mandela, de 77 anos, foi eleito presidente da República com mais de 60% dos votos. Governou até 1999.
45.   No dia 1 de dezembro de 2009, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, em votação unânime de seus 192 membros, uma resolução que decreta o dia 18 de julho como Dia Internacional Nelson Mandela, em homenagem à luta do herói sul-africano contra todas as injustiças.
46.   Se hoje Mandela é cumprimentado por todos, por décadas as potências ocidentais o consideraram um homem perigoso e o combateram apoiando o governo do apartheid.
47.   Estados Unidos, França e Grã-Bretanha foram os principais aliados do governo do apartheid, o qual apoiaram até o último momento.
48.   Se os Estados Unidos veneram hoje em dia Nelson Mandela, de Clinton a Bush passando por Obama, é conveniente lembrar que ele foi mantido na lista de membros de organizações terroristas até o dia 1 de janeiro de 2008.
49.   Nelson Mandela lembrou varias vezes dos lanços inquebrantáveis que atavam a África do Sul a Cuba. “Desde seus primeiros dias, a Revolução Cubana tem sido uma fonte de inspiração para todos os povos amantes da liberdade. O povo cubano ocupa um lugar especial no coração dos povos da África. Os internacionalistas cubanos deram uma contribuição para a independência, para a liberdade e a justiça na África que não tem paralelo pelos princípios e pelo desinteresse que a caracterizam. É muito o que podemos aprender da sua experiência. De modo particular, nos comove a afirmação do vínculo histórico com o continente africano e seus povos. Seu invariável compromisso com a erradicação sistemática do racismo não tem paralelo. Somos conscientes da grande dívida que existe hoje com o povo de Cuba. Que outro país pode mostrar uma história mais desinteressada que a que teve Cuba em suas relações com a África?
50.   Thenjiwe Mtintso, embaixadora da África do Sul em Cuba, lembrou-se da verdade histórica a propósito do compromisso de Cuba na África. “Hoje a África do Sul tem muitos amigos novos. Ontem, estes amigos se referiam aos nossos líderes e aos nossos combatentes como terroristas e nos acusavam enquanto apoiavam a África do Sul do apartheid. Esses mesmos amigos hoje querem que nós denunciemos e ilhemos Cuba. Nossa resposta é muito simples, é o sangue dos mártires cubanos e não destes amigos que corre profundamente na terra africana e nutre a árvore da liberdade em nossa pátria.”
 

*Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, Salim Lamrani é professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. Seu último livro se chama The Economic War Against Cuba. A Historical and Legal Perspective on the U.S. Blockade [A Guerra Econômica contra Cuba. Uma Perspectiva Histórica e Legal do Bloqueio dos EUA], New York, Monthly Review Press, 2013, com prólogo de Wayne S. Smith e prefácio de Paul Estrade.

terça-feira, 26 de março de 2013

Anistia Internacional diz que Feliciano é “inaceitável” e pede substituição


“É grave que (Feliciano) tenha sido alçado ao posto a despeito de intensa mobilização da sociedade em repúdio a seu nome” | Foto: Alexandra Martins / Câmara Federal
Da Redação do SUL21
A sede brasileira da Anistia Internacional, movimento global em prol dos direitos humanos, publicou nesta segunda-feira (25) uma nota pública sobre a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. No comunicado, a organização se declara preocupada com a indicação de Marco Feliciano (PSC-SP) para a presidência da Comissão e pede para que o “equívoco” da nomeação do pastor seja reparado. De acordo com a nota, a escolha de Feliciano é “inaceitável” devido a suas posições preconceituosas.
Feliciano, que assumiu a presidência da CDHM no início de março, tem sido alvo de protestos de diversos setores da sociedade por suas declarações consideradas racistas, machistas e homofóbicas. A ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, é uma das personalidades que já se manifestou sobre o caso, pedindo que Feliciano ouvisse a seus opositores. O presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Alves, prometeu na última quinta-feira (21) que uma decisão sobre a presidência da Comissão seria tomada nesta terça-feira (26).
Leia na íntegra a nota da Anistia Internacional Brasil:
A Anistia Internacional vem a público expressar sua preocupação com a permanência do Deputado Marco Feliciano na Presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, mesmo após enorme mobilização de diferentes setores da sociedade brasileira, especialmente daqueles ligados às lutas pelos direitos de populações tradicionalmente vítimas de intolerância e violência, solicitando a sua substituição.
A Comissão de Direitos Humanos é uma instância fundamental para a efetivação das garantias de cidadania estabelecidas na Constituição. É essencial que seus integrantes sejam pessoas comprometidas com os direitos humanos e possuam trajetórias públicas reconhecidas pelo compromisso com a luta contra discriminações e violações que continuam a fazer parte do cotidiano da sociedade brasileira.
As posições claramente discriminatórias em relação à população negra, LGBT e mulheres, expressas em diferentes ocasiões pelo deputado Marco Feliciano, o tornam uma escolha inaceitável para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Proteção de Minorias. É grave que tenha sido alçado ao posto a despeito de intensa mobilização da sociedade em repúdio a seu nome.
A Anistia Internacional espera que os(as) parlamentares brasileiros(as) reconheçam o grave equívoco cometido com a indicação do Deputado Feliciano e tomem imediatamente as medidas necessárias à sua substituição. Direitos fundamentais não devem ser objeto de barganha política ou sacrificados em acordos partidários.
Anistia Internacional Brasil

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Revelado elo entre escravidão e riqueza de ingleses

Pesquisa disponibiliza documentos inéditos com valores e nomes de donos de escravos que foram beneficiados com indenizações públicas após a abolição.

A reportagem é de Maurício Hashizume e publicada pela agência Repórter Brasil.

Além do retorno financeiro obtido pelo próprio negócio da escravidão transatlântica (que funcionava de modo bastante similar ao de uma bolsa de valores dos dias de hoje), “investidores” privados da venda de pessoas ainda foram recompensados com grandiosas indenizações do governo inglês quando da abolição legal.

Dados tornados públicos a partir desta quarta-feira (27/02) em um arquivo na internet disponível para consulta revelam que quantias equivalentes a bilhões de libras esterlinas foram transferidas dos cofres públicos para “empreendedores” escravagistas, ou seja, muitas das fortunas de hoje estão diretamente ligadas à abolição da escravidão.

Pelos cálculos dos responsáveis pela pesquisa – centralizada na University College, de Londres –, nada menos que um quinto da riqueza dos britânicos da Era Vitoriana guardava relação com a escravidão. Entre os beneficiados, encontram-se, por exemplo, parentes do atual primeiro-ministro inglês, David Cameron, do Partido Conservador, assim como familiares do escritor George Orwell.

“Ao focalizar os proprietários de escravos, o nosso objetivo não é ‘nomear para envergonhar’ ['naming and shaming', na expressão em inglês]. Buscamos desfazer o esquecimento: a ‘re-relembrar’, como diz Toni Morrison, reconhecer as formas pelas quais os frutos da escravidão fazem parte da nossa história coletiva – incorporado em nosso país, nas casas de nossas cidades, nas instituições filantrópicas, nas coleções de arte , nos bancos comerciais e nas pessoas jurídicas, nas estradas de ferro, e nas formas que continuamos a pensar sobre raça”, explica Catherine Hall, pesquisadora-chefe da iniciativa, em artigo publicado no diário inglês The Guardian. “Proprietários de escravos estavam ativamente envolvidos na reconfiguração de corrida após a escravidão, popularizando novas legitimações para a desigualdade que permanecem parte do legado do passado colonial da Grã-Bretanha”, emenda.

O arquivo reúne 46 mil pedidos de “indenização” encaminhados por ex-donos de escravos ao governo britânico. São registros detalhados que, conforme descreve Catherine, “foram mantidos longe de todos aqueles que reivindicavam compensações” e que tinham sido sistematicamente estudados antes. Segundo ela, os documentos consistem em uma “nova luz” para se entender “como o negócio da escravidão contribuiu de forma significativa para a Grã-Bretanha tornar-se a primeira nação industrial”. O esforço de pesquisa vai de encontro, segundo a historiadora, ao desejo de homens e mulheres que almejavam que suas identidades como proprietários de escravos fossem esquecidas.

A exposição das entranhas políticas, econômicas e culturais da escravidão antiga se dá no mesmo contexto em que se fortalece um movimento nos países do Caribe (com Barbados à frente) que reivindica, junto aos governos das nações colonizadoras, formas de compensação pelos profundos danos causados pela exploração do comércio transatlântico de vidas humanas ao conjunto de ex-colonizados. Para a responsável pela pesquisa, o trabalho, que dá contornos mais palpáveis à dívida da “moderna” Grã-Bretanha com a escravidão “antiga”, tem o objetivo de contribuir “para uma compreensão mais rica e mais honesta das histórias conectadas do império”.


Marcação a ferro, prática recorrente nas antigas formas de escravidão (Foto: Reprodução)

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Raça, pra que te quero?

Discussão sobre cotas trouxe petistas e tucanos brandindo barbaridades científicas

O Senado aprovou, na terça-feira 7, um projeto de lei que prevê a destinação de 50% das vagas em universidades e escolas técnicas federais para quem cursou o ensino médio integralmente em escolas públicas. Universidades e escolas técnicas terão de levar em conta critérios "raciais".
Veja bem: os vocábulos "critérios raciais" foram verberados pelos quatro maiores jornais brasileiros. Em sua primeira página, O Estado de S. Paulo chegou a surdir, como se a inverossimilhança fosse tolerável, frase do tucano Aloysio Nunes Ferreira, para quem "sou contra essa diferenciação pro raça e não tenho medo dessas movimentos. O branco pobre não é filho de senhor de escravos".
Essa bobagem de atribuir valor ao vocábulo "raça" não é nova. Os jornais que se dizem tão moderninhos o vocábulo "raça" como se este fosse cientificamente tolerável. Só para lembrar, em 1998, em sua coluna à página A2 da Folha de S.Paulo, o ex-presidente José Sarney chegou a escrever que cientistas brasileiros já haviam encontrado o DNA que validava "uma raça tipicamente brasileira". Nessa mediania de desinformação, ainda existe por aí uma revista da comunidade negra, vulgo afrodescendente, intitulada Raça.
O vocábulo "raça" deveria ter sido banido do dicionário desde o começo da década de 50: que foi quando Watson e Crick, ao conjecturarem sobre a dupla hélice do DNA, notaram que tais hélices eram compostas por decágonos – figuras de dez lados que, sabe-se em geometria, são as que mais concentram a energia. E que se você comparar o índice de crescimento desses decágonos seja num judeu, alemão, russo, esquimó ou argentino, ou branco, ou negro, ou circassiano, ou pardavasco, verá que as medidas são iguais. Ou seja, desde o começo da década de 50 os cientistas sabem que não existe conceito científico de raça. Somos todos rigorosamente iguais apesar das flamantes mentiras que volta e meia os racistas tendem a vender por aí.
Qualquer beletrista de Engenharia, Artes Plásticas ou Ciências sabe que toda vida viva cresce na mesma proporção: é o chamado número áureo ou golden mean, representado por raiz de 5 mais 1 sobre 2. Toda vida viva cresce nessa proporção. Com as hélices do DNA não é diferente.
Quem emprega, portanto, o vocábulo "raça", cujo uso fez o valor racista do termo quase invisível de tão habitual são os egressos de um antigo determinismo biológico segundo o qual poderíamos nós, humanos, sermos diferentes em essência – se esquecendo de que geneticamente somos todos substantivos apesar das variações culturais, e de classe, adjetivas.
Foi a partir de 1846 que Gustav Klemm publicou os dez volumes do seu "História cultural e geral da humanidade", pelo qual estabeleceu os conceitos básicos de que éramos divididos em raças, e isso bastou para que o conde de Gobineau inventasse a cascata de que no norte da Índia havia vivido uma raça superior chamada Arya (cuja tradução quer dizer homem honrado). E que essa raça superior teria passado o seu bastão evolutivo de pureza para os vikings e teutogermânicos. O nazismo e o racismo costuraram suas bandeiras a partir desses retalhos.
Seja petistas ou tucanos, todos falaram em raça desde essa terça-feira. Todos se curvaram ante o determinismo biológico e se esqueceram, ou simplesmente nunca souberam, o que é mais provável, que os maiores especialistas do mundo em pedras preciosas foram roubados da África pelos portugueses, escravizados – e já no Brasil passaram a ensinar aos cutrucos de Lisboa a arte alquímica da extração e transformação de gemas.
O determinismo biológico continua vigindo no nosso país que se pretende tão moderninho, e mesmo entre as esquerdas nessa questão das cotas foi deixado de lado a tão louvada vulgara marxista de exploradores e explorados em prol da ideia de que uns são mais apequenados que outros porque pertencem a uma outra raça.
O pensador marxista alemão Ernst Bloch (1885-1977) gostava de apontar o que chamava de "a contemporaneidade do não-coetâneo (em alemão, "Gleichzeitigkeit der Ungleichzeitigkeit"). Ou seja: você vive no século 21, mas pode estar dividindo o seu espaço, lado a lado, com quem ainda mantenha valores medievais. Ou simplesmente com quem ache que a ida do homem à lua não passa de uma montagem de video. O que ainda existem "raças". É a esta categoria que pertencem os tucanos e petistas que empregaram o vocábulo "raça" para discutir a questão da quota. São todos, noto, nacionalistas do século 17.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Preconceito racial e racismo institucional no Brasil


No Brasil, os negros sofrem não só a discriminação racial devida ao preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são dirigidas e se materializa nelas
por Márcia Pereira Leite
“Na primeira vez em que estive aqui, em 1987, fiquei chocado ao ver que na TV, em revistas, não havia negros. Melhorou um pouco. Mas há muito a fazer. Quem nunca veio ao Brasil e vê a TV brasileira via satélite vai pensar que todos os brasileiros são loiros de olhos azuis.” (Spike Lee)1
 O comentário do cineasta norte-americano Spike Lee, em recente visita ao Brasil para filmagem do documentário Go Brazil Go, no mesmo período em que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgava a constitucionalidade das cotas raciais em universidades públicas, despertou várias discussões na imprensa e nas redes sociais sobre o racismo na sociedade brasileira. Desses debates, é possível depreender quanto ainda persiste do mito de que o Brasil seria uma “democracia racial” em que, a despeito do preconceito, não haveria nem o ódio nem a segregação que caracterizaram o regime do apartheid. Nosso racismo combinaria o preconceito de cor e o preconceito de classe, diluindo-se no caso de negros educados e bem-sucedidos e implodindo no samba, no carnaval, enfim, na cultura popular brasileira.
Queremos chamar a atenção para o que ficou ausente nesse (e em outros) debate sobre o racismo no Brasil: os mecanismos de discriminação produzidos e operados pelas estruturas e instituições públicas e privadas que os reproduzem e os fortalecem. Nesta reflexão, propomos seguir o giro da ciência social, nos anos 1960, em sua análise das relações raciais: “Abandonar os esquemas interpretativos que tomam as desigualdades raciais como produtos de ações (discriminações) inspiradas por atitudes (preconceitos) individuais, para fixar-se no esquema interpretativo que ficou conhecido como racismo institucional, ou seja, na proposição de que há mecanismos de discriminação inscritos na operação do sistema social e que funcionam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos”.2
O racismo constitui, como se sabe, um mecanismo fundamental de poder utilizado historicamente para separar e dominar classes, raças, povos e etnias. Seu desenvolvimento moderno se deu com a colonização, com o genocídio colonizador. O racismo é, como disse Foucault, “o meio de introduzir [...] um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”. “No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação das raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros. [...] o racismo faz justamente funcionar, faz atuar essa relação de tipo guerreiro − ‘se você quer viver, é preciso que o outro morra’ − de uma maneira que é inteiramente nova e que, precisamente, é compatível com o exercício do biopoder.”3
Para o autor, “a especificidade do racismo moderno, o que faz sua especificidade, não está ligada a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligada à técnica do poder, à tecnologia do poder”,4 isto é, ao biopoder enquanto um poder (estatal) de regulamentação que se exerce sobre populações e consiste em “fazer viver e deixar morrer”.
 
(Afrodescendentes protestam contra o baixo número de negros na Fashion Rio Verão 2012/2013)
 
Racismo institucional no Brasil

O argumento central deste artigo consiste em que, no Brasil, negros sofrem não só a discriminação racial devida ao preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são dirigidas e se materializa nelas. Trata-se de discriminação racial praticada pelo Estado ao atuar de forma diferenciada em relação a esses segmentos populacionais, introduzindo em nossas cidades e em nossa sociedade, pela via das políticas públicas, “um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”, a faxina étnica.
A expressão, utilizada para evidenciar as relações entre o racismo e as políticas estatais para territórios e populações negras no Brasil, não é mera retórica. Antes, sustenta que as elevadas taxas de homicídio e de “autos de resistência”5 nos territórios de maioria negra, as políticas de remoção e de despejo de sua população, os altos índices de encarceramento de negros pobres, a precariedade das políticas públicas de habitação, saúde e educação para o conjunto da população negra e o desrespeito a suas tradições culturais e religiosas não são sucessivos produtos do acaso ou do mau funcionamento do Estado,6 mas traduzem o racismo institucional que opera no Brasil bem ao largo de qualquer perspectiva de integração social e urbana desses segmentos populacionais pela via da cidadania.
Esse modo específico de gestão estatal das populações negras e de seus territórios de moradia − que “faz viver e deixa morrer”, como diz Foucault − pode ser identificado no âmbito das políticas públicas praticadas pelo Estado brasileiro. Examinemos alguns dados empíricos que expressam o sentido e o escopo de sua formulação e de sua realização.
Os negros são as maiores vítimas de homicídio. No período de 2002 a 2008, segundo dados do Mapa da violência 2011,7 o número de vítimas brancas na população brasileira diminuiu 22,3%; já entre os negros, o número de vítimas de homicídio aumentou 20,2%. Os dados são mais dramáticos quando se consideram os jovens: o número de homicídios de jovens brancos caiu, no período, 30%, enquanto o de jovens negros cresceu 13%, o que significa que a brecha de mortalidade entre brancos e negros cresceu 43%. Se considerarmos os homicídios praticados pelas forças policiais e registrados/encobertos pelos “autos de resistência”, vemos que eles também vitimam mais intensamente os negros: de 2001 a 2007, incidiram sobre esse segmento 61,7% dos homicídios praticados por agentes do Estado.8 Não se trata simplesmente de abuso policial ou de despreparo de policiais em situações de confronto. A consistência dos dados e sua persistência no período, em que pese a redução desses homicídios nos últimos anos em algumas grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo,9 indicam uma política de extermínio de negros (jovens, sobretudo) − o “fazer morrer” − praticada pelo Estado, por meio de seus agentes, ou por ele tolerada.10
Mas, como vimos, a tecnologia do poder também “faz viver”, ainda que em distintas condições para esses diferentes segmentos populacionais, brancos e negros. É o que demonstra uma pesquisa realizada em 2003 pelo Ministério da Saúde,11 que revelou indicadores de saúde diferenciados da população brasileira segundo o critério raça/cor. Analisando seus resultados, Meireles12 destaca que 62% das mulheres brancas ouvidas realizaram sete ou mais consultas de pré-natal, enquanto somente 37% das mulheres negras passaram pelo mesmo número de consultas. Talvez por isso a hipertensão arterial durante a gravidez, uma das principais causas de morte materna, tenha sido mais frequente entre as mulheres negras. Além disso, o risco de uma criança negra morrer antes de completar 5 anos por causas infecciosas e parasitárias é 60% maior do que o risco de uma criança branca falecer pela mesma razão, enquanto o risco de morte por desnutrição é 90% maior entre crianças negras do que entre as brancas.
Já os dados do Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010demonstram que os negros representam cerca de 60% daqueles que, por motivos diversos, não conseguem atendimento no SUS, sendo os maiores percentuais os relativos às mulheres negras − o que, sem dúvida, argumenta o autor, evidencia a precariedade do dispositivo constitucional que assegura a universalidade do direito à saúde no país.
No plano da educação, todas as pesquisas apontam que, ainda que o acesso tenha crescido no país nos últimos anos, a presença dos negros no ensino médio, universitário e na pós-graduação permanece significativamente menor do que a dos brancos – diferença que se torna exponencial nos níveis superiores de formação. A razão, ressaltam, é clara: enquanto os brancos recorrem a escolas particulares (sabidamente, no Brasil, de melhor qualidade) no ensino fundamental e médio e, assim, obtêm melhor formação intelectual para ingresso nas universidades públicas, aos negros restam as escolas públicas (crescentemente sucateadas) nos níveis fundamental e médio e o caminho das universidades privadas. Mesmo com essa estratégia, também no campo da educação as desigualdades raciais são gritantes: em 2008, a probabilidade de um jovem branco, de 18 a 24 anos, frequentar uma instituição de ensino superior era 97,8% maior do que a de uma jovem negra da mesma faixa etária.13
No plano da moradia, os indicadores sociais revelam a mesma diferenciação no interior das políticas públicas, ou como o Estado “faz viver” esses contingentes populacionais. Os territórios de maioria negra nas cidades (favelas, loteamentos, bairros pobres e periferias) são carentes de equipamentos urbanos e serviços públicos de boa qualidade. O déficit habitacional brasileiro (cerca de 5,5 milhões de unidades) é fruto da ausência de uma política estatal de habitação popular, o que resultou na precariedade que caracteriza as atuais condições de moradia e vida nessas localidades.14
Além disso, em várias de nossas grandes cidades que vêm sendo reestruturadas para favorecer a especulação imobiliária e/ou sediar “grandes eventos” e assim se inserir nos fluxos internacionais de acumulação urbana, essas populações têm sido compulsoriamente removidas das localidades em que sempre viveram, criaram seus laços de vizinhança e parentesco, suas alternativas de sobrevivência (em trabalhos formais, pequenos comércios ou “virações”).15 São, então, reassentadas em locais distantes, ambientalmente precários,16 com infraestrutura urbana de má qualidade, sem redes de sociabilidade nem alternativas de trabalho; enfim, sem lugar na sociedade, sem direito à cidade.

Muito além do preconceito

Os dados analisados e as situações descritas revelam quanto as desigualdades sociais têm cor e estão profundamente enraizadas no racismo institucional que estrutura a sociedade brasileira e se materializa por meio das políticas praticadas pelo Estado, em todos os seus níveis. O que queremos sublinhar ao discuti-los é que, no Brasil, as desigualdades sociais se somam e são elevadas pelas desigualdades raciais. Mais do que isso: as desigualdades raciais estão no cerne do modo de gestão estatal dos territórios de maioria negra e desta população.
Trata-se de um novo modo de gestão estatal de territórios e de populações, que dispensa os tradicionais discursos e práticas de integração à sociedade nacional pela via da cidadania (da educação, do trabalho e dos direitos) por entender que essas populações são desnecessárias ao atual desenvolvimento do capitalismo.
Vivemos, hoje, uma mudança no eixo da atuação do Estado, cujo sentido passou a ser – simplesmente – evitar que essas populações negras, pobres e moradoras em territórios de favelas, loteamentos, bairros pobres e periferias produzam problemas para a ordem social. Suas estratégias combinam, desde então, diferentes políticas e mecanismos de controle social repressivo (até o “deixar morrer”) com políticas de mera inserção17/mínima sobrevivência (o “fazer viver”), travestidas, no plano discursivo, de integração à cidadania e à sociedade.
No primeiro caso, especialmente nas situações em que a criminalização da pobreza tem sido mais eficiente, o Estado atua promovendo ou acobertando a segregação socioespacial e as políticas de extermínio e de encarceramento, sobretudo de jovens negros. No segundo, atuando nos territórios de maioria negra, o Estado oferece a essas populações uma ilusão de integração por meio de políticas públicas que há muito abandonaram os princípios da universalidade e da justiça (são pontuais, descontinuadas; os serviços e equipamentos que criam são de má qualidade) ou patrocinando projetos sociais realizados por organizações não governamentais que seguem a mesma lógica, além de criminalizar sua clientela, entendida como “população vulnerável ao crime”. Em ambos os casos, o racismo institucional soma-se às desigualdades sociais, raciais e urbanas que historicamente estruturaram nosso país, aprofundando-as e revelando que estamos muito longe da “diluição” dessas desigualdades e da possibilidade de uma efetiva integração social e urbana dos negros pobres na sociedade brasileira.

Márcia Pereira Leite
Professora associada da Uerj, pesquisadora do CNPq, membro do Círculo Palmarino/Rio de Janeiro e do Conselho Deliberativo da Fase


Ilustração: Ricardo Moraes / Reuters
1 Fonte: .
2 Valter Silvério, “O multiculturalismo e o reconhecimento: mito e metáfora”, Revista USP, n.42, jun./ago. 1999, p.156.
3 Michel Foucault, Em defesa da sociedade, Martins Fontes, São Paulo, 2002, p.304-5.
4 Idem, p.309.
5 Registro de ocorrência policial, em atividade de policiamento ou mesmo na folga do agente policial, como resistência armada à prisão seguida de morte. Trata-se de um homicídio que não é registrado como tal, por exclusão de ilicitude por parte de seu autor. Nesse registro, a vítima é qualificada como criminosa (usualmente, como traficante de drogas); a morte, como decorrente de atividade legal da polícia; e seu autor, o policial, como vítima de tentativa de homicídio.
6 Cf. “Manifesto contra a faxina étnica”, divulgado no Fórum Social Urbano, no Rio de Janeiro, em março de 2010. Disponível em: .
7 Mapa da violência 2011, Instituto Sangari e Ministério da Justiça.
8 Marcelo Paixão et al. (orgs.), Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010, Laeser/Garamond, Rio de Janeiro, 2011.
9 Esta se deve a situações bastante específicas, que, por razões de foco e espaço, não temos condições de discutir aqui.
10 Cf. Sylvia Amanda da Silva Leandro, O que matar (não) quer dizer nas práticas e discursos da justiça criminal: o tratamento judiciário dos “homicídios por auto de resistência” no Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, PPGD/UFRJ, 2012.
11 Ministério da Saúde, Programa estratégico de ações afirmativas: população negra e aids, Brasília, 2006.
12 Iná Meireles, Saúde da população negra: um histórico de vitórias e uma realidade que exige muita luta contra a faxina étnica, mimeo, 2011.
13 Marcelo Paixão et al (orgs.), op. cit.
14 Cf. Kazuo Nakano, “A produção social de vulnerabilidade urbana”, Le Monde Diplomatique Brasil, abr. 2011.
15 Para a análise do processo de reestruturação e mercantilização de nossas grandes cidades enquanto produção de novas fronteiras urbanas para a expansão da acumulação, cf. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Orlando Alves Santos Junior, “Desafios da questão urbana”, Le Monde Diplomatique Brasil, abr. 2011.
16 Piramba examina esse processo enquanto expressão de racismo ambiental, isto é, das “injustiças sociais e ambientais [que] atingem etnias e populações vulneráveis”. Cf. Paulo Piramba, Anotações sobre o racismo ambiental, mimeo, 2011, p.1.
17 Ver, para a distinção entre integração social e inserção social, no sentido apontado aqui, Robert Castel, As metamorfoses da questão social, Vozes, Petrópolis, 1998.

domingo, 1 de julho de 2012

O racismo e a transformação social do Brasil

Por Dennis de Oliveira na REVISTA FORUM

O movimento negro brasileiro notabilizou-se em lutar contra injustiças sociais mais radicalizadas, como a violência social e policial, o extermínio de crianças e adolescentes negros, o aumento da miserabilidade, entre outros. Destaca-se a denúncia feita nos anos 1990 do documento da Escola Superior de Guerra, intitulado “Estrutura do Poder Nacional para o Século XXI”.
Esse texto, produzido em 1988 pelo think tank da ditadura militar, alertava que havia dois focos “perigosos” para a estabilidade do sistema: os “menores” de rua e os cinturões de pobreza. Por essa razão, o documento da ESG sugeria que os poderes constituídos lançassem mão de todos os mecanismos, inclusive “pedir o concurso das Forças Armadas para enfrentar esta horda de bandidos, neutralizá-los e mesmo destruí-los para que seja mantida a lei e a ordem”.

Uma entidade, a União de Negros pela Igualdade (Unegro) denunciou esse documento no I Encontro Nacional de Entidades Negras, realizado em 1991 no ginásio do Pacaembu,em São Paulo, lançando a palavra de ordem “Combate ao extermínio programado da população negra e pobre no Brasil”.
Foi um momento de resistência à ampliação da violência racial por conta da implementação do modelo neoliberal no País. O movimento negro participou ativamente da mobilização em prol do Estatuto da Criança e Adolescente, da campanha contra a esterilização indiscriminada de mulheres negras, contra o recrudescimento da violência policial, entre outras campanhas.
A pressão do movimento negro foi fundamental para que o Estado brasileiro reconhecesse, em1995, aexistência do racismo na sociedade brasileira. Naquele ano, de celebração do tricentenário de Zumbi dos Palmares, dois grandes eventos foram realizados. O primeiro, foi a Marcha Zumbi à Brasília, ocasião em que foi entregue ao então presidente da República um documento reivindicando políticas públicas de enfrentamento do racismo. O governo, ao receber o documento e constituir um grupo de trabalho interministerial, reconheceu publicamente a existência do racismo na sociedade brasileira.
Mas outro evento importante foi o Congresso Continental dos Povos Negros das Américas, realizado no Memorial da América Latina,em São Paulo, em que lideranças de organizações negras do continente se reuniram para discutir o panorama das relações raciais. O resultado disso foi a constituição de redes de articulação de entidades antirracistas na América Latina, que foi fundamental na participação na Conferência da ONU de Combate ao Racismo, em 2001, em Durban, África do Sul.

Racismo estrutural

No decorrer da preparação da Conferência de Durban, participei do Foro Social de las Americas na cidade de Quito, organizado pela Agência Latinoamericana de Información (Alai). Apresentei um texto intitulado “Racismo estrutural: apontamentos para uma discussão conceitual” (disponível em http://www.movimientos.org/dhplural/foro-racismo/noticias/show_text.php3?key=96).

A ideia básica desse texto é discutir o racismo como um mecanismo ideológico que legitima desigualdades sociais, culturais e de acesso ao poder. É retirar o tema do racismo do “comportamento individual” apenas e tão somente e discuti-lo na perspectiva das estruturas sociais de poder. Naquele momento, o neoliberalismo radicalizava a exclusão e a concentração de renda, razão pela qual as formas mais cruéis de racismo apareciam no cenário político – como a ideologia nazista em países europeus.
Dessa forma, o enfrentamento do racismo tem uma natureza política. E, aí, entram aspectos importantes que precisam ser refletidos pelos movimentos sociais na sua atuação.

Primeiro:O racismo como ideologia reproduz e consolida estruturas sociais de poder desigual e de concentração de renda. Dessa forma, a construção de uma sociedade mais justa e igualitária passa, necessariamente, pelo enfrentamento do racismo.

Segundo:O racismo cria privilégios de caráter racial, em maior ou menor grau, que beneficiam sujeitos mesmo entre classes sociais equivalentes. Assim, a vigilância antirracista tem de ser permanente, e não “seletiva” no sentido de “perdoar” eventuais manifestações racistas porque elas acontecem dentro de segmentos sociais que lutam por um mesmo ideal.

Terceiro:A luta contra o racismo necessita de uma ampliação do protagonismo das lideranças negras nos espaços de visibilidade pública dos movimentos sociais e organizações partidárias.
E, finalmente, o quarto aspecto: É preciso que a luta contra o racismo incorpore elementos importantes para a afirmação dos afrodescendentes como portadores de valores simbólicos próprios. A defesa das manifestações culturais de matriz africana não pode ser feita de forma meramente instrumental e até demagógica: deve ser parte efetiva de um projeto de transformação radical do País.