Leandro Fortes - Brasiliaeuvi
Há alguns dias, lancei na minha página do Facebook uma idéia que venho acalentando há tempos, desde que encerrei um curso de extensão para uma faculdade privada de jornalismo, aqui em Brasília. O curso, de Técnica Geral de Jornalismo, reuniu pouco mais de 10 alunos, basicamente, porque era muito caro. Embora tenha sido uma turma de bons estudantes, gente verdadeiramente animada e interessada no ofício, me senti desconectado da real intenção do curso, que era de fazer um contraponto de método, opinião e visão ideológica a esse jornalismo que aí vemos, montado em teses absurdas, em matérias incompletas e mentirosas, omissas em tudo e contra todos, a serviço de um pensamento conservador, reacionário e golpista disseminado, para infelicidade geral, como coisa normal. Não é. E é sobre isso que eu queria falar enquanto ensinava, dia a após dias, os fundamentos práticos da pauta, da entrevista, da redação jornalística, da nobre função do jornalista na sociedade, no Brasil, na História.
Perguntei, então, no Facebook, o que estudantes de jornalismos e
jornalistas formados achariam de eu transferir essas aulas para um
espaço barato e democrático, capaz de levar esses conhecimentos a muito
mais gente, sobretudo ao estudante pobre – e, quem sabe, credenciar
também os pobres a brigar por uma vaga nas redações, que se tornaram
ambientes muito elitistas. Encaretadas por manuais de doutrina e
comportamento, adestradas pela conduta neoliberal dos anos 1990, quando
passaram a responder diretamente pelas demandas do Departamento
Comercial, as redações brasileiras se desprenderam da ação política, dos
movimentos sociais, do protagonismo histórico a favor dos direitos
humanos e da luta contra a desigualdade. Passaram, sim, a reproduzir um
universo medíocre de classe média, supostamente a favor de uma
modernidade pós-muro de Berlim, onde bradar contra privatizações e a
adoração ao deus mercado passou a ser encarado como esquerdismo
imperdoável e anacrônico.
Não por outra razão, os movimentos corporativos a favor da manutenção
da obrigatoriedade do diploma de jornalista, que resistiram a todo tipo
de investida patronal ao longo de duas décadas, foram definitivamente
golpeados com o apoio e, em parte, a omissão, da maioria dos jovens
profissionais de imprensa, notadamente os bem colocados em redações da
chamada grande mídia. Vale lembrar que o jornalismo é, provavelmente, a
única profissão do mundo onde existem profissionais que pedem o fim do
próprio diploma. Há muitas nuances, claro, nessa discussão, inclusive
porque há gente muito boa que, historicamente, se coloca contra o
diploma, sobretudo velhos jornalistas criados em velhas e românticas
redações, cenas de um mundo que, infelizmente, não existe mais.
Na essência, o fim da obrigatoriedade do diploma não é uma demanda de
jornalistas, mas de patrões, baseada num argumento falacioso de
liberdade de expressão – na verdade, de opinião –, quando a verdadeira
discussão está, justamente, na formação acadêmica dos repórteres. E há
uma distância abissal entre opinião e reportagem, porque a primeira
qualquer um tem, enquanto a segunda não é só fruto de talento, mas de
aprendizado, técnica e repetição.
Nas grandes empresas, o fim da obrigatoriedade do diploma coroou uma
estratégia que tem matado o jornalismo: a proliferação de cursinhos
internos de treinees, tanto para estudantes como para recém-formados,
cuja base de orientação profissional é a competitividade a qualquer
custo, um conceito puramente empresarial copiado, sem aparas, do
decadente yupismo americano. Digo que tem matado porque esses cursinhos
de monstrinhos competitivos relegam o papel universal do jornalista ao
segundo plano, quando não a plano algum. A idéia de que o jornalista
deva ser um profissional solidário, inserido na sociedade para lhe
decifrar os dramas e transmiti-los a outros seres humanos passou a ser
um devaneio, um delírio socialista a ser combatido como a um inimigo.
Para justificar essa sanha, reforça-se o mito da isenção e da
imparcialidade de uma mídia paradoxalmente comprometida com tudo, menos
com a sua essência informativa, originalmente baseada no universalismo e
no compromisso com o cidadão.
Na outra ponta, o fim da obrigatoriedade do diploma abriu a porteira
para jagunços e capangas ocuparem as redações da imprensa regional,
longe da fiscalização da lei e dos sindicatos, alegremente autorizados a
fazer, literalmente, qualquer coisa com qualquer pessoa. Mesmo para o
novo modelo de jornalismo que se anuncia na internet, baseado em
disseminação mútua de informações primárias, como no caso dos vazamentos
do Wikileaks, haverá sempre a necessidade do tratamento jornalístico
dos conteúdos. E, para esse serviço, não há outro trabalhador
credenciado senão um bom repórter treinado e formado para essa missão.
Formação esta que, insisto, deve ser feita na academia e reforçada na
experiência diária da reportagem.
Recentemente, li sobre a criação, em 2010, do Instituto de Altos
Estudos em Jornalismo, sob os auspícios da Editora Abril. Entre os
mestres do tal centro estavam o dono da editora, Roberto Civita,
mantenedor da Veja, e Carlos Alberto Di Franco, do Master de Jornalismo,
uma espécie de Escola das Américas da mídia nacional voltada para a
formação de “líderes” dentro das redações. Di Franco, além de tudo, é um
dos expoentes, no Brasil, da ultradireitista seita católica Opus Dei, a
face mais medieval e conservadora da Igreja Católica no mundo.
Sinceramente, não vejo que “altos estudos”, muito menos de jornalismo, podem sair de um lugar assim.
Sinceramente, não vejo que “altos estudos”, muito menos de jornalismo, podem sair de um lugar assim.
Não tenho dúvidas de que a representação do tal instituto não é
acadêmica, embora seja dirigido por Eugênio Bucci, ex-presidente da
Radiobrás no governo do PT, renomado estudioso da imprensa no Brasil.
Trata-se de uma representação fundamentalmente ideológica, a reforçar as
mesmíssimas estruturas de poder das redações, estruturas
ultraverticalizadas, essencialmente antidemocráticas e personalistas,
onde a possibilidade de ascensão funcional, sobretudo a cargos de
chefia, está diretamente ligada à capacidade de ser subserviente aos
patrões e bestas-feras com os subordinados.
Felizmente, o surgimento da internet deu vazão a outro ambiente
midiático, regido por outras regras e demandas, um devastador
contraponto ao funcionamento hermético das grandes redações e ao poder
hegemônico da velha mídia brasileira, inclusive de seus filhotes
replicadores e retransmissores Brasil adentro. O fenômeno dos blogs e
sua capacidade de mobilização informativa é só a parte mais visível de
um processo de reordenamento da comunicação social no mundo. As redes
sociais fragmentaram a disseminação de notícias, fatos, dados
estatísticos, informes e informações em um nível adoravelmente
incontrolável, criando um ambiente noticioso ainda a ser desbravado por
novas gerações de repórteres que, para tal, precisam ser treinados e
apresentados a novas técnicas e, sobretudo, a novas idéias.
A “era do aquário”, para ficar numa definição feliz do jornalista
Franklin Martins – aliás, contrário à obrigatoriedade do diploma –, está
prestes a terminar. O jornalismo decidido por cúpulas restritas, com
pouco ou nenhum apego à verdade dos fatos, está reduzida a um universo
patético de mau jornalismo desmascarado instantaneamente pela
blogosfera, vide a versão rocambolesca da TV Globo sobre a bolinha de
papel na cabeça de José Serra ou a farsa do grampo sem áudio que uniu,
numa mesma trama bisonha, a revista Veja, o ministro Gilmar Mendes, do
STF, e o senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás.
Não será a escola de “altos estudos” da Veja e do professor Di
Franco, portanto, a suprir essa necessidade. Essa demanda terá que ser
suprida por repórteres ciosos de outro tipo de jornalismo, mais aberto e
solidário, comprometido com a verdade factual e a honestidade
intelectual, interessado em boas histórias. Um jornalismo mais leve e
mais humano, mais preocupado com a qualidade da informação do que com a
vaidade do furo. Um jornalismo vinculado à realidade, não a interesses
econômicos. E isso, certamente, só poderá ser viabilizado dentro de
outro modelo, cooperativo e democrático, a ser exercido a partir das
novas mídias virtuais.
Por isso, é preciso estabelecer também um contraponto à ideologia da
mídia hegemônica no campo da formação, em complemento aos cursos
superiores de jornalismo. Abrir espaço para os milhares de estudantes de
comunicação, em todo o Brasil, que não têm chance de participar dos
cursinhos de treinees dos jornalões e das grandes emissoras de
radiodifusão. Dar a eles, de forma prática e barata, uma oportunidade de
aprender jornalismo com bons repórteres, com repórteres de verdade.
Foi nisso que pensei quando idealizei, em 2007, a Escola Livre de
Jornalismo, junto com outros dois amigos, ambos ótimos jornalistas,
Olímpio Cruz Neto e Gustavo Krieger. Com eles, ajudei a montar bem
sucedidos ciclos de palestras e oficinas de jornalismo em Brasília. Em
2009, um ano antes do 1º Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas,
em São Paulo, a Escola Livre, em parceria com o IESB, já havia
conseguido reunir, na capital federal, os principais expoentes desse
movimento no país: Luis Nassif (Blog do Nassif), Paulo Henrique Amorim
(Conversa Afiada), Rodrigo Vianna (Escrevinhador), Marco Weissheimer (RS
Urgente) e Luiz Carlos Azenha (Viomundo). Uma semana de debates ricos,
bem humorados, em um auditório permanentemente lotado de estudantes de
jornalismo e jornalistas profissionais. Foi nosso único evento gratuito
e, claro, o de maior sucesso. Os ciclos e oficinas, embora tenham tido
boa audiência, esbarravam sempre no problema do custo para os
estudantes: como nos cursinhos de treinee da velha mídia, acabávamos por
privilegiar um segmento de jovens já socialmente privilegiados. É dessa
frustração e dessa armadilha que proponho fugir agora.
Por isso, expus no Facebook a idéia de ministrar minhas aulas de
Técnica Geral de Jornalismo, divididas em módulos, de modo que cada
estudante pague um valor baixo por cada aula. Ou seja, os estudantes vão
às aulas que quiserem, pagam na entrada e participam de duas horas de
aula de jornalismo sobre tópicos práticos e temas relevantes. Minha
idéia é convocar outros repórteres de Brasília a participar desse
movimento da Escola Livre de Jornalismo, com o compromisso de, em troca
da aula de duas horas, receber 70% do valor arrecadado no dia, porque
30% serão sempre destinados à administração e organização do curso.
Além do valor da aula, ainda a ser estipulado, cada aluno deverá
também levar um alimento não perecível qualquer, a ser distribuído para
comunidades pobres do Distrito Federal ou instituições de assistência
social a serem definidas com futuros parceiros. Esses mantimentos,
inclusive, poderão ser usados como moeda de troca para podermos utilizar
gratuitamente algum espaço físico em Brasília para ministrar as aulas. É
algo ainda a ser definido.
A idéia está lançada. No Facebook, recebi quase 100 adesões imediatas
de estudantes, jornalistas, incluindo alunos e ex-alunos realmente
satisfeitos com a perspectiva de participar de um movimento interativo
desse nível, a preços populares. Espero poder iniciar as primeiras aulas
em fevereiro de 2011 e, desde já, conto com a participação de todos os
amigos e colegas jornalistas do Brasil que quiserem compartilhar essa
experiência. Quanto mais gente boa dando aula, mais gente boa a ser
formada. Como nas experiências anteriores, a Escola Livre de Jornalismo
espera contar com a parceria das faculdades de jornalismo do DF para
transformar em crédito a freqüência dos estudantes nas aulas, de modo a
colaborar com uma necessidade acadêmica deles, as horas extra-sala de
atividades complementares.
Por favor, quem quiser participar dê o ar das graças. Nossa missão
inicial é achar um lugar amplo e legal, com cadeiras e uma boa mesa de
professor, para dar as aulas. A depender do nível de adesão dos colegas
jornalistas, vamos organizar uma agenda para as aulas, que serão sempre
aos sábados, em princípio, das 9 às 11 horas da manhã.
Por enquanto, é esse o meu manifesto, é essa a minha idéia. O resto virá, tenho certeza, na garupa de bons ventos.
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