O problema tem tantas dimensões que é difícil começar. Mas eis um bom ponto de partida: o problema é nosso, de diversas maneiras.
O problema diz respeito às pessoas que estão nos nossos círculos de amor e amizade, e me parece uma omissão cruel que algo tão grande como essa epidemia pleonasticamente social de crack seja dissimulada como problema pessoal ou íntimo de algumas famílias e amigos. Conto uma anedota dolorosa. É anedota porque ouvi de segunda mão, o que já indica a minha distância em relação ao fato. Um dos meus amigos de infância foi recolhido ao Presídio Central por tráfico de crack. Trata-se de um adulto que vive uma vida confortável, pai de família, profissional competente de classe média. Reza a anedota que, quando sua mãe foi buscá-lo ao ser solto, ele não queria sair, pois se dizia em casa no presídio. Em casa. É uma degradação que me dói bastante, seja pelo amigo, seja pelos outros velhos amigos em situação parecida.
O problema diz respeito à moralidade. Em alguns casos, o que temos é um indivíduo que chegou a ser um adulto autoconsciente que se autodetermina, conhecendo o impacto das alternativas que escolhe, mas não é mais. No passado, esses adultos hoje viciados em crack escolheram fumar a pedra, mas após a quarta ou sexta pedra seu poder de escolha praticamente sumiu, pois foi muitíssimo mitigado. Claro, esses adultos são responsáveis pelos seus atos e suas consequências, ao menos se sabiam de tais consequências. Caso não soubessem, deveriam saber, mas... nós, a sociedade, estamos informando adequadamente as pessoas, sejam essas adultos ou crianças? Qual o impacto das informações que fornecemos, se as fornecemos, ante o impacto da ainda existente glamurização do vício? Nada tenho contra tal glamurização, desde que fique claro, a todos, que se trata de uma grande idiotice, de uma tolice que não vale a pena. Mas, estamos deixando isso bem claro?
Ainda quanto à moralidade, há outras questões graves e importantes. Em certo sentido, o dependente não é independente, pois seu poder de escolher ser dependente ou não da pedra praticamente evaporou-se. Mas, se não há tal autonomia, o que dizer dos atos praticados pelos dependentes da pedra? São atos imorais? Eu acho que são imorais caso o início do consumo da pedra tenha sido o ato de um adulto informado das consequências. Mas, o que dizer quando se trata de uma criança sem informação alguma? Acho que aqui não há responsabilidade. Isso é importante, pois não são poucos os os infantes dependentes de crack.
Quanto à legalidade, as coisas são diferentes. Tribunais cuidam do que dizem as leis positivas, não dos princípios e escolhas morais. Não sou especialista no assunto, então o que digo é de pouco valor. Eis meu palpite: nosso problema não é falta de leis, mas sim falta de implementação de estruturas já previstas nas nossas leis. Todas essas estruturas cabem na rúbrica vaga do "social". Algumas têm a ver com o sistema penal, mas as mais importantes têm a ver com educação e saúde.
Quanto à responsabilidade do problema, trata-se de um problema social que precisa ser abordado pela sociedade como um todo. Quanto às decisões, não pode ser um problema do governo estadual, pois é algo sério demais para ser deixado nas mãos de quem se mostra tão inábil e incompetente. Nós, de baixo para cima, precisamos fazer os poderes e instituições se moverem. Não sei como isso pode ser feito, mas imagino que a informação do fato da epidemia, das suas dimensões e das suas consequências é um bom começo. E acho que há profissionais competentes da saúde e da segurança que podem nos orientar, dando início a um debate público bem informado, o qual seria um motor para as práticas administrativas e também para as práticas sociais, pois, repito, o problema é nosso.
Há ainda outros problemas. Um amigo que trabalha com saúde pública informa que a epidemia de crack também atinge policiais, e é preciso que esses dependentes possam tratar abertamente do seu vício, e que recebam o tratamento adequado. Creio que alcançar uma polícia mais justa e eficiente passa por tratar bem os policiais, e isso requer que eles possam se mostrar humanos e falíveis.
É por ter tantas dimensões, e por ser tão grave, que esse problema merece atenção. Focar nesse problema é mitigar vários outros problemas sociais, a começar pelo número de furtos, visto que muitos dependentes furtam de parentes ou transeuntes para consumir a pedra. E isso revela uma causa de furtos que pode ser mitigada, caso o problema do crack seja mitigado. É claro, a coisa é maior do que isso, e há muito mais envolvido. Trata-se de um problema que atinge ricos e pobres. Nas últimas semanas, pais de classe média têm atirado e mesmo matado seus filhos dependentes, o que me parece a dor das dores, e é uma dor nossa, dado o quadro total. Mas a coisa não é recente. Nas classes mais baixas é comum -- e, como também é comum, não é notícia -- que pais acorrentem seus filhos dependentes para protegê-los do vício. Eis, novamente, a questão moral. Alguém não está sendo um adulto independente que se autodetermina, seja por ser uma criança, seja por ter agido sob ignorância, seja por ter a capacidade de escolher fortemente mitigada, o que faz com que pessoas prendam esses dependentes às suas camas. Não estou dizendo que isso é certo, nem tenho certeza sobre a correção dessa descrição de tais fatos, mas sei que seria leviano descrever tal tipo de situação como um caso de cárcere privado, e nada mais. E, pelo que vi no documentário sobre a epidemia de crack exibido semana passada pela TVE-RS, sei que os policiais também têm tal conhecimento, o que indica que esses profissionais da segurança têm algo a nos ensinar.
Essa é uma batalha coletiva que precisa ser lutada pela sociedade, e acho que se lutássemos bastante conseguiríamos mitigar um pouco o problema, talvez controlá-lo em parte. Seria ingênuo querer vencer tal problema, erradicar o crack. Isso simplesmente não vai acontecer. Mas precisamos ao menos dar a cada um a chance de ser um adulto com poder de escolha efetivo, o qual é fruto da informação. E precisamos também, seja pelas pessoas, seja pela sociedade, investir na reabilitação e prevenção da reincidência dos dependentes da pedra, os quais somam quase 50 mil pessoas no RS.