Gabriel Brito - Correio da Cidadania | |
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Na semana que passou, a Justiça Eleitoral de São Paulo cassou o mandato
de 13 vereadores por conta de doações recebidas da Associação das
Imobiliárias Brasileiras acima dos valores permitidos por lei. Após o
pequeno rebuliço, todos acabaram obtendo liminares que asseguraram o
direito de retornarem aos mandatos enquanto não se julga
definitivamente a ação (confira os nomes no final da matéria).
Demonstração cabal da degradação da função pública, cada vez mais
distanciada de seu caráter republicano de servir aos interesses
populares (isto é, dos eleitores), o caso, se não serve para punir
exemplarmente os que negociam seus mandatos, ao menos desnuda a que
ponto chegou a descaracterização do fazer político.
"Mais do que nunca essas cassações e denúncias que vêm ocorrendo, já
antigas, trazem à tona a discussão sobre a influência do poder
econômico no processo eleitoral, e de como ele é determinante e influi
não só na eleição no Brasil, mas, sobretudo, como continua a fazê-lo. O
caso do Renan Calheiros é clássico. Ele foi financiado por uma
empreiteira e depois esta continuou pagando suas despesas. Ou seja, é o
poder econômico comprando seus representantes", disse ao Correio o
deputado estadual do PSOL Carlos Giannazzi.
Com doações que rondavam em torno de 1,6 milhão de reais para o último
pleito, de 2008, é impossível não relacionar a agenda política dos
parlamentares com as fartas benesses do setor privado. Rodoanel, Nova
Marginal, prédios e mais prédios e recentemente o pacote habitacional
são todos projetos bilionários que certamente encherão os cofres das
empreiteiras e imobiliárias (como também já publicou o Correio), que
poderão reaver o investimento realizado nos homens públicos. Tudo isso
sem considerar a possibilidade de doações ocultas ou individuais das
empresas do ramo.
"O que acontece na Câmara acontece em outros legislativos, no
judiciário, executivo, é algo generalizado em nosso país. As
empreiteiras que financiam as grandes construtoras, também financiam
candidatos para depois serem beneficiadas em licitações de grandes
obras públicas", destacou.
"Vejo como escândalo o caso da Associação Imobiliária Brasileira (AIB),
que tem vários vereadores eleitos, inclusive os que redigem planos
diretores. Sobre o PAC e o Minha Casa, é importante ver como eles são
em grande medida complementares. Pois o PAC beneficia sobretudo as
empresas de ‘construção pesada’ que fazem infra-estrutura e para as
quais a questão fundiária é irrelevante. O Minha Casa beneficia as
empresas de ‘construção civil’ e o setor imobiliário, para o qual o
fundiário é decisivo. Ou seja, são as frações de capital recebendo do
Estado as fatias do fundo público", já dissera o urbanista Pedro
Arantes, dando o exemplo de importantes políticas públicas que vão de
encontro aos interesses citados.
Sobre a relação da AIB com os parlamentares, o deputado aponta a
promiscuidade que significa o envolvimento financeiro daqueles que
devem zelar pela cidade com os que se interessam apenas pela causa
própria. "É ilegal que uma associação quase fantasma, ligada a um
sindicato de empreiteiras, o Secovi (Sindicato das Empresas de Compra,
Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de
São Paulo) tenha financiado quase metade da Câmara. É um absurdo, pois
é a Câmara Municipal que aprova os projetos de lei dessa área de
construção", denuncia Giannazzi.
Como disse o parlamentar, é evidente que os vereadores não estão
sozinhos nessa. Deputados e o prefeito Gilberto Kassab também receberam
amplos investimentos dos patrões do setor, o que talvez explique a
batalha armada pelo político do DEM para alterar o nunca aplicado Plano
Diretor das Cidades, de 2001, mesmo com a maciça oposição de 165
entidades da sociedade civil na Assembléia Legislativa. Em questão,
estava a intenção governamental de mexer no ponto que denomina
importantes regiões da cidade como Zonas Especiais de Interesse Social
- isto é, zonas que deveriam ser destinadas a reformas urbanas que
atendessem à população mais carente de serviços, infra-estrutura e
moradia de qualidade.
"Não temos a aplicação do Plano Diretor, não temos uma fiscalização
rígida em cima das empreiteiras, não há avaliação de impacto ambiental
sobre as grandes construções de condomínios e prédios sendo feitas em
São Paulo...", enumera o parlamentar.
Quando chega a hora de retribuir
Em lugar da aplicação do Plano Diretor original, a idéia de Kassab é
implantar as ‘Concessões Urbanísticas’, estabelecendo determinada área
da cidade como de interesse público, oferecendo-a a partir disso ao
mercado. Este, por sua vez, teria o direito de revitalizar a área,
tendo outorgado a si, também, o poder de realizar desapropriações nas
áreas que julgasse relevantes.
"Em cada esquina há uma grande construção, com um impacto imenso na
poluição e no trânsito. E a cidade não tem mais condições de conviver
com tantas construções. A Câmara é omissa, pois, se uma parte dos
vereadores foi financiada pelas empreiteiras, claro que não vai fazer
fiscalização", escancara o psolista.
Diante de tais fatos, pode-se constatar a completa subordinação do
espaço público ao interesse privado, "de mercado", como cunhou o
deputado. Se já são conturbadas as expropriações realizadas pelo poder
público (vide algumas na periferia com cenas de violência e
arbitrariedades policiais), o que dizer quando estas puderem ser feitas
por entidades privadas, oficialmente descompromissadas com o interesse
cidadão? No entanto, ao menos o MP e a Defensoria Pública já se
manifestaram acerca da inconstitucionalidade do projeto (ver aqui em texto de Pedro Arantes).
Essa situação, que impacta diretamente nossas cidades, encontra
correlação em outros setores de nossa economia. Na saúde, por exemplo,
como já demonstrado por este Correio, as entidades do setor doaram
milhões de reais à campanha de José Serra. Por sua vez, o tucano
retribuiu com o Projeto de Lei Complementar 62/2008, que abre as portas
de todos os hospitais públicos para a administração privada. Sem contar
que, mesmo em épocas de cortes orçamentários, não se cobra dos planos
de saúde a dívida de bilhões de reais que estes têm com o SUS. "Esse
foi um caso descoberto agora pelo MP sobre o setor imobiliário, mas
existem outros setores fazendo o mesmo, de acordo com seus interesses",
lembra Giannazzi.
Exemplos semelhantes podem ser encontrados nos setores bancário e
automobilístico, grandes promotores financeiros dos nossos
representantes políticos, para ficarmos entre os casos mais conhecidos.
O primeiro recebe injeções portentosas de capital, mesmo anunciando
lucros estratosféricos e demissões simultaneamente; já o segundo tem o
beneplácito da redução de impostos, como o IPI, e incentivos para
aumento de produção, mesmo com o clamor da cidade em torno da
substituição do transporte individual pelo coletivo.
Oportunidade de abrirmos os olhos
A cultura de apropriação do público pelo privado atingiu tal patamar
que nenhum parlamentar cogitou a hipótese de entregar o cargo ou ao
menos desculpar-se publicamente pelo claríssimo desvio de compromisso.
Pois foi a Justiça Eleitoral quem determinou as cassações. E a lei
eleitoral é bem cristalina quando estabelece limites de doação e entes
que têm direito a fazê-las, o que foi inegavelmente desrespeitado –
tudo isso sem ter de entrar na discussão sobre a questão ética de tais
contribuições, mas atendo-se tão somente à letra da lei vigente.
Porém, o deputado enxerga um lado positivo na exposição do caso, ainda
que as punições não tenham se concretizado. "Essa situação gera
discussão e uma contribuição para o cidadão e eleitor ficar mais
crítico, não só na hora de eleger, mas, sobretudo, na hora de
acompanhar as votações, como votam deputados e vereadores. Se foi
financiado por construtora, vai votar a favor delas". Uma autêntica
prática do ‘é dando que se recebe’.
Mas, para piorar, perdeu-se a chance de tornar mais transparente o
acompanhamento do eleitor, com a reforma eleitoral recém-finalizada no
Congresso, que ignorou todos os pontos que geravam expectativa no
debate público. Entre eles o das doações, que poderão permanecer
ocultadas dos eleitores até o final dos pleitos, além de ter sido
deixado para uma próxima reforma o financiamento público de campanha.
"Temos câmaras e assembléias praticamente privatizadas, com vereadores,
deputados e senadores como representantes e serviçais do poder
econômico. A sociedade fica neutralizada nesse processo. Essa reforma
política foi apenas um pequeno ajuste. Temos é de fazer uma grande
mudança eleitoral", indica Giannazzi.
Vereadores cassados e que já retomaram os cargos:
Adilson Amadeu (PTB), Adolfo Quintas Neto (PSDB), Carlos Alberto
Apolinário (DEM), Carlos Alberto Bezerra Júnior (PSDB), Cláudio Roberto
Barbosa de Souza (PSDB), Dalton Silvano do Amaral (PSDB), Domingos
Odone Dissei (DEM), Gilson Almeida Barreto (PSDB), Marta Freire da
Costa (DEM), Paulo Sérgio Abou Anni (PV), Ricardo Teixeira (PSDB),
Ushitaro Kamia (DEM) e Wadih Mutran (PP).
Gabriel Brito é jornalista.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
terça-feira, 3 de novembro de 2009
Cassações de vereadores paulistanos escancaram privatização dos homens públicos
O choro das viúvas de Micheletti
Migueldo Rosario no blog Oleo do Diabo
Na medida em que a crise em Honduras inicia uma distensão, e que as
sucessivas derrotas dos golpistas (a primeira foi não ter recebido
reconhecimento de nenhum país e ter sido condenado por todas as
organizações internacionais) se tornam mais visíveis, observo em nossa
midia, parte da qual apoiou o golpe, o surgimento de uma nova e
interessante figura: as viúvas de Honduras.
Noblat é uma delas. Recorto o que ele disse hoje, em sua coluna do jornal O Globo:
A primeira frase é um idiotice e uma falsidade jurídica. A derrubada de Zelaya não foi legal. Foi um golpe de Estado. Não é por outro motivo que o novo governo não foi reconhecido e que Zelaya continuou sendo o único presidente legítimo, para toda a comunidade internacional. Até O Globo chamava, embora hesitante e intermitentemente, e apenas semanas depois do golpe, o governo Micheletti de golpista. A afirmação de Noblat, portanto, é esquizofrênica. Ele defende um governo golpista em seus estertores. É uma viúva desesperada tentando defender a honra do marido nazista morto por um pelotão de fuzilamento da Resistência francesa.
A segunda frase é uma mentira odiosa. Blogosfera, juristas, diplomatas, já a desmentiram categoricamente, por diversas vezes. Zelaya pediu a inclusão de uma pergunta a mais na cédula eleitoral, sobre a criação de uma assembléia constituinte. Essa assembléia iria iniciar discussões políticas, que incluem mudanças na Constituição. Não dá nem para chamar Noblat de leguleio (aquele que interpreta servilmente a lei, sem atender a seu espírito), ou de chicaneiro (o que distorce a lei para cometer crimes), mas de safado mesmo, ou burro. Uma Constituição não é uma tábua de pedra onde as leis ficam estáticas para sempre. Constituição é um corpo jurídico sempre flexível em linha com os anseios do povo. É absolutamente ridículo que Noblat (e outros, são tantas as víuvas de Micheletti no Brasil...) queira nos convencer que a simples possibilidade de um país abrir um debate sobre a reeleição, tendo a delicadeza de perguntar ao povo se concorda ou não, é motivo para sua derrubada sumária, sem o mais básico processo legal de defesa.
É ridículo, ainda mais partindo de um jornalista político brasileiro, ciente de que Fernando Henrique Cardoso, mudou a Constituição brasileira, sem a delicadeza de perguntar ao povo, para instituir a reeleição PARA SI PRÓPRIO.
O maior crime, ao que parece, é a delicadeza de perguntar ao povo. Os neocons da América Latina consideram o instrumento de consulta popular uma agressão à democracia. Enquanto isso, Uribe aprova a instalação de bases americanas na Colômbia sem sequer consultar o Congresso Nacional... Ou seja, o bolivarianismo que faz consultas ao povo é autoritário, enquanto as forças que instituem mudanças radicais na Constiuição (como fez FHC) sem nenhuma consulta popular são modelos de bom comportamento democrático. E dar golpe de Estado, para Noblat e para todas as numerosas viúvas de Micheletti, também é democrático. Ah, já ia esquecendo, é o golpe democrático do Jabor!
*
Na verdade, o golpe ainda não acabou. As pessoas, porém, esquecem um fator básico. A população hondurenha recebeu uma vacina. O que é uma vacina? É receber o vírus da doença no corpo para criar anticorpos daquela doença. Foi exatamente isso que aconteceu ao povo hondurenho. Todas as pesquisas de opinião, discussões parlamentares, todas as articulações entre Micheletti e Zelaya, estão negligenciando o mais importante. O que está pensando o povo hondurenho de tudo isso? O golpe de Micheletti foi um desastre social e econômico. Os ricos têm reservas para enfrentar os momentos de dificuldade. Muitas vezes, até ganham dinheiro, explorando a miséria e a insegurança. Os pobres, naturalmente, sempre são os mais prejudicados. Ao que tudo indica, o povo hondurenho desenvolveu um ódio profundo contra as forças retrógradas de Honduras, contra os golpistas, e identificou exatamente o papel da mídia nesse processo. Pensar que o mundinho político de Honduras permanecerá o mesmo depois do que aconteceu não é apenas ingenuidade, é estupidez e cegueira política. O povo exigirá mudanças. E mesmo que os golpistas recebam anistia lítica e jurídica em função dos acordos do alto escalão, o povo não os perdoará pela tragédia social que produziram. Sim, porque para os ricos o golpe pode ter sido apenas uma aventura. Para os pobres, no entanto, significou o desmantelamento de suas finanças, o esfacelamento de seus sonhos, a morte, a fome, o desespero, e o maior erro político de todos é subestimar os povos, é subestimar a força de sua violência e de sua dor. Os golpistas irão pagar, muito caro, uma hora ou outra, pela violência indesculpável contra a soberania popular, contra a democracia, contra a vida de milhões de hondurenhos. E as viúvas de Micheletti no Brasil não poderão fazer outra coisa senão enfiar seus rostos num vaso sanitário, e puxar a descarga.
*
Algumas das viúvas de Micheletti não têm coragem de apoiar explicitamente o golpe, mas é fácil identificá-las. Eliane Catanhede, por exemplo, põe Micheletti e Zelaya em pé de igualdade. Vários fizeram isso. Sem coragem de defender Micheletti, tentam agradar o baronato midiático conservador que os emprega atacando igualmente Zelaya. Sem ter o que atacar em Zelaya, zombam de seu bigode, de seu chapéu. Caluniam-no dizendo que não possui uma personalidade política própria, que é um submisso seguidor de Chávez. Mentem ao acusá-lo de querer instituir a reeleição. Antes do golpe as eleições presidenciais já estavam marcadas para o fim deste ano, e Zelaya não concorria. A famigerada inclusão de uma pergunta a mais na cédula não dizia nada sobre reeleição. Caso fosse montada uma assembléia constituinte, a reeleição seria, primeiro, debatida pelo parlamento, depois votada, e depois, caso fosse aprovada, o povo poderia ser novamente consultado. Zelaya passou longe do golpismo de Fernando Henrique Cardoso, que atropelou qualquer bom senso democrático para instituir a reeleição para si mesmo sem ao menos ter a delicadeza de consultar o povo. Chávez ao menos fez um plebiscito popular. FHC, não. Repetindo, o crime maior para os antibolivarianos radicais de nossa mídia é consultar o povo...
Noblat é uma delas. Recorto o que ele disse hoje, em sua coluna do jornal O Globo:
A derrubada de Zelaya foi legal, segundo a Constituição. Afinal, ele tentara mudá-la para introduzir a reeleição à presidente.
A primeira frase é um idiotice e uma falsidade jurídica. A derrubada de Zelaya não foi legal. Foi um golpe de Estado. Não é por outro motivo que o novo governo não foi reconhecido e que Zelaya continuou sendo o único presidente legítimo, para toda a comunidade internacional. Até O Globo chamava, embora hesitante e intermitentemente, e apenas semanas depois do golpe, o governo Micheletti de golpista. A afirmação de Noblat, portanto, é esquizofrênica. Ele defende um governo golpista em seus estertores. É uma viúva desesperada tentando defender a honra do marido nazista morto por um pelotão de fuzilamento da Resistência francesa.
A segunda frase é uma mentira odiosa. Blogosfera, juristas, diplomatas, já a desmentiram categoricamente, por diversas vezes. Zelaya pediu a inclusão de uma pergunta a mais na cédula eleitoral, sobre a criação de uma assembléia constituinte. Essa assembléia iria iniciar discussões políticas, que incluem mudanças na Constituição. Não dá nem para chamar Noblat de leguleio (aquele que interpreta servilmente a lei, sem atender a seu espírito), ou de chicaneiro (o que distorce a lei para cometer crimes), mas de safado mesmo, ou burro. Uma Constituição não é uma tábua de pedra onde as leis ficam estáticas para sempre. Constituição é um corpo jurídico sempre flexível em linha com os anseios do povo. É absolutamente ridículo que Noblat (e outros, são tantas as víuvas de Micheletti no Brasil...) queira nos convencer que a simples possibilidade de um país abrir um debate sobre a reeleição, tendo a delicadeza de perguntar ao povo se concorda ou não, é motivo para sua derrubada sumária, sem o mais básico processo legal de defesa.
É ridículo, ainda mais partindo de um jornalista político brasileiro, ciente de que Fernando Henrique Cardoso, mudou a Constituição brasileira, sem a delicadeza de perguntar ao povo, para instituir a reeleição PARA SI PRÓPRIO.
O maior crime, ao que parece, é a delicadeza de perguntar ao povo. Os neocons da América Latina consideram o instrumento de consulta popular uma agressão à democracia. Enquanto isso, Uribe aprova a instalação de bases americanas na Colômbia sem sequer consultar o Congresso Nacional... Ou seja, o bolivarianismo que faz consultas ao povo é autoritário, enquanto as forças que instituem mudanças radicais na Constiuição (como fez FHC) sem nenhuma consulta popular são modelos de bom comportamento democrático. E dar golpe de Estado, para Noblat e para todas as numerosas viúvas de Micheletti, também é democrático. Ah, já ia esquecendo, é o golpe democrático do Jabor!
*
Na verdade, o golpe ainda não acabou. As pessoas, porém, esquecem um fator básico. A população hondurenha recebeu uma vacina. O que é uma vacina? É receber o vírus da doença no corpo para criar anticorpos daquela doença. Foi exatamente isso que aconteceu ao povo hondurenho. Todas as pesquisas de opinião, discussões parlamentares, todas as articulações entre Micheletti e Zelaya, estão negligenciando o mais importante. O que está pensando o povo hondurenho de tudo isso? O golpe de Micheletti foi um desastre social e econômico. Os ricos têm reservas para enfrentar os momentos de dificuldade. Muitas vezes, até ganham dinheiro, explorando a miséria e a insegurança. Os pobres, naturalmente, sempre são os mais prejudicados. Ao que tudo indica, o povo hondurenho desenvolveu um ódio profundo contra as forças retrógradas de Honduras, contra os golpistas, e identificou exatamente o papel da mídia nesse processo. Pensar que o mundinho político de Honduras permanecerá o mesmo depois do que aconteceu não é apenas ingenuidade, é estupidez e cegueira política. O povo exigirá mudanças. E mesmo que os golpistas recebam anistia lítica e jurídica em função dos acordos do alto escalão, o povo não os perdoará pela tragédia social que produziram. Sim, porque para os ricos o golpe pode ter sido apenas uma aventura. Para os pobres, no entanto, significou o desmantelamento de suas finanças, o esfacelamento de seus sonhos, a morte, a fome, o desespero, e o maior erro político de todos é subestimar os povos, é subestimar a força de sua violência e de sua dor. Os golpistas irão pagar, muito caro, uma hora ou outra, pela violência indesculpável contra a soberania popular, contra a democracia, contra a vida de milhões de hondurenhos. E as viúvas de Micheletti no Brasil não poderão fazer outra coisa senão enfiar seus rostos num vaso sanitário, e puxar a descarga.
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Algumas das viúvas de Micheletti não têm coragem de apoiar explicitamente o golpe, mas é fácil identificá-las. Eliane Catanhede, por exemplo, põe Micheletti e Zelaya em pé de igualdade. Vários fizeram isso. Sem coragem de defender Micheletti, tentam agradar o baronato midiático conservador que os emprega atacando igualmente Zelaya. Sem ter o que atacar em Zelaya, zombam de seu bigode, de seu chapéu. Caluniam-no dizendo que não possui uma personalidade política própria, que é um submisso seguidor de Chávez. Mentem ao acusá-lo de querer instituir a reeleição. Antes do golpe as eleições presidenciais já estavam marcadas para o fim deste ano, e Zelaya não concorria. A famigerada inclusão de uma pergunta a mais na cédula não dizia nada sobre reeleição. Caso fosse montada uma assembléia constituinte, a reeleição seria, primeiro, debatida pelo parlamento, depois votada, e depois, caso fosse aprovada, o povo poderia ser novamente consultado. Zelaya passou longe do golpismo de Fernando Henrique Cardoso, que atropelou qualquer bom senso democrático para instituir a reeleição para si mesmo sem ao menos ter a delicadeza de consultar o povo. Chávez ao menos fez um plebiscito popular. FHC, não. Repetindo, o crime maior para os antibolivarianos radicais de nossa mídia é consultar o povo...
Barbárie e modernidade no século 20
Michael Löwy - Portal do PSOL
A palavra "bárbaro" é de origem grega. Ela designava, na Antigüidade,
as nações não-gregas, consideradas primitivas, incultas, atrasadas e
brutais. A oposição entre civilização e barbárie é então antiga. Ela
encontra uma nova legitimidade na filosofia dos iluministas, e será
herdada pela esquerda. O termo "barbárie" tem, segundo o dicionário,
dois significados distintos, mas ligados: "falta de civilização" e
"crueldade de bárbaro".
A história do século 20 nos obriga a dissociar
essas duas acepções e a refletir sobre o conceito - aparentemente
contraditório, mas de fato perfeitamente coerente - de "barbárie
civilizada".
Em que consiste o "processo civilizador"? Como bem demonstrou
Norbert Elias, um de seus aspectos mais importantes é que a violência
não é mais exercida de maneira espontânea, irracional e emocional pelos
indivíduos, mas é monopolizada e centralizada pelo Estado, mais
precisamente, pelas forças armadas e pela polícia. Graças ao processo
civilizador, as emoções são controladas, o caminho da sociedade é
pacificado e a coerção física fica concentrada nas mãos do poder
político1. O que Elias não parece ter percebido é o reverso
dessa brilhante medalha: o formidável potencial de violência acumulado
pelo Estado... Inspirado por uma filosofia otimista do progresso, ele
podia escrever, ainda em 1939: "Comparada ao furor do combate abissínio
(...) ou daquelas tribos da época das grandes migrações, a
agressividade das nações mais belicosas do mundo civilizado parece
moderada (...); ela só se manifesta em sua força brutal e sem limites
em sonho e em alguns fenômenos que nós qualificamos de 'patológicos'".2
Alguns meses depois dessas linhas terem sido escritas, começava uma
guerra entre nações "civilizadas" cuja "força brutal e sem limites" é
simplesmente impossível de comparar com o pobre "furor" dos combatentes
etíopes, tamanha é a desproporção. O lado sinistro do "processo
civilizador" e da monopolização estatal da violência se manifestou em
toda sua terrível potência.
Se nós nos referimos ao segundo sentido da palavra "bárbaro" - atos
cruéis, desumanos, a produção deliberada de sofrimento e a morte
deliberada de não-combatentes (em particular, crianças) - nenhum século
na história conheceu manifestações de barbárie tão extensas, tão
massivas e tão sistemáticas quanto o século XX. Certamente, a história
humana é rica em atos bárbaros, cometidos tanto pelas nações
"civilizadas" quanto pelas tribos "selvagens". A história moderna,
depois da conquista das Américas, parece uma sucessão de atos desse
gênero: o massacre de indígenas das Américas, o tráfico negreiro, as
guerras coloniais. Trata-se de uma barbárie "civilizada", isto é,
conduzida pelos impérios coloniais economicamente mais avançados.
Karl Marx era um dos críticos mais ferozes desses tipos de práticas
maléficas e destruidoras da modernidade, que para ele estão associadas
às necessidades de acumulação do capital. Em O Capital, especialmente
no capítulo sobre a acumulação primitiva, encontra-se uma crítica
radical dos horrores da expansão colonial: a escravização ou o
extermínio dos indígenas, as guerras de conquista, o tráfico de negros.
Essas "barbáries e atrocidades execráveis" - que segundo Marx (citando
de modo favorável M.W. Howitt) "não têm paralelo em qualquer outra era
da história universal, em nenhuma raça por mais selvagem, grosseira,
impiedosa e sem pudor que ela tenha sido" - não foram simplesmente
passadas aos lucros e perdas do progresso histórico, mas devidamente
denunciadas como uma "infâmia"3. Considerando algumas das
manifestações mais sinistras do capitalismo, como as leis dos pobres ou
os workhouses - estas "bastilhas de operários" -, Marx escreveu em 1847
esta passagem surpreendente e profética, que parece anunciar a Escola
de Frankfurt: "A barbárie reapareceu, mas desta vez ela é engendrada no
próprio seio da civilização e é parte integrante dela. É a barbárie
leprosa, a barbárie como lepra da civilização"4
Mas com o século XX, um limite é transgredido, passa-se a um nível
superior; a diferença é qualitativa. Trata-se de uma barbárie
especificamente moderna, do ponto de vista de seu etos, de sua
ideologia, de seus meios, de sua estrutura. Nós voltaremos a esse ponto.
A Primeira Guerra Mundial inaugurou esse novo estágio da barbárie
civilizada. Dois autores, os primeiros, soaram o sinal de alarme, em
1914-15: Roxa Luxemburgo e Franz Kafka. Apesar de suas evidentes
diferenças, eles têm em comum o fato de terem tido a intuição - cada um
à sua maneira - de alguma coisa sem precedente que estava para se
constituir no curso daquela guerra.
Ao usar a palavra de ordem "socialismo ou barbárie", Rosa Luxemburgo
em A crise da social-democracia, de 1915 (assinada com o pseudônimo
"Junius"), rompeu com a concepção - de origem burguesa, mas adotada
pela Segunda Internacional - da história como progresso irresistível,
inevitável, "garantido" pelas leis "objetivas" do desenvolvimento
econômico ou da evolução social. Essa palavra de ordem é sugerida por
certos textos de Marx ou de Engels, mas é Rosa Luxemburgo que dá a ela
essa formulação explícita e elaborada. Ela implica uma percepção da
história como processo aberto, como série de "bifurcações", onde o
"fator subjetivo" - consciência, organização, iniciativa - dos
oprimidos tornam-se decisivos. Não se trata mais de esperar que o fruto
"amadureça", segundo as "leis naturais" da economia ou da história, mas
de agir antes que seja tarde demais.
Porque o outro lado da alternativa é um sinistro perigo: a barbárie.
Em um primeiro momento ela parece considerar a "recaída na barbárie"
como "a aniquilação da civilização", uma decadência análoga àquela da
Roma antiga5. Mas logo ela se dá conta que não se trata de
uma impossível "regressão" a um passado tribal, primitivo ou
"selvagem", mas antes, de uma barbárie eminentemente moderna, da qual a
Primeira Guerra Mundial dá um exemplo surpreendente, bem pior em sua
desumanidade assassina que as práticas guerreiras dos conquistadores
"bárbaros" do fim do Império Romano. Jamais no passado tecnologias tão
modernas - os tanques, o gás, a aviação militar - tinham sido colocadas
ao serviço de uma política imperialista de massacre e de agressão em
uma escala tão imensa.
As intuições de Kafka são de uma natureza totalmente diferente. É
sob a forma literária e imaginária que ele descreve a nova barbárie.
Trata-se de uma novela intitulada A colônia penal: em uma colônia
francesa, um soldado "indígena" é condenado à morte por oficiais cuja
doutrina jurídica resume em poucas palavras a quintessência do
arbitrário: "a culpabilidade não deve jamais ser colocada em dúvida!".
Sua execução deve ser cumprida por uma máquina de tortura que escreve
lentamente sobre seu corpo com agulhas que o atravessam a frase "Honra
teus superiores".
O personagem central da novela não é nem o viajante que observa os
acontecimentos com uma hostilidade muda, nem o prisioneiro, que não
reage de modo nenhum, nem o oficial que preside a execução, nem o
comandante da colônia. É a máquina mesma.
Toda a narrativa gira em torno desse sinistro aparelho (Apparat),
que parece mais e mais, no curso da explicação detalhada que o oficial
dá ao viajante, como um fim em si mesmo. O Aparelho não está lá para
executar o homem, é sobretudo este que está lá pelo Aparelho, para
fornecer um corpo sobre o qual ele possa escrever sua obra-prima
estética, sua inscrição sangrenta ilustrada de "muitos florilégios e
ornamentos". O oficial mesmo é apenas um servidor da Máquina e,
finalmente, ele mesmo se sacrifica à esse insaciável Moloch6.
Em que "máquina de poder" bárbara, em que "aparelho da autoridade"
sacrificador de vidas humanas, pensava Kafka? A colônia penal foi
escrita em outubro de 1914, três meses após a eclosão da grande guerra.
Há poucos textos na literatura universal que apresentam de maneira tão
penetrante a lógica mortífera da barbárie moderna como mecanismo
impessoal.
Esses pressentimentos parecem se perder nos anos do pós-guerra.
Walter Benjamin é um dos raros pensadores marxistas a compreender que o
progresso técnico e industrial pode ser portador de catástrofes sem
precedentes. Daí seu pessimismo - não fatalista, mas ativo e
revolucionário. Em um artigo de 1929 ele definia a política
revolucionária como "a organização do pessimismo" - um pessimismo em
todas as linhas: desconfiança quanto ao destino da liberdade,
desconfiança quanto ao destino do povo europeu. E acrescenta
ironicamente: "confiança ilimitada somente no IG Farben e no
aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe"7. Ora, mesmo
Benjamin, o mais pessimista de todos, não podia adivinhar a que ponto
essas duas instituições iriam mostrar, alguns anos mais tarde, a
capacidade maléfica e destrutiva da modernidade8.
Pode-se definir como propriamente moderna a barbárie que apresenta as seguintes características:
- Utilização de meios técnicos modernos. Industrialização do
homicídio. Exterminação em massa graças às tecnologias científicas de
ponta.
- Impessoalidade do massacre. Populações inteiras - homens e
mulheres, crianças e idosos - são "eliminados", com o menor contato
pessoal possível entre quem toma a decisão e as vítimas.
- Gestão burocrática, administrativa, eficaz, planificada, "racional" (em termos instrumentais) dos atos bárbaros.
- Ideologia legitimadora do tipo moderno: "biológica", "higiênica", "científica" (e não religiosa ou tradicionalista)
- Todos os crimes contra a humanidade, genocídios e massacres do
século XX não são modernos no mesmo grau: o genocídio dos armênios em
1915, o genocídio levado a cabo pelo Pol Pot no Camboja, aquele dos
tutsis em Ruanda etc. associam, cada um de maneira específica, traços
modernos e traços arcaicos.
Os quatro massacres que encarnam de maneira mais acabada a
modernidade da barbárie são o genocídio nazista contra os judeus e os
ciganos, a bomba atômica em Hiroshima, o Goulag estalinista e a guerra
norte-americana no Vietnã. Os dois primeiros são provavelmente os mais
integralmente modernos: as câmaras de gás nazistas e a morte atômica
norte-americana contêm praticamente todos os ingredientes da barbárie
tecno-burocrata moderna.
Auschwitz representa a modernidade não somente pela sua estrutura de
fábrica de morte, cientificamente organizada e que utiliza as técnicas
mais eficazes. O genocídio dos judeus e dos ciganos é também, como
observa o sociólogo Zygmunt Bauman, um produto típico da cultura
racional burocrática, que elimina da gestão administrativa toda
interferência moral. Ele é, deste ponto de vista, um dos possíveis
resultados do processo civilizador como racionalização e centralização
da violência e como produção social da indiferença moral. "Como toda
outra ação conduzida de maneira moderna - racional, planificada,
cientificamente informada, gerida de forma eficaz e coordenada - o
Holocausto deixou para trás todos seus pretensos equivalentes
pré-modernos, revelando-os em comparação como primitivos, esbanjadores
e ineficazes. (...) Ele se eleva muito acima dos episódios de genocídio
do passado, da mesma forma que a fábrica industrial moderna está bem
acima da oficina artesanal...."9
A ideologia legitimadora do genocídio é ela também de tipo moderno,
pseudo-científico, biológico, antropométrico, eugenista. A utilização
obsessiva de fórmulas pseudo-medicinais é característica do discurso
anti-semita dos dirigentes nazistas, o que pode ser notado nas
conversações privadas deles. Numa carta a Himmler em 1942, Adolf Hitler
insistia: "A batalha na qual nós estamos engajados hoje é do mesmo tipo
que a batalha liderada, no século passado, por Pasteur e Koch. Quantas
doenças não tiveram sua origem no vírus judeu... Nós não encontraremos
nossa saúde sem eliminar os judeus".10
Em seu notável ensaio sobre Auschwitz11, Enzo Traverso
destaca, com palavras sóbrias, precisas e lúcidas, o contexto do
genocídio. Não se trata nem de uma simples "resistência irracional à
modernização", nem de um resíduo de barbárie antiga, mas de uma
manifestação patológica da modernidade, do rosto escondido, infernal,
da civilização ocidental, de uma barbárie industrial, tecnológica,
"racional" (do ponto de vista instrumental). Tanto a motivação decisiva
do genocídio - a biologia racial - quanto suas formas de realização -
as câmaras de gás - eram perfeitamente modernas. Se a racionalidade
instrumental não basta para explicar Auschwitz, ela é sua condição
necessária e indispensável. Encontra-se nos meios de exterminação
nazistas uma combinação de diferentes instituições típicas da
modernidade: ao mesmo tempo, a prisão descrita por Foucault, a fábrica
capitalista da qual falava Marx, "a organização científica do trabalho"
de Taylor, a administração racional/burocrática segundo Max Weber.
Este último tinha intuído, como sublinha Marcuse, a transformação da
razão ocidental em força destrutiva. Sua análise da burocracia como
máquina "desumanizada", impessoal, sem amor nem paixão, indiferente a
tudo aquilo que não é sua tarefa hierárquica, é essencial para
compreender a lógica reificada dos campos da morte. Isso vale também
para a fábrica capitalista, que estava presente em Auschwitz, ao mesmo
tempo nas oficinas de trabalho escravo da empresa IG Farben e nas
câmaras à gás, lugares de produção "em cadeia" de mortos. Mas a
"solução final" é irredutível à toda lógica econômica: a morte não é
nem uma mercadoria, nem uma fonte de lucro.
Traverso critica, de maneira muito convincente, as interpretações -
inspiradas, em um grau ou outro, pela ideologia do progresso - do
nazismo e do genocídio como produto da história do irracionalismo
alemão (Georges Lukács), de uma "saída" da Alemanha para fora do berço
ocidental (Jürgen Habermas) ou de um movimento de "descivilização"
(Entzivilisierung) inspirado por uma ideologia "pré-industrial"
(Norbert Elias). Se o processo civilizador significa, antes de tudo, a
monopolização pelo estado da violência - como o mostram, depois de
Hobbes, tanto Weber quanto Elias - é necessário reconhecer que a
violência do Estado está na origem de todos os genocídios do século XX.
Auschwitz não representa uma "regressão" em direção ao passado, em
direção a uma idade bárbara primordial, mas é realmente um dos rostos
possíveis da civilização industrial ocidental. Ele constitui ao mesmo
tempo uma ruptura com a herança humanista e universalista dos
Iluministas e um exemplo terrível das potencialidades negativas e
destrutivas de nossa civilização.
Se o extermínio dos judeus pelo Terceiro Reich é comparável a outros
atos bárbaros, nem por isso ele deixa de ser um evento singular. É
necessário recusar as interpretações que eliminam as diferenças entre
Auschwitz e os campos soviéticos, ou os massacres coloniais, os pogroms
etc.12 O crime de guerra que tem mais afinidades com
Auschwitz é Hiroshima, como compreenderam tão bem Günther Anders e
Dwight MacDonald: nos dois casos delega-se a tarefa a uma máquina de
morte formidavelmente moderna, tecnológica e "racional". Mas as
diferenças são fundamentais. Inicialmente, as autoridades americanas
não tiveram jamais como objetivo - como aquelas do Terceiro Reich -
realizar o genocídio de toda uma população: no caso das cidades
japonesas, o massacre não era, como nos campos nazistas, um fim em si
mesmo, mas um simples "meio" para atingir objetivos políticos. O
objetivo da bomba atômica não era o extermínio da população japonesa
como fim autônomo. Tratava-se sobretudo de acelerar o fim da guerra e
demonstrar a supremacia militar americana face à União Soviética. Em um
relatório secreto de maio de 1945 ao presidente Truman, o Target
Committee - o "Comitê de Alvo", composto pelos generais Groves,
Norstadt e do matemático Von Neumann - observa friamente: "A morte e a
destruição irão não somente intimidar os japoneses sobreviventes a
fazer pressão pela capitulação mas também (a bônus) assustar a União
Soviética. Em síntese, a América poderia terminar mais rapidamente a
guerra e, ao mesmo tempo, ajudar à moldar o mundo do pós-guerra"13.
Para obter esses objetivos políticos, a ciência e a tecnologia mais
avançadas foram utilizadas e centenas de milhares de civis inocentes,
homens, mulheres e crianças foram massacrados - sem falar da
contaminação pela irradiação nuclear das gerações futuras.
Uma outra diferença com Auschwitz é, sem dúvida, o número bem
inferior de vítimas. Mas a comparação das duas formas de barbárie
burocrático-militar é muito pertinente. Os próprios dirigentes
americanos estavam conscientes do paralelo com os crimes nazistas: em
uma conversa com Truman no dia 6 de junho de 1945, o secretário de
Estado, Stimson, relatava seus sentimentos: "Eu disse a ele que estava
inquieto com esse aspecto da guerra... porque eu não queria que os
americanos ganhassem a reputação de ultrapassar Hitler em atrocidade"14.
Em muitos aspectos, Hiroshima representa um nível superior de
modernidade, tanto pela novidade científica e tecnológica representada
pela arma atômica, quanto pelo caráter ainda mais distante, impessoal,
puramente "técnico" do ato exterminador: pressionar um botão, abrir a
escotilha que liberta a carga nuclear. No contexto próprio e asséptico
da morte atômica entregue pela via aérea, deixou-se para trás certas
formas manifestamente arcaicas do Terceiro Reich, como as explosões de
crueldade, o sadismo e a fúria assassina dos oficiais da SS. Essa
modernidade se encontra na cúpula norte-americana que toma - após ter
cuidadosa e "racionalmente" pesado os prós e os contras - a decisão de
exterminar a população de Hiroshima e Nagasaki: um organograma
burocrático complexo composto por cientistas, generais, técnicos,
funcionários e políticos tão cinzentos quanto Harry Truman, em
contraste com os acessos de ódio irracional de Adolf Hitler e seus
fanáticos.
No curso dos debates que precederam a decisão de lançar a bomba,
certos oficiais, como o general Marshall, declararam suas reservas, à
medida em que eles defendiam o antigo código militar, a concepção
tradicional da guerra, que não admitia o massacre intencional de civis.
Eles foram vencidos por um ponto de vista novo, mais "moderno",
fascinado pela novidade científica e técnica da arma atômica, um ponto
de vista que não tinha nada a ver com códigos militares arcaicos e que
não se interessava senão pelo cálculo de lucros e perdas, isto é, em
critérios de eficácia político-militar15. Seria necessário
acrescentar que um certo número de cientistas que tinham participado,
por convicção antifascista, nos trabalhos de preparação da arma
atômica, protestaram contra a utilização de suas descobertas contra a
população civil das cidades japonesas.
Uma palavra sobre o Goulag estalinista: se há muito em comum com
Auschwitz - sistema concentracionário, regime totalitário, milhões de
vítimas - ele se distingue pelo fato que o objetivo dos campos
soviéticos não era o extermínio dos prisioneiros mas sua exploração
brutal como força de trabalho escrava. Em outras palavras: pode-se
comparar Kolyma e Buchenwald, mas não o Goulag e Treblinka. Nenhuma
contabilidade macabra - como aquela fabricada por Stéphane Courtois e
outros anticomunistas profissionais - pode apagar essa diferença.
O Goulag era uma forma de barbárie moderna na medida em que era
burocraticamente administrado por um Estado totalitário e colocado ao
serviço de projetos estalinistas faraônicos de "modernização" econômica
da União Soviética. Mas ele se caracteriza também por traços mais
"primitivos": corrupção, ineficácia, arbitrariedade, "irracionalidade".
Ele se situa por essa razão em um degrau de modernidade inferior ao
sistema concentracionário do Terceiro Reich.
Enfim, a guerra americana no Vietnã, atroz pelo número de vítimas
civis exterminadas pelos bombardeios, o napalm ou as execuções
coletivas, constitui, em vários aspectos, uma intervenção extremamente
moderna: fundada sobre uma planificação "racional" - com a utilização
de computadores, e de um exército de especialistas - ela mobiliza um
armamento muito sofisticado, na ponta do progresso técnico dos anos 60
e 70: B-52, napalm, herbicidas, bombas à fragmentação etc.16
Essa guerra não foi um conflito colonial como os outros: bastava
lembrar que a quantidade de bombas e explosivos lançados sobre o Vietnã
foi superior àquela utilizada por todos os beligerantes durante a
Segunda Guerra Mundial! Como no caso de Hiroshima, o massacre não era
um objetivo em si, mas um meio político; e se a cifra de mortos é bem
superior àquela das duas cidades japonesas, não se encontra no Vietnã
aquela perfeição da modernidade técnica e impessoal, aquela abstração
científica da morte que caracteriza a morte atômica"17.
A natureza contraditória do "progresso" e da "civilização" moderna
se encontra no coração das reflexões da Escola de Frankfurt. Em
Dialética do Iluminismo (1944), Adorno e Horkheimer constatam a
tendência da racionalidade instrumental de se transformar em loucura
assassina: a "luminosidade gelada" da razão calculista "carrega a
semente da barbárie". Em uma nota redigida em 1945 para Minima Moralia,
Adorno utiliza a expressão "progresso regressivo" tentando de dar conta
da natureza paradoxal da civilização moderna.18
Entretanto, essas expressões ainda são tributárias, apesar de tudo,
da filosofia do progresso. Na verdade, Auschwitz e Hiroshima não são em
nada uma "regressão à barbárie" - ou mesmo uma "regressão": não há nada
no passado que seja comparável à produção industrial, científica,
anônima e racionalmente administrada da morte em nossa época. Basta
comparar Auschwitz e Hiroshima com as práticas guerreiras das tribos
bárbaras do século IV para se dar conta que eles não têm nada em comum:
a diferença não é somente na escala, mas na natureza. É possível
comparar as práticas mais "ferozes" dos "selvagens" - morte ritual do
prisioneiro de guerra, canibalismo, redução das cabeças etc. - com uma
câmara de gás ou uma bomba atômica? São fenômenos inteiramente novos,
que não seriam possíveis a não ser no século XX.
As atrocidades de massa, tecnologicamente aperfeiçoadas e
burocraticamente organizadas, pertencem unicamente à nossa civilização
industrial avançada. Auschwitz e Hiroshima não são mais "regressões":
são crimes irremediavelmente e exclusivamente modernos.
Existe entretanto um domínio específico da "barbárie civilizada" em
que se pode efetivamente falar de regressão: a tortura. Como destaca
Eric Hobsbawn em seu admirável ensaio de 1994, "Barbárie: um guia para
o usuário": "A partir de 1782 a tortura foi formalmente eliminada do
procedimento judiciário dos países civilizados. Em teoria, ela não era
mais tolerada nos aparelhos coercitivos do Estado. O preconceito contra
essa prática era tão forte que ela não pôde retornar após a derrota da
Revolução Francesa que a havia seguramente abolido (...) Pode-se
suspeitar que nos redutos da barbárie tradicional, que resistem ao
progresso moral - por exemplo as prisões militares ou outras
instituições análogas - ela de fato não desapareceu..." Ora, no século
XX, sob o fascismo e o estalinismo, nas guerras coloniais - Argélia,
Irlanda etc. - e nas ditaduras latino-americanas, a tortura é de novo
empregada em grande escala.19
Os métodos são diferentes - a eletricidade substitui o fogo e os
torniquetes - mas a tortura de prisioneiros políticos tornou-se, no
curso do século XX, uma prática rotineira - mesmo se não-oficial - de
regimes totalitários, ditatoriais, e mesmo, em certos casos (as guerras
coloniais), "democráticos". Nesse caso, o termo "regressão" é
pertinente, na medida em que a tortura era praticada em inúmeras
sociedades pré-modernas, e também na Europa, da Idade Média até o
século XVIII. Um uso bárbaro que o processo civilizador parecia ter
suprimido no curso do século XIX voltou no século XX, sob uma forma
mais "moderna" - do ponto de vista das técnicas - mas não menos
desumana.
Levar em conta a barbárie moderna do século XX exige o abandono da
ideologia do progresso linear. Isso não quer dizer que o progresso
técnico e científico é intrinsecamente portador de malefício - nem
tampouco o inverso. Simplesmente, a barbárie é uma das manifestações
possíveis da civilização industrial/capitalista moderna - ou de sua
cópia "socialista" burocrática.
Não se trata também de reduzir a história do século XX a seus
momentos bárbaros: essa história conheceu também a esperança, as
sublevações dos oprimidos, as solidariedades internacionais, os
combates revolucionários: México, 1914; Petrogrado, 1917; Budapeste,
1919; Barcelona, 1936; Paris, 1944; Budapeste, 1956; Havana, 1961;
Paris, 1968; Lisboa, 1974; Manágua, 1979; Chiapas, 1994; foram alguns
dos momentos fortes - mesmo se efêmeros - dessa dimensão emancipadora
do século. Eles constituem pontos de apoio preciosos à luta das
gerações futuras por uma sociedade humana e solidária.
Notas:
1 Norbert Elias, La Dynamique de l'Occident, Paris,
Calmann-Lévy, 1975, pp.181-190. A referência ao combate abissínio soa
estranha no momento em que a Etiópia combatia pela sua liberdade contra
a invasão colonial do fascismo italiano, portador de uma pretensa
missão "civilizadora".
2 Norbert Elias, La civilisation des moeurs, Paris, Calmann-Lévy, 1973, p.280.
3 Marx, Le Capital, vol. I, p.557-558, 563.
4 K. Marx, "Arbeitslohn", 1847, Kleine Ökonomische Schriften, Berlin, Dietz Verlag, 1955, p.245.
5 R. Luxemburgo, A crise da social-democracia, 1915.
6 Kafka, "In der Strafkolonie", Erzählung und kleine Prosa, N. York, Schocken Books, 1946, pp.181-113.
7 W. Benjamin, "O surrealismo. O último instante de
inteligência européia", 1929. Mythe et violence, Paris, Letras Novas,
1971, p.312
8 Lembremos que o grande truste químico IG Farben não
somente utilizou massivamente a mão-de-obra escrava em Auschwitz mas
também produziu o gás Zyklotron B, que servia para exterminar as
vítimas do sistema concentracionário.
9 Zygmut Bauman, Modernity and the Holocaust, London, Polity Press, 1989, p.15, 28.
10 Citado por Zygmunt Bauman, op.cit, p.71
11 Enzo Traverso, L'Histoire déchirée. Essai sur Auschwitz et les intellectuels, Paris, Cerf, 1997
12 Sobre esse assunto, remeto à excelente colocação de
Enzo Traverso, "A singularidade de Auschwitz. Hipóteses, problemas e
derivações da pesquisa histórica". Pour une critique de la barbarie
moderne. Ecrits sur l'histoire des Juifs e de l'antisémitisme,
Lausanne, Ed. Page deux, 1997.
13 Citado dos arquivos históricos recentemente abertos ao
público em Barton J. Bernstein, "The Atomic Bombings Reconsidered",
Foreign Affairs, fevereiro 1995, p. 143.
14 Ibid, p.146.
15 Sobre as reservas de Marshall, cf. Barton J. Bernstein, Op.cit, p.143.
16 De fato, é inteiramente racional se a "razão"
significa racionalidade instrumental, aplicar a força militar
norte-americana, os B-52, o napalm e todo o resto no Vietnã "sob
dominação comunista" (claramente um "objeto indesejável"), como o
"operador" para o transformar em "objeto desejável". Joseph Weizenbaum,
"Computer Power and Human Reason". From Judgmente to Calculation, S.
Francisco, W.H. Freeman, 1976, p.252
17 Outras guerras coloniais tiveram lugar no século XX -
na Indochina, na Argélia, na África colonial portuguesa etc., mas
nenhuma atingiu o grau de modernidade como aquela do Vietnã. Em
comparação, elas parecem arcaicas, primitivas.
18 T.W.Adorno, M. Horkheimer, La Dialectique de la
raison, Paris, Gallimard, 1974, p.48 e T.W. Adorno, Minima Moralia,
Paris, Payot, 1983, p.134
19 E. Hobsbawn, Barbarism: An User's Guide. On History, London, Weidenfelds and Nicholson, 1997, pp.259-263.
Tradução: Alessandra Ceregatti
Michael Löwy, brasileiro, é sociólogo, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França
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