"Corumbiara", vencedor do Festival de Gramado: Um filme político
A cerimônia de premiação da 37ª edição do Festival de Cinema de Gramado ainda estava para acontecer, mas o diretor Vincent Carelli já era um dos mais cumprimentados pelo documentário Corumbiara. O grito de denúncia do filme comoveu a plateia do evento, dando a ele uma expectativa na conquista de Kikitos que viriam a se confirmar com os prêmios de melhor filme, júri popular, estudantes de cinema, direção e montagem, este pelo trabalho de Mari Corrêa.
Nesta entrevista ao Diario de Pernambuco, dada horas antes da cerimônia, Carelli explica como surgiu seu trabalho com as câmeras, relata suas experiências com os índios, interpreta algumas opções do filme, fala sobre a questão indígena no país e convida os envolvidos no massacre de Corumbiara a abrirem um processo contra ele.
O filme Corumbiara, produção pernambucana rodada em Rondônia, é fruto do esforço de 20 anos do indigenista Carelli, coordenador da organização não-governamental Vídeo nas Aldeias, com sede em Olinda.
Assim como seu trabalho na ONG, o documentário foi feito com o objetivo de usar a câmera para fazer justiça onde os meios convencionais das leis se mostraram ineficientes. No filme, Carelli tenta resgatar a versão dos índios sobre o massacre na Gleba Corumbiara, promovido pelos latifundiários da região para ampliar a extensão de suas terras.
Ainda que a urgência do tema dispensasse quaisquer preocupações estéticas, Carelli consegue organizar os trâmites burocráticos envolvendo a interdição de terras por meio de uma narrativa cinematográfica. Com ritmo, suspense, responsabilidade ética e sutileza para registrar os meandros culturais dos índios encontrados.
O que faz o documentário transcender a questão política para avançar em questões antropológicas, tanto em relação aos índios, como em nossa própria sociedade. O filme revela a torre de Babel em que vivemos, a ausência de diálogo entre as diferentes tribos indígenas, do homem branco com os índios, da Funai com os fazendeiros e madeireiros, com outras instâncias públicas como a Justiça, a polícia e o Ibama.
Confira abaixo a entrevista de Vincent Carelli:
Como foi o início do seu trabalho com vídeo e essa relação com os índios?
O vídeo nasce de uma militância política. Em novembro completo 40 anos de indigenista. Minha fotografia já foi inspirada nesse trabalho com os índios, porque entrei em contato com eles aos 16 anos, e isso revolucionou minha vida. Já que tive esse privilégio, senti a necessidade de compartilhar. Depois fui procurado por um cineasta, o Andrea Tonacci, que fez Serras da desordem, para um projeto de usar o vídeo como elo entre os povos. Mas não vingou porque ainda era muito cedo, a tecnologia era difícil, cara.
Quando saiu o VHS camcorder, comecei a revisitar os povos com quem já tinha trabalhado, com lideranças visionárias e projetos de resistência cultural, oferecendo minha câmera para seus projetos. Nessa trajetória, fiz uma série de vídeos que tratavam do videoprocesso das comunidades e serviram como meu braço de financiamento. Depois que comecei vi que, essa questão dos índios assumirem a produção, era um caminho já indicado em muitos lugares. Então começamos a implantar oficinas, de formação e captação de cineastas indígenas. Já estamos há 10 anos nessa linha.
Como é a relação dos índios com a própria imagem?
Tem uma série de tabus. A cultura é um processo dinâmico, o fascínio pela imagem é tão grande que esses tabus são revistos e reinterpretados. Nos oiampis, eles logo disseram que o perigoso era a imagem em preto e branco, mas colorido estava tudo bem. Eles aderem, esse jogo de espelho provoca uma revisão. Você sempre tem uma outra imagem de você, quando nos vemos, há o confronto com a autoimagem.
Há um processo de ajuste, será que era assim que gostaria de me ver? Isso rebate, provoca reações, uma consciência do processo de mudança da cultura. Também reforça o discurso deles, estimulava essas comunidades a fazer um exercício de memória, de reencenar, atualizar seu rituais.
Corumbiara levou 20 anos para ser feito. Como foi o processo de edição, que envolveu horas de filmagem e diversas tecnologias?
Começamos pelo VHS, fomos parao super-VHS, passamos pelo high eight, Betacam, mini-DV. Em 2006 nem quis filmar em HD para não criar mais um problema. O Corumbiara acompanhou todo esse processo do Vídeo nas Aldeias, correndo por fora porque meu foco era a mídia com os índios.
Minha perspectiva era justamente o contrário, queria fugir dessa visão miserabilista de que os índios estão acabando. Eu trabalhava no sentido da recuperação das coisas. O Corumbiara atravessou meu caminho, correu por fora, é outra linha, uma história arrasadora.
Corumbiara já surgiu como um filme? Quando você percebeu que esse material poderia se transformar em documentário?
Ele sempre foi pensado que, algum dia, daria um filme. Ao longo do processo, a imagem foi fundamental. A partir de 1995, quando fizemos o contato com esses índios e jogamos na televisão, no dia seguinte o juiz de Porto Velho assinou a interdição da área. A imagem serviu para resguardar os sobreviventes. Mesmo que não tivesse o filme, a filmagem cumpriu seu papel histórico.
No ano seguinte, a gente descobriu que um fazendeiro, ao ver as imagens da televisão, decidiu acabar com o terceiro grupo de índios porque, se a gente descobrisse, ele iria perder uma parte da fazenda. Isso gerou outro massacre. A gente foi chegando tão perto das evidências, que cheguei a pensar que conseguiríamos pegar os caras. Mas não aconteceu, o caso nunca foi investigado.
Eram horas de material, o filme ficou engavetado. Anos depois veio uma jornalista da Holanda escrever um livro sobre essa história e, de repente, veio me entrevistar. Fiquei emocionado ao lembrar. Então fiz a viagem de 2006 e parti para a edição.
Como tem sido a recepção ao filme?
Em geral, os gringos se interessam mais pelos índios do que os brasileiros. Mas nesse caso, o filme está sendo feito para o Brasil. Hoje percebo que pouco importa a impunidade. Contar essa história é mais importante, proporcionar esse testemunho, esse choque emocional. É um caso emblemático, raríssimas vezes se conseguiu documentar um massacre.
Ficcionou-se, mas o documentário tem uma força além da ficção, porque é real, tem um impacto enorme sobre a plateia. Esse gesto de apertar o gatilho é o mesmo gesto do bandeirante caçando índio, uma atitude que se perpetua. O filme é uma reflexão para o Brasil sobre a dívida histórica com os índios.
Houve alguma reclamação por parte dos madeireiros e fazendeiros envolvidos?
Tive esse retorno recentemente quando voltei à área do índio do buraco, logo depois do filme passar no festival É tudo verdade. Quando o filho do fazendeiro percebeu que eu tinha feito o filme, começou a me xingar, quis me bater na hora. Todas as entrevistas foram consentidas, mas as imagens do fazendeiro que mandou atirar no índio do buraco foi uma câmera escondida.
Em tese, ele poderia me processar, foi um risco que assumi. Acharia até bom, não só para o filme. Não acredito que ele tenha interesse em fazer isso, porque finalmente se abriria um processo judicial sobre o caso e teríamos que ir à questão do massacre. Eles devem estar uma arara com o filme, mas por enquanto está todo mundo quieto.
Por que a opção de assumir a narração em primeira pessoa, com comentários e reflexões?
O fim imaginado do filme era o julgamento e os caras indo para cadeia, mas não se concretizou. E também porque o filme é a história da minha vida, foram 20 anos, marcou minha vida. Só podia ser na primeira pessoa, não tinha como ser uma voz off. Em 2006, foi muito emocionante a maneira como eles nos trataram.
Para mim, eles eram parte de minha vida e percebi que eu fazia parte da deles. Tem uma coisa de vivência, que acrescenta ao filme. Não foi um comentário de fora, foi uma das histórias mais emocionantes e tristes que já vivi.
O foco do filme é a questão fundiária, da reserva indígena, mas também tem a preocupação de registrar os rituais dos índios. Por que isso?
Primeiro quis transmitir a dificuldade de comunicação, foi algo muito doloroso estar ali e não conseguir falar com eles. Surgiu uma discussão aqui em Gramado de que esse filme era muito etnográfico e não deveria estar no festival.Corumbiara não é etnográfico, é um filme político.
Claro, tem descrições, é importante você dar essa perspectiva de pessoas que vivem em outro mundo, dar profundidade a essa diferença. Acho que essa atitude de tentar enclausurar a questão indígena a antropólogos e especialistas, guardadas as devidas proporções, é a mesma atitude das autoridades que jogaram esse crime de genocídio para debaixo do tapete. A importância de trazer esse filme para Gramado é justamente de romper esse gueto e jogar ele para o público.
Fonte: Diario de Pernambuco. Fusão de matérias de Thiago Corrêa publicadas nos dias 14 e 18 de agosto de 2009
Créditos: sitio vermelho