terça-feira, 10 de novembro de 2009

Marx, sempre atual....

Marx e a violência na imprensa britânica
KARL MARX

Mais de século e meio nos separam da data em que este texto de Karl Marx foi escrito e as suas palavras mantêm plena actualidade, apesar da revolução Técnico-Científica, das políticas de I&D, do computador Magalhães e até da bandeira americana na Lua. Ou talvez por isso mesmo…



Karl Marx - www.odiario.info

Os excessos cometidos pelos cipaios revoltados, na Índia, são na verdade horríveis, hediondos, indescritíveis, como apenas se pode esperar nas guerras de insurreição, de nacionalidades, de raças, e sobretudo, de religião; numa palavra, tal como aqueles que a respeitável Inglaterra tem o costume de aplaudir, quando eram perpetrados pelos Vendeanos [1] contra os «Azuis», pelas guerrilhas espanholas contra os hereges franceses, pelos Sérvios contra os seus vizinhos alemães e húngaros, pelos Croatas contra os revoltosos de Viena, pela guarda móvel de Cavaignac ou os dezembristas [2] de Bonaparte contra os filhos e as filhas da França proletária. Por infame que seja a conduta dos cipaios, ela não é mais que um reflexo concentrado da conduta da Inglaterra na Índia não só durante a época da fundação do seu Império oriental, mas mesmo durante os últimos dez anos da sua longa dominação. Para caracterizar esta dominação, basta dizer que a tortura constitui uma instituição orgânica da sua política fiscal. Existe na história humana algo que se assemelha à retribuição; e é uma regra da retribuição histórica que os seus instrumentos sejam forjados não pelos ofendidos mas pelos próprios ofensores.

Os primeiros golpes assestados à monarquia francesa vinham da nobreza e não dos camponeses. A revolta indiana não foi iniciada pelos ryot [agricultores], torturados, desonrados e espoliados pelos Britânicos, mas pelos cipaios, por eles vestidos, alimentados, acarinhados, engordados e corrompidos. Para fazer um paralelo das atrocidades dos cipaios, não temos necessidade, como pretendem certos jornais de Londres, de nos reportarmos à Idade Média, nem mesmo de recuar para lá da História da Inglaterra contemporânea. Basta estudar a primeira guerra chinesa, um acontecimento de ontem, por assim dizer. A soldadesca inglesa cometeu então abominações apenas por prazer; as suas paixões não eram nem santificadas pelo fanatismo religioso, nem exasperadas pelo ódio contra uma raça conquistadora e que se impõe pela força, nem provocadas pela feroz resistência dum inimigo heróico. Mulheres violadas, crianças empaladas, aldeias queimadas, não eram mais que ferozes caprichos, cometidos não pelos mandarins, mas pelos próprios oficiais britânicos.

Também na actual catástrofe, seria um erro absoluto supor que toda a crueldade provém do lado dos cipaios e que todo o leite da ternura humana corre do lado dos ingleses. As cartas dos oficiais britânicos ressumam ódio. Um deles, escrevendo de Peshawar [Peshawar, no actual Paquistão], faz uma descrição do desarmamento do 10º regimento de cavalaria irregular, dissolvido por não ter carregado contra o 55º de infantaria indígena, como lhe tinha sido ordenado. Este oficial exulta ao escrever que os homens não só tinham sido desarmados, como despojados das suas fardas e botas e que, depois de terem recebido 12 pence cada um, tinham sido levados para a margem do Indo, metidos em barcos e abandonados ao sabor da corrente, onde, como o esperava deliciado o remetente desta carta, qualquer deles tinha boas hipóteses de se afogar nos rápidos. Um outro informa-nos que, tendo alguns habitantes de Peshawar provocado um alarme nocturno ao fazerem explodir petardos para festejar um casamento (um costume nacional), foram, na manhã seguinte, carregados de cadeias e «chicoteados de tal forma que não o esquecerão facilmente». Informado de Pindi que três chefes indígenas conspiravam, Sir John Lawrence respondeu ordenando que um espião assistisse às reuniões. Em face do relatório do espião, Sir Lawrence envia uma segunda mensagem: «Enforquem-nos». Os chefes foram enforcados.

Um funcionário dos serviços civis escreve de Allahabad: «Temos poder de vida e de morte, e asseguramos-vos que não damos tréguas». Um outro escreve da mesma cidade: «Não se passa um dia sem que penduremos dez a quinze (não combatentes)». Um oficial escreve exultante: «Holmes enforca-os às dúzias, “aos molhos”». Outro, fazendo alusão ao enforcamento sumário dum numeroso grupo de indígenas, diz: «Foi uma ocasião para nos divertirmos». Um terceiro: «Durante os treinos militares a cavalo, qualquer negro que encontremos, penduramo-lo ou então metemos-lhe uma bala na pele». Fomos informados de Bénares que trinta zamindar [colectores de impostos] foram enforcados sob a simples suspeita de simpatizarem com os seus compatriotas e aldeias inteiras foram reduzidas a cinzas pelo mesmo motivo. Um oficial de Bénares, cuja carta foi publicada no The Times de Londres, diz: «As tropas europeias transformaram-se em demónios, na sua luta contra os indígenas».

E é preciso não esquecer que, enquanto as crueldades dos ingleses são relatadas como actos de valentia marcial, descritos de modo curto e simples, sem se alongar em pormenores revoltantes, os excessos dos indígenas, por chocantes que sejam, são deliberadamente exagerados. De quem provinha, por exemplo, o relato circunstanciado, saído primeiro no The Times e que de seguida deu a volta por toda a imprensa londrina, sobre as atrocidades perpetradas em Delhi e em Meerut? De um pusilânime pastor residente em BangaIore, em Mysore [hoje em dia Karnataka], a mais de mil milhas, em linha recta, do local dos acontecimentos. Os relatos autênticos de Delhi mostram que a imaginação do pastor inglês é capaz de engendrar piores horrores que a selvagem fantasia dum revoltoso hindu. Os narizes, os seios cortados, etc., numa palavra, as horríveis mutilações cometidas pelos cipaios, revoltam mais os sentimentos dos europeus que o bombardeamento do casario de Cantão com balas de canhão incendiárias pelo secretário da Associação para a paz de Manchester ou os Árabes queimados vivos na gruta onde tinham sido amontoados por um marechal francês, os soldados britânicos esfolados vivos pelo chicote de nove pontas, à ordem de um tribunal marcial, ou qualquer outro dos procedimentos filantrópicos em uso nas colónias penitenciárias britânicas. A crueldade, como qualquer outra coisa, tem as suas modas, mudando conforme o tempo e os lugares. César, esse letrado consumado, relata com candura como muitos milhares de guerreiros gauleses viram ser-lhes cortada a mão direita por sua ordem. Napoleão teria tido vergonha de o fazer. Preferia expedir os seus próprios regimentos suspeitos de republicanismo para Santo Domingo, para aí morrerem às mãos dos negros ou da febre-amarela.

As infames mutilações cometidas pelos cipaios lembram as práticas do Império bizantino cristão ou as prescrições do código penal do Imperador Carlos V ou, em Inglaterra, os castigos por alta traição, tal como foram registados pelo juiz Blackstone. Aos olhos dos Hindus, cuja religião produz virtuosos na arte de se torturarem a si mesmos, estes tormentos infligidos aos inimigos da sua raça e das suas crenças parecem muito naturais e devem-no parecer ainda mais aos olhos dos ingleses, que, ainda há poucos anos tiravam rendimentos das festas de Juggernaut [3], dando protecção e assistência aos ritos sangrentos duma religião de crueldade.

Os rugidos frenéticos desse «sanguinário velho Times», como Ihe chamava Cobbett [4], a sua forma de representar o papel de um furioso, numa ópera de Mozart, que se deleitava, com os acentos mais melodiosos, à ideia de enforcar o seu inimigo, depois de o assar, depois de o esquartejar, depois de o empalar, depois de esfolar vivo - este furor de vingança pareceria bastante idiota, se, por detrás das declamações trágicas, não víssemos distintamente os cordelinhos da comédia. The Times exagera quanto pode, e não apenas por pânico, pois fornece à comédia um tema que tinha escapado a Moliére: o Tartufo da vingança. O que The Times procura é simplesmente fazer propaganda para assegurar os subsídios do Estado e dar cobertura ao Governo. Como Deli não tombou ao sopro das trombetas, à semelhança dos muros de Jericó, o Império britânico tem de ser aturdido pelos gritos de vingança, para lhe fazer esquecer que o seu governo é responsável pelo mal que aconteceu e pelas dimensões colossais a que o deixou chegar.

Notas:
[1] Em Março de 1793, a França revolucionária estava em Guerra com a Áustria, a Prússia e a Espanha, e a Inglaterra preparava o bloqueio naval. Respondendo a esta situação desesperada, a Convenção decreta o recrutamento de 300 mil conscritos. No Oeste da França esta ordem serviu de pretexto a uma rebelião armada massiva e à guerra civil contra-revolucionária conhecida como “La Vendée” A insurreição resultou em terríveis perdas de vidas e foi derrotada pelas tropas da República em 1794.
[2] Décembriseur no original; membro da Sociedade do Dez de Dezembro, que apoiou Napoleão III na tomada do poder (N.T.).
[3] Palavra derivada do sânscrito, que significa «senhor do Universo» e corresponde a um dos nomes atribuídos ao deus Krishna (N.T.)
[4] Jornalista, panfletário e homem político britânico - 1763-1835 – (N.T.).


Texto escrito em 4 de Setembro de 1857, publicado no New-York Daily Tribune de 16 de Setembro de 1857.

Tradução de Carlos Coutinho