Integrantes do Coletivo Intervozes falam sobre
estudo que lança luz sobre o funcionamento dos órgãos reguladores do
setor em 10 países
Eduardo Sales de Lima da Redação do Brasil de Fato
Toda
vez que se fala sobre a necessidade de se regular a comunicação no
Brasil, os grandes meios do país disparam: tal medida seria
“ditatorial”, “atentado à liberdade de expressão”, “cerco à mídia”.
Ignoram, ou fingem ignorar, que mecanismos de controle sobre o setor
existem em muitas nações do mundo, inclusive aquelas consideradas
exemplos de democracia para esses mesmos meios.
O
Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social realizou um
levantamento sobre o funcionamento de órgãos reguladores que atuam sobre
a rádio e a televisão em 10 países. O estudo trouxe à tona o caráter
independente desses órgãos, com ênfase nas questões de garantia de
competição, gestão do espectro e regulação de conteúdo.
Os
países estudados foram Reino Unido, França, Canadá, Estados Unidos,
Bósnia e Herzegovina, Argentina, Uruguai, Alemanha, Espanha (com um
capítulo especial sobre a Catalunha) e Portugal. A seguir, leia uma
entrevista, via correio eletrônico, com Ramênia Vieira da Cunha e
Sivaldo Pereira, ambos pesquisadores responsáveis pela pesquisa.
Brasil
de Fato – Dos países que vocês pesquisaram, qual (ou quais)
apresentaram uma estrutura de regulação de mercado e conteúdo que mais
lhe(s) chamaram a atenção positivamente? Por quê?
Sivaldo Pereira – Podemos
apontar, por exemplo, a independência e a efetividade do modelo
britânico com o Ofcom (Departamento de Comunicação) e o modelo
bósnio-herzegovino, com a Agência Regulatória da Comunicação (CRA). O
Ofcom, por exemplo, busca concretizar o ideal de uma agência autônoma
sem perder em força regulatória do Estado. Possui um código de qualidade
de conteúdo para a radiodifusão que é constantemente debatido e
atualizado e que dá as diretrizes para o bom andamento dos sistemas de
comunicação, chegando inclusive a aplicar uma média de 18 multas por ano
a empresas infratoras. Veja que ninguém chama isso de censura, nem mão
de ferro do Estado, nem ditadura da esquerda, como se fala no Brasil:
nada mais é do que o Estado de Direito sendo cumprido.
Na
Bósnia e Herzegovina, a criação de uma agência regulatória que busca
cumprir os princípios de qualidade e ética à risca é justamente uma
resposta ao trauma que o país sofreu devido ao mal uso da comunicação de
massa no contexto da guerra, considerado por muitos especialistas um
dos principais elementos que levaram o país ao conflito. Esses sistemas,
de algum modo, preveem formas de participação do cidadão no sistema,
aproximando-se, assim, do interesse do público.
Ramênia Vieira da Cunha – A
Alemanha me chamou muito a atenção, por manter uma estrutura com
autoridades de regulação da mídia em cada estado da federação (são 16
estados regulados por 14 autoridades de mídia – duas delas têm
jurisdição sobre dois estados). Isso torna a regulação mais adaptada à
realidade de cada uma dessas regiões, cabendo à associação nacional das
autoridades (a ALM) o papel de agente regulador das transmissões e
coberturas de abrangência nacional. A preocupação com a proteção à
criança e ao adolescente também chama a atenção na legislação alemã.
Na
Espanha, é a defesa contra a discriminação da mulher que ganha um bom
espaço na regulação do conteúdo e do funcionamento das emissoras de
radiodifusão. No Uruguai, ainda que o marco regulatório ainda esteja em
discussão, o modelo atual prevê a regulação das telecomunicações e da
comunicação audiovisual por um único órgão, o que elimina eventuais
choques de competências entre organismos distintos e pode ser fator
positivo para o controle efetivo sobre o funcionamento das emissoras.
No
geral, como funciona a regulação de conteúdo nos países pesquisados por
você? As agências reguladoras são, de fato, independentes?
Sivaldo
– Os países que conseguem hoje ter melhor qualidade de conteúdo são
aqueles que possuem códigos que buscam cristalizar princípios aos quais
os meios estão submetidos democraticamente. Observe que não se trata de
impor quais conteúdos devem ou não ser veiculados pelos meios, pois isso
implicaria em podar a criatividade e a liberdade de expressão. Na
verdade, trata-se de garantir que os conteúdos sejam plurais, diversos e
que respeitem questões como equilíbrio de gênero, étnico, regional e
político.
Ramênia – Há
características comuns entre os agentes reguladores pesquisados. Uma
delas é a busca pela independência em relação às empresas de
comunicação, públicas ou privadas, e aos governos. O Executivo e o
Legislativo participam, em maior ou menor grau, da indicação dos
componentes dos órgãos reguladores, geralmente com participação prévia
da sociedade. De qualquer forma, a maior parte dos países impede que os
órgãos tenham como diretores pessoas com interesses econômicos ligados
direta ou indiretamente ao setor regulado. O problema é montar um
sistema legal que consiga identificar plenamente essas relações de
interesses.
De forma geral, os organismos de
regulação têm atuação tanto sobre o licenciamento das emissoras quanto
sobre o mercado – em alguns casos, como na Alemanha, com controle sobre a
concentração de poder econômico e político, pelo menos em termos
teóricos. Esses órgãos também determinam a existência de infrações à lei
e aplicam as respectivas sanções. Em termos de regulação de conteúdo,
os organismos de regulação agem a partir de denúncias feitas pelo
público ou por meio do monitoramento da programação pós veiculação. Ou
seja, não ocorre nenhum tipo de censura prévia nos países pesquisados.
A
proibição de que os órgãos de regulação tenham como diretores pessoas
com interesses econômicos ligados direta ou indiretamente ao setor
regulado me parece algo muito distante da realidade brasileira (leia
matéria sobre um possível marco regulatório no Brasil na página 11). O
Brasil já apresenta um acúmulo no debate que possa pressionar os poderes
públicos para a criação de uma agência com um caráter participativo de
toda a sociedade?
Ramênia – O
Brasil está iniciando um processo. O debate existe, embora ainda muito
restrito às universidades e às organizações não governamentais que
militam na área. Mas é um processo que vai avançar, certamente. Claro
que, pelas características das empresas de comunicação em atividade no
Brasil e pela fase de desregulamentação das comunicações verificada na
segunda metade do século passado, será um processo mais semelhante ao
instalado na Argentina – de disputas acirradas de poder e de ações
desesperadas por parte das empresas para evitar a perda da hegemonia –
do que a relativa tranquilidade com que a regulamentação foi
estabelecida na Europa, a partir de diretivas da União Europeia.
Sivaldo – Essa
cultura política que envolve participação e autonomia ainda é um
desafio no Brasil. Órgãos como a Anatel (Agência Nacional de
Telecomunicações) buscam autonomia mas não se abrem efetivamente para a
participação do cidadão comum. Isso acaba repercutindo – ou reforçando –
um perfil demasiadamente técnico-econômico. Algo claramente sentido na
hora de a agência regular o setor das telecomunicações, por exemplo: ao
invés de priorizar o mérito de um “player” em cumprir horizontes e
princípios constitucionais valoriza-se, apenas, sua robustez enquanto
empresa. Mas creio que estamos num momento importante de se pressionar
para que haja um modelo regulatório que triangule participação,
autonomia e efetividade, como ocorre em qualquer país democrático. Por
isso que o debate sobre regulação dos meios de comunicação não pode ser
mais estigmatizado como violação à liberdade de imprensa. É simplesmente
o Estado de Direito sendo posto a funcionar. Empresas de comunicação
das diversas áreas como impresso, TV, rádio, telefonia, internet não
estão acima da lei: precisam cumprir regras e prestar contas de suas
atividades, responder por elas publicamente. Toda democracia pressupõe
veículos de comunicação livres, mas também pressupõe que os mesmos
estejam qualificados para cumprirem suas funções públicas ao invés de
servir a interesses privados de grupos econômicos ou políticos.
Alguns
países trabalham ainda com questões de imparcialidade e pluralidade de
visões na cobertura jornalística. No Brasil, a grande mídia prima por um
jornalismo que não é plural, isso é fato. Nesse setor, nosso país
estaria muito atrasado em relação aos países pesquisados?
Sivaldo –
Sim. O Brasil está muito aquém de um modelo de regulação sofisticado em
termos democráticos. Na verdade, mal temos regulação no setor. Veja que
caiu a Lei de Imprensa, que não era boa, mas ficamos na várzea... sem
regulação nenhuma para o setor, o que é ainda pior. E na radiodifusão e
telecomunicações, onde sobrou alguma regulação precária, prevalece uma
omissão institucionalizada, como é o caso da prática já histórica do
Ministério das Comunicações ou um tecnicismo econômico fechado em si
mesmo, como é o caso da Anatel.
O problema é que
essa mistura de selva regulatória, omissão e tecnicismo não é mais
sustentável. Não mais nesses tempos de convergência tecnológica. E, para
piorar, o Brasil ainda luta para ter um sistema público de comunicação,
aquele de forte presença, autonomia e que não possua fins lucrativos e
tenha independência em relação ao governo (a exemplo da NHK, no Japão, o
sistema ARD e ZDF da Alemanha ou a famosa BBC britânica).
Em
solo brasileiro, prevaleceu uma distorção em que há um
hiperdesenvolvimento de um sistema de comunicação privado, isto é, com
fins lucrativos, algo que não ocorre em boa parte de países
democraticamente desenvolvidos. E falo no sentido clássico de “public
broadcast” (radiodifusão pública), em que há investimento público
significativo que mantém um sistema de comunicação qualificado e
independente. Algo diferente, por exemplo, de um veículo estatal
diretamente subordinado ao governador ou presidente. No Brasil, a
criação da EBC já foi um avanço. Porém, ainda temos poucos investimentos
e é preciso aumentar a participação civil no controle da empresa,
desvinculando-a ainda mais do governo e dando meios para se transformar
numa grande rede que possa equilibrar-se ao sistema comercial hoje
preponderante no país.
Sivaldo Pereira da Silva é
PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal
da Bahia, professor do Departamento de Comunicação da Universidade
Federal de Alagoas e membro do Intervozes.
Ramênia Vieira da Cunha é jornalista e membro do Intervozes.