Gerald Cohen: Em busca de uma alternativa
socialista
“O Socialismo”, disse Albert Einstein, é
a tentativa da humanidade “superar e sobrepujar a fase predatória da
evolução humana”; e, para Gerald. A. Cohen, “todo mercado (...) é um
sistema predatório”. Essa é a essência do último livro de Cohen,
considerado pelo The Guardian como o maior filósofo político marxista
dos nossos dias. O propósito do autor, que morreu em agosto de 2009, é
assentar o que chama de as bases “preliminares” - uma tentativa que,
afinal, bem poderia chegar a ser derrotada por realidades inexoráveis –
de uma alternativa socialista.
Ellen Melksins Wood resenha o livro
póstumo de Gerald A. Cohen “Why not Socialism?” (Princeton, 83 pgs, ISBN
978 0 691 143613).
“O Socialismo”, disse Albert Einstein, é a
tentativa da humanidade “superar e sobrepujar a fase predatória da
evolução humana”; e, para Gerald. A. Cohen, “todo mercado (...) é um
sistema predatório”. Tal é a essência de seu último livro, breve porém
incisivo e elegantemente escrito (Cohen morreu em agosto passado). Seu
propósito é assentar o que chama de as bases “preliminares” - uma
tentativa que, afinal, bem poderia chegar a ser derrotada por realidades
inexoráveis – de uma alternativa socialista. É desejável, pergunta-se, e
se desejável, factível, construir uma sociedade movida por algo que não
seja a predação, que não responda às motivações “mesquinhas”, “baixas”,
“repugnantes” do mercado, mas que esteja antes dirigida por um
compromisso moral com a comunidade e com a igualdade?
Em seu
estilo caracteristicamente lúcido, comprometido e delicadamente
humorístico, Cohen começa imaginando um grupo de pessoas numa excursão
para um camping. Nessas circunstâncias, sugere que a maioria das pessoas
seriam “vigorosamente a favor de uma forma socialista de vida,
preferindo-a outras alternativas factíveis”, comportando-se assim, pois,
conforme aos princípios de igualdade e de comunidade, muito distintos
dos que governam o comportamento normal no mercado. A questão é se esses
princípios do acampamento poderiam ou deveriam ser postos em prática
por obra do conjunto da sociedade. Na sua opinião, isso seria desejável
para evitar os resultados necessariamente injustos dos mecanismos de
mercado e as desigualdades que os acompanha. Mas é factivel?
Sobre
isso, o veredito está por se pronunciar. É importante, insiste Cohen,
distinguir entre dois tipos muito diferentes de obstáculos, os que
emanam das limitações da natureza humana e os procedentes das limitações
da tecnologia social; e conclui que nosso principal problema não é o
egoísmo humano, mas a “carência do que chamamos de tecnologia
organizativa adequada”. Trata-se, em outras palavras, de um problema de
design. Mas, o fato de que não saibamos como desenhar a maquinaria
social que teria de funcionar no socialismo não significa que nunca o
poderemos ou que nunca o quereremos.
Cohen foca na idéia do
“socialismo de mercado”, um sistema que estaria ainda fundado no
mecanismo de preços, mas que evitaria a concentração de capital que gera
o grosso das desigualdades do mercado capitalista. Isso, para ele,
seria melhor que nada. É “o gênio do mercado que recruta motivações de
baixa qualidade para fins desejáveis”; mas, o que os socialistas de
mercado esquecem é que também há efeitos indesejáveis e que também esse
seu tipo de mercado se orienta conforme esses motivos “mesquinhos”.
Assim, pois, ele preferiria seguir buscando um meio de obter efeitos
econômicos produtivos fundado em outras motivações.
As
preocupações morais da filosofia de Cohen e – na sua análise dos
mercados – e sua ênfase na moralidade das motivações poderiam parecer, à
primeira vista, muito distantes; até diametralmente opostos à obra com
que começou a se tornar conhecido: Karl Marx's Theory of History: A
Defense (1978). O necrológio de Cohen publicado no The Guardian, em
que ele é descrito como “comprovadamente o principal filósofo político
da esquerda”, falou desse livro como de uma “reinterpretação
revolucionária da teoria marxista”. Na realidade, o que Cohen produziu
foi algo ainda mais audacioso. Era menos uma reinterpretação de Marx que
uma defesa cerrada da interpretação mais ortodoxa.
É verdade,
como se disse no Guardian, que aquilo que Cohen e seus colegas
“marxistas analíticos” gostavam de chamar de o “no-bullshit Marxism” ou o
“marxismo não charlatão”(1) arrastaram a teoria marxista para o
vão da “ciência social burguesa da corrente principal”, aplicando-lhe as
técnicas linguísticas e lógidas da filosofia analítica; só isso já era
uma façanha. A teoria que ele defendia, cuja substância era um
determinismo tecnológico, devia menos a Marx que a intérpretes
posteriores, como Georgi Plejánov; mas terminou sendo tomada como a
essência do materialismo histórico, no modo como o entendiam tanto os
ideólogos dos partidos comunistas quanto os antimarxistas mais
furibundos. O que tornou o projeto de Cohen ainda mais notório foi que,
na época em que publicou sua defesa, essa ortodoxia tinha sido
vigorosamente desafiada por historiadores que trabalhavam na tradição
marxista, desde E.P.Thompson a Robert Brenner; e o velho determinismo
tecnológico já tinha cedido espaço a interpretações muito diferentes de
Marx.
É verdade que, uma vez descoberto, não é provável que todo
progresso chegue a desaparecer por completo. Mas a compulsão primordial
de melhorar constantemente as forças técnicas de produção não é uma lei
geral da história. É, para bem ou para o mal, uma característica
específica de uma forma social, o capitalismo. Seu modo particular de
exploração, à diferença de quaisquer outro gera, como condição mesma de
sua sobrevivência, uma compulsão implacável de melhorar a produtividade
e, assim, de rebaixar os custos do trabalho, a fim de satisfazer e
maximizar o lucro.
Embora as inevitabilidades históricas do
determinismo tecnológico de Cohen tenham sido traduzidas por outros
marxistas analíticos na linguagem da “eleição racional”, parecia haver
nesse determinismo pouca margem para a eleição moral ou para as
motivações morais, como forças históricas dinâmicas. Sem embargo, sua
carreira intelectual subsequente se consagrou na questão da justiça e da
igualdade socialistas, que estão no núcleo de seu último livro.
Pareceria um caminho distante desde sua peculiar variedade de marxismo;
e, visto que terminou descrevendo a si mesmo como um “ex-marxista”,
poderíamos nos ver tentados a deixar as coisas assim, limitando-nos a
concluir que, tendo repudiado o marxismo, e com ele quaisquer ilusões
sobre o curso necessário da história, restou livre para pensar sobre o
socialismo, não em termos de algo historicamente inevitável, mas como
uma opção moral.
As coisas, porém, não são simples assim. Se
contrastarmos o marxismo de Cohen com outras versões disponíveis, o que
salta aos olhos é a congruência entre seu precoce determinismo
tecnológico e sua filosofia moral dos últimos anos de vida. Não só
porque seguiu apaixonadamente compromissado, como ex-marxista não menos
que como marxista ortodoxo, com os valores socialistas e em especial com
a igualdade. O certo é que sua teoria da história também está conectada
com sua filosofia moral, no sentido de que ambas, afinal, são
a-históricas. Isso é óbvio o suficiente quando referido nas abstrações
da filosofia analítica, mas parece algo estranho se atribuído a uma
teoria da história. O fato é que resulta extremamente difícil sustentar
esse tipo de determinismo transhistórico [em termos kantianos,
transcendental], sem se desinteressar dos processos históricos: não só
das particularidades e das contingências do tempo e lugar, mas dos
princípios diferencialmente operantes em cada modo específico de
organizar a vida social.
(1) Bullshit é expressão da língua
inglesa falada nos EUA e muito popular, que o filósofo Harry Frankfurt
tomou de empréstimo para se referir a trabalhos intelectuais que não são
exatamente nem falsários nem mentirosos, mas algo ainda pior, porque o
falsário ou mentiroso são capazes de distinguir o verdadeiro do falso,
ao passo que o bullshiter perdeu até essa capacidade.
(*)
Ellen Meiksins Wood foi durante muitos anos professora de ciência
política e filosofia na York University de Toronto, Canadá e também fez
parte do comitê editorial da New Left Review. Entre 1997 e 2000
co-editou, junto com Paul Sweezy e Harry Magdoff, a revista
estadunidense Monthlly Review. De orientação marxista, Wood publicou
recentemente: “Citizens to Lords: A Social History of Western Political
Thought from Antiguity to Middle Ages (Verso, London, 2008), The Origin
of Capitalism: A Longer View (Verso, London, 2002). No Brasil, a
Boitempo Editorial publicou Democracia contra Capitalismo: A Renovação
do Materialismo Histórico, em 2003.
Tradução: Katarina
Peixoto