sábado, 23 de junho de 2012

Os bancos ocidentais ganham milhões com a cocaína colombiana

– Enquanto a produção de cocaína devasta os países da América Central, os consumidores dos EUA e da Europa ajudam as economias desenvolvidas a enriquecerem-se com os lucros dessa produção.

por Ed Vulliamy
Os vastos lucros do tráfico e da produção de droga vão para os países ricos e consumidores – como os da Europa ou os Estados Unidos da América – numa proporção muito superior do que ficam nos países devastados por essa produção, como a Colômbia ou o México, revela um estudo recente [1] . Os seus autores afirmam que as entidades reguladoras são relutantes em investigar o enorme processo da lavagem de dinheiro da droga, levada a cabo pelos bancos europeus e norte-americanos.

A mais recente análise da economia da droga – no caso específico da Colômbia – demonstra que apenas 2,6 % do total do valor de mercado da cocaína produzida fica nesse país, ao passo que uns espantosos 97,4% dos lucros são arrecadados pelas máfias criminosas do chamado primeiro mundo, sendo posteriormente submetidos a um processo de "lavagem de dinheiro" nos bancos desses países.

"A história acerca de quem realmente lucra com a cocaína colombiana é uma metáfora para o fardo desproporcionado colocado de todas as maneiras sobre países "produtores" como a Colômbia em consequência da proibição das drogas" afirma, Alejandro Gaviria, um dos autores do estudo, aquando do lançamento da edição inglesa do mesmo na semana passada.

"A sociedade colombiana tem sofrido imenso e não tem retirado nenhuma vantagem económica do tráfico de drogas, os verdadeiros lucros revertem a favor das redes criminosas de distribuição nos países consumidores de drogas, que os "reciclam" no sistema bancário local, sistema esse que opera com muito menos restrições do que o sistema bancário colombiano."

O seu co-autor, Daniel Mejia, acrescentou: "O sistema aplicado pelas autoridades dos países consumidores de drogas tem como objectivo a repressão do pequeno distribuidor, ele é o elo mais fraco da rede, estas nunca procuram atingir os grandes negociantes de drogas ou os sistemas financeiros que os suportam e é aí que está realmente o grosso do dinheiro".

Este trabalho, de dois economistas da Universidade de Los Andes, em Bogotá, faz parte de uma iniciativa do governo da Colômbia para reformular a política anti-droga global recentrando-a nos processos de lavagem de dinheiro levados a cabo pelos grandes bancos norte-americanos e europeus, assim como na prevenção social e num processo de descriminalização de algumas ou mesmo de todas as drogas.

Estes economistas tomaram em consideração vários factores económicos, sociais e políticos, das guerras da droga que têm devastado a Colômbia. O conflito estendeu-se, com graves consequências, ao México e receia-se que possa alastrar-se à América Central. Mas a conclusão mais chocante está relacionada com aquilo a que os autores chamam "microeconomia da produção de cocaína" na Colômbia.

Gaviria e Mejía calculam que, ao mais baixo valor que a cocaína pura produzida na Colômbia pode atingir nas ruas (cerca de 100 dólares/ 80 euros por grama) o lucro foi, no ano de 2008, de 300 mil milhões de dólares, dos quais apenas 7,8 mil milhões ficaram no país.

"É uma porção minúscula do PNB", disse Mejía, "o que pode ter um efeito desastroso na vida política e social da Colômbia, mas não na economia. A economia da cocaína colombiana está fora da Colômbia".

Mejía disse ainda a The Observer: "Na minha perspectiva a proibição das drogas é um processo de transferência de custos do problema das drogas, dos países consumidores para os países produtores".

"Se países como a Colômbia lucrassem economicamente com o tráfico de droga, ainda faria um pouco de sentido" afirmou Gaviria". Em vez disso, a Colômbia e o México pagam o maior preço para que outros tenham lucro".

"Eu gostava de ilustrar a situação para os cidadãos norte-americanos: imaginem que o consumo de cocaína nos Estados Unidos desaparecia e se deslocava para o Canadá. Será que os americanos gostariam de ver a taxa de homicídio de Seattle disparar para que se evitasse que a cocaína e o dinheiro fossem para o Canadá? Desta maneira talvez percebessem os custos desta situação para países como o México e a Colômbia"

Os mecanismos de lavagem de dinheiro foram tratados pelo The Observer no ano passado, depois de um raríssimo acordo judicial em Miami entre o governo federal dos Estados Unidos e o Wanchovia Bank, tendo este último admitido que fazia entrar 110 milhões de dólares de dinheiro da droga nos Estados Unidos. No entanto as autoridades não conseguiram monitorizar os 376 mil milhões de dólares que, ao longo de quatro anos, entraram nas contas desse banco através de casas de câmbio no México. O Wachovia Bank foi, já depois deste acordo, adquirido pelo Wells Fargo que cooperava com a investigação.

No entanto ninguém foi preso, e o banco está hoje fora de qualquer complicação judicial. "O sentimento geral é o de uma grande relutância em ir atrás dos lucros reais da droga" disse Mejía. "Eles não se ocupam daquela parte do sistema onde está a maior soma. Na Europa e nos EUA o dinheiro está disperso – quando chega a estes países o dinheiro entra no sistema, em todas as cidades, em todos os estados. Eles preferem ir atrás da pequena economia, dos pequenos intermediários e das plantações de coca na Colômbia, mesmo sabendo que essa economia é minúscula".

O Dr. Mejía acrescentou: "Na Colômbia eles colocam aos bancos questões que nunca colocariam aos bancos nos Estados Unidos. Se o fizessem seria contra as leis do sigilo bancário. Nos Estados Unidos existem leis muito fortes que protegem o segredo bancário, na Colômbia tais leis não existem – ainda que a lavagem de dinheiro se faça mais nos Estados Unidos. É um sistema um pouco hipócrita, não?"

"É uma extensão da forma como operam no seu próprio país. Vão atrás das classes baixas, dos elos mais fracos da cadeia, do pobre tipo – para mais facilmente mostrar resultados. Mais uma vez: é a vontade de transferir o custo da guerra da droga para os mais pobres, deixando o sistema financeiro e os grandes negociantes intocados, que motiva todo este sistema"

Tendo o Reino Unido suplantado os EUA e a Espanha como o maior consumidor mundial de cocaína per capita , a investigação ao Wachovia mostrou também que muito do dinheiro da droga era lavado através da City de Londres, onde o principal denunciante do caso, Martin Woods, estava sediado, no departamento anti-lavagem de dinheiro do banco. Martin Woods foi posteriormente demitido depois de ter denunciado a situação.

Gaviria disse ainda: "Nós sabemos que as autoridades nos Estados Unidos e no Reino Unido sabem mais do que aquilo que as suas acções fazem transparecer. As autoridades apercebem-se de inúmeros casos de pessoas que tentam movimentar dinheiro para o tráfico de droga – mas a DEA (Departamento Anti-droga dos EUA) age apenas num número mínimo de casos"

"É um verdadeiro tabu perseguir os grandes bancos" acrescentou Mejía, "seria suicidário neste clima económico devido às elevadas quantias de dinheiro reciclado"

[1] Alejandro Gaviria Uribe e Daniel Mejía Londoño, Políticas antidroga en Colombia: éxitos, fracasos y extravíos , Ediciones Uniandes, Bogotá, 2012, 458 pgs., ISBN/ISSN: 978-958-695-602-4

O original encontra-se em www.guardian.co.uk/world/2012/jun/02/western-banks-colombian-cocaine-trade
Tradução de MQ.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

O que os Estados Unidos podem ganhar com o golpe no Paraguai


por Luiz Carlos Azenha

A reação de Washington ao golpe “democrático”  no Paraguai será, como sempre, ambígua. Descartada a hipótese de que os estadunidenses agiram para fomentar o golpe — o que, em se tratando de América Latina, nunca pode ser descartado –, o Departamento de Estado vai nadar com a corrente, esperando com isso obter favores do atual governo de fato.
Não é pouco o que Washington pode obter: um parceiro dentro do Mercosul, o bloco econômico que se fortaleceu com o enterro da ALCA — a Área de Livre Comércio das Américas, de inspiração neoliberal. O Paraguai é o responsável pelo congelamento do ingresso da Venezuela no Mercosul, ingresso que não interessa a Washington e que interessa ao Brasil, especialmente aos estados brasileiros que têm aprofundado o comércio com os venezuelanos, no Norte e no Nordeste.
Hugo Chávez controla as maiores reservas mundiais de petróleo, maiores inclusive que as da Arábia Saudita. O petróleo pesado da faixa do Orinoco, cuja exploração antes era economicamente inviável, passa a valer a pena com o desenvolvimento de novas tecnologias e a crescente escassez de outras fontes. É uma das maiores reservas remanescentes, capaz de dar sobrevida ao mundo tocado a combustíveis fósseis.
Washington também pode obter condições mais favoráveis para a expansão do agronegócio no Chaco, o grande vazio do Paraguai. Uma das preocupações das empresas que atuam no agronegócio — da Monsanto à Cargill, da Bunge à Basf — é a famosa “segurança jurídica”. Ou seja, elas querem a garantia de que seus investimentos não correm risco. É óbvio que Fernando Lugo, a esquerda e os sem terra do Paraguai oferecem risco a essa associação entre o agronegócio e o capital internacional, num momento em que ela se aprofunda.
Não é por acaso que os ruralistas brasileiros, atuando no Congresso, pretendem facilitar a compra de terra por estrangeiros no Brasil. Numa recente visita ao Pará, testemunhei a estreita relação entre uma ONG estadunidense e os latifundiários locais, com o objetivo de eliminar o passivo ambiental dos proprietários de terras e, presumo,  facilitar futura associação com o capital externo.
Finalmente — e não menos importante –, o Paraguai tem uma base militar “dormente”  em Mariscal Estigarribia, no Chaco. Estive lá fazendo uma reportagem para a CartaCapital, em 2008.  É um imenso aeroporto, construído pelo ditador Alfredo Stroessner, que à moda dos militares brasileiros queria ocupar o vazio geográfico do país. O Chaco paraguaio, para quem não sabe, foi conquistado em guerra contra a Bolívia. Há imensas porções de terra no Chaco prontas para serem incorporadas à produção de commodities.
O aeroporto tem uma gigantesca pista de pouso de concreto, bem no coração da América Latina. Com a desmobilização da base estadunidense em Manta, no Equador, o aeroporto cairia como uma luva como base dos Estados Unidos. Não mais no sentido tradicional de base, com a custosa — política e economicamente custosa — presença de soldados e aviões. Mas como ponto de apoio e reabastecimento para o deslocamento das forças especiais, o que faz parte da nova estratégia do Pentágono. O renascimento da Quarta Frota, responsável pelo Atlântico Sul, veio no mesmo pacote estratégico.
É o neocolonialismo, agora faminto pelo controle direto ou indireto das riquezas do século 21: petróleo, terras, água doce, biodiversidade.
Um Paraguai alinhado a Washington, portanto, traz grandes vantagens potenciais a interesses políticos, econômicos, diplomáticos e militares estadunidenses.

“Boleiros podem mudar cultura homofóbica”, diz psicólogo especialista em sexualidade


Psicólogo paulista afirma: "ser homossexual é conviver com a ideia de ser o que o mundo diz que não é bom". /Foto: Reprodução

Rachel Duarte no SUL21

‘Ele é gay porque foi abusado na infância’. ‘A educação dele foi muito castrada por isso ele é gay’. ‘Não vou aceitar para ver se meu filho desiste dessa ideia de ser gay’. Muitas teorias são levantadas quando se discute a orientação sexual das pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo. O senso comum ainda acredita na origem da homossexualidade como doença, perversão ou opção. O psicólogo paulista com especialização em sexualidade humana Cláudio Picazio esclarece estes e outros preconceitos relacionados aos homossexuais em entrevista ao Sul21.

Autor dos livros Diferentes desejos, sobre orientação afetiva sexual; Sexo secreto, aulas de temas polêmicos para professores; e Uma outra verdade, com perguntas e respostas para pais e educadores sobre homossexualidade na adolescência, o psicólogo garante que homossexualidade está relacionada ao desejo sexual que nasce com as pessoas, não podendo ser ensinado, estimulado ou adquirido. “As pessoas querem criar teses para justificar a existência de uma orientação sexual que difere da sua”, diz.
Ele vê como urgente o combate ao bullying homofóbico, partindo da maior informação de pais e professores a respeito do tema. “Não é o filho gay que tem que dar suporte a estes pais, são os pais que devem dar suporte para os filhos gays. Esta história está errada”, defende Cláudio Picazio.
O psicólogo também estudou psicoterapia esportiva e por três anos analisou o comportamento dos jogadores de futebol nas categorias de base dos clubes do sudeste do país. Ele conta como os boleiros lidam com a homossexualidade e acredita que uma esperança para a revolução sobre gênero e sexualidade pode estar entre os jogadores de futebol. O afeto explícito dentro de campo pode alterar a noção machista que dita a impossibilidade de homens serem afetivos. “Se Neymar e Ganso se abraçam e se beijam, vemos isso acontecer nas arquibancadas. Existe esta influência na esfera geral, na massa da população”, afirma.

Sul21 – O senhor tem como explicar como é formada nossa orientação sexual?

Cláudio Picazio – Sempre começo corrigindo a terminologia. Não se trata de homossexualismo, é homossexualidade. Tem diferença. Geralmente na ciência tudo que termina com ‘ismo’ é qualificado como doença. Doença ou perversão. Não se fala heterossexualismo. Quando usamos heterossexualismo, trata-se de alguém muito doente nas relações com mulheres. Então, é heterossexualidade, homossexualidade, travestilidade. Comecemos por aí.

Sul21- Certo. Esclarecida a terminologia, como se desenvolve a orientação sexual?

Cláudio Picazio - Todo mundo acredita que a sexualidade é imposta ou aprendida. Não é aprendida. Descobrimos o nosso desejo sexual. Ninguém precisa ensinar o desejo sexual, ele se revela dentro da gente. Existe um preconceito que na educação de um filho se forma a sexualidade. Não é verdade. É algo da natureza. Desde a infância há meninos se interessando por meninos e meninas por meninas. Não podemos castrar isto. O desejo nasce e se orienta dentro de nós. Nós descobrimos isso. Querer entender o que faz uma pessoa virar homossexual também deveria estar relacionado à necessidade de saber o que faz uma pessoa virar hetero. As pessoas querem criar teses para justificar a existência de uma orientação sexual que é diferente da sua. ‘Ele foi muito castrado, por isso virou gay”. Não. As mulheres foram castradas a vida inteira e não foi por isso que viraram lésbicas. O mundo teme agora a exposição assumida dos homossexuais, como se um beijo na novela ou em público fosse influenciar outras pessoas a serem gays. Não é assim. Isto é uma cretinice.

Sul21 – Como o senhor define a homossexualidade?

Cláudio Picazio – Ser homossexual não é simplesmente aceitar que se gosta, ter paixão ou desejo por uma pessoa do mesmo sexo. Se perceber homossexual é se reconhecer como aquilo que o mundo diz que é o pior. Se o goleiro não pega uma bola quando o time adversário faz um gol, do que ele é chamado? Veado. Se alguém da uma fechada no trânsito? É veado. Tudo aquilo que é visto como ruim, errado e perverso, a sociedade vai alimentando como ‘coisa de veado’.
Cláudio Picazio analisou jogadores de futebol por três anos e acredita que boleiros podem mudar cultura homofóbica./Foto: Reprodução

Sul21 – O senhor afirma que o homem heterossexual precisa do homossexual para se afirmar como homem. Para ele ver o quanto tem masculinidade e está distante do ser “afeminado”. Os gays menos afetados seriam os que mais incomodam, por parecerem homens. Mas, os mais vulneráveis e os que estão mais presentes nas estatísticas de violência são os  travestis e os mais claramente homossexuais. Como o senhor explica isso?

Cláudio Picazio – Ele precisa do outro para afirmar a sua diferença. Por outro lado, ele teme um desejo por este diferente. Não necessariamente ele tem o desejo, mas ele teme ter. A partir do momento que ele teme, ele tem que agredir aquele objeto de desejo por achar que assim ele não sentirá desejo. Há também a inconformidade de que aquela pessoa que tem uma sexualidade diversa está rompendo com aquilo que é considerado bom ou correto. No Rio Grande do Sul podemos fazer uma analogia com o comportamento das torcidas de futebol. Os gremistas e colorados brigam não por um querer mudar para o time do outro, mas por entender que a sua opção é superior a do outro. Existe uma tentativa de superioridade. Você é menos por ser colorado ou menos por ser gremista na visão das torcidas adversárias. O humano infelizmente ainda vai muito nesta celeuma de querer hierarquizar as coisas e se afirmar diante de um poder que acha que tem.

Sul21 – A rivalidade também pode ser compreendida pelo caráter passional. Mas por que há essa relação de ódio com a sexualidade alheia? Por que a vida sexual do outro interessa para mim?

Cláudio Picazio – Infelizmente a nossa cultura é baseada nisso. Eu valho mais por aquilo que eu sou. Sou mais macho e melhor quanto mais mulher eu pegar. Tenho mais valor assim. E isto também se transferiu para  amulher. As mulheres estão repetindo este péssimo comportamento masculino. Conforme o número de caras que eu fiquei na balada, mais legal eu sou. Então vai se baseando um valor quantitativo e não qualitativo sobre as relações humanas. A mulher copia o pior do homem neste sentido. Queimaram os sutiãs, conquistaram inúmeros direitos. Têm sua liberdade sexual e erótica. Mas a revolução feminina aconteceu e não houve uma revolução masculina. Ela se igualou aos homens que, na verdade, precisam se transformar. Um homem afetivo hoje é excluído. Ele não pode ter afeto por que é visto como um ‘não homem’. Mais do que homofobia, o problema é a aversão ao afeto. Recordemos o caso dos pai e filho se abraçando em São Paulo que foram agredidos por trocarem afeto e serem confundidos com homossexuais. Esta agressão não foi por causa da sexualidade, foi por causa do gesto de afeto. A nossa sociedade não dá conta da questão amorosa no masculino. A homofobia tem fundamento nisso. O homem amoroso é excluído. No Rio Grande do Sul isso é ainda mais forte. É proibido aos homens serem afetivos, isso é feminino. Se ele transa com outros homens de forma violenta ele é aceito, porque daí é considerado mais macho ainda. Só não pode ter amor. O homem afetivo rompe com o que é esperado de um homem. Quanto menos afetivo for o homem, melhor. Isto é um valor que se reproduz e afeta os relacionamentos e a humanidade. Percebemos na infância que os meninos ainda precisam gostar de jogar futebol ou judô. Se algum menino gostar de escutar Beethoven ou de pintar, o constrangimento dos pais é enorme. Já está feita a confusão de que ele é ou pode ser homossexual.

Sul21 – Falando em futebol, o senhor tem um estudo de três anos nas categorias de base dos times do sudeste do país. O futebol, apesar de alguns avanços femininos no esporte, é genuinamente masculino. Como se lida com a homossexualidade neste universo de boleiros?
"O jogador de futebol para o homem brasileiro é a principal referência de masculinidade".

Cláudio Picazio – O jogador de futebol, para o homem brasileiro, é a principal referência de masculinidade. Ele é aguerrido, combatente em campo e passa essa imagem. Tanto que, se um jogador usa brinco de brilhante ou pinta os cabelos de colorido não é sinônimo de homossexualidade. É permitido. Aquilo deixa de ser feminino nos olhos dos homens se é um jogador de futebol que faz. Eu fico extremamente feliz quando vejo troca de afeto entre jogadores. Por mais que ainda choque ou cause estranhamento em algumas pessoas, é comum ver o mesmo sentimento contagiando a torcida. Se o Neymar e o Ganso se abraçam e se beijam, vemos isso acontecer nas arquibancadas. Existe esta influência na esfera geral, na massa da população. Eu chego a afirmar que a salvação do gênero masculino no Brasil está no comportamento dos jogadores de futebol.

Sul21 – Sabe-se que existem muitos jogadores de futebol homossexuais, mas não publicamente. Admitir isso causaria uma revolução masculina?
"Existem muitos gays que não são afetivos e heteros que não são agressivos. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.".

Cláudio Picazio– No caso da homossexualidade de jogadores de futebol, que sabemos que existe bastante, é ainda mais delicado. O preconceito é muito maior. Entre os jogadores não. Eles convivem muito, acabam sendo bastante íntimos e conseguem se respeitar. É como uma grande família. Eles se apoiam. A relação com os técnicos também tende a ser sempre respeitosa porque o importante é o desempenho do atleta e não a vida privada dele. E não existe esta coisa que se pensa no senso comum, que os jogadores gays saem pegando todo mundo no vestiário ou que não podem estar diante dos outros que vão querer pegar. O problema é a visão preconceituosa que vem de fora. Outra coisa: se o homem é gay, ele está condenado a gostar de coisas femininas, não pode gostar de jogar futebol ou mesmo ser um jogador de futebol? Não são nossas preferências que fazem nossa sexualidade. Olhar para um quadro de Monet não fará você se tornar feminino. O que escutar Vivaldi influenciaria em você gostar de um pênis ou de uma vagina? É uma cretinice este tipo de pensamento. Mas, o pior de tudo isso, é a relação com a violência. Para o homem ser homem, ele tem que ser violento. E depois, este homem é violento com a mulher e também é condenado pela sociedade. Qual a alternativa que ele tem? Se o homem não der porrada ele não é homem. Entrando em contato com uma mulher ele vai resolver as coisas como?

Sul21 – Como romper o ciclo educativo da homofobia e do preconceito? Qual a contribuição da escola e dos pais neste processo?

Cláudio Picazio – Temos que ensinar a população que agressividade não significa heterossexualidade e homossexualidade não significa doçura e candura. Prova disso é que existem muitos gays que não são afetivos e heteros que não são agressivos. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Certa vez eu presenciei uma cena em uma loja de brinquedos. Um pai e uma mãe caminhando com um filho pequeno e um bebê de colo, no colo do pai. O filho menor foi até uma boneca e segurou no colo como o pai fazia. A atitude da criança causou uma reação imediata do pai que pediu para a mãe ‘tirar a boneca do menino’. O filho queria reproduzir o que o pai fazia e foi repreendido por ser homem brincando de boneca. O pai ficou apavorado e não enxergou o que estava na intenção do menino. E era uma loja de um lugar nobre de São Paulo. Então, a questão não é de classe.
Livro 'Diferentes desejos, sobre orientação afetiva sexual' de Cláudio Picazio./Foto: Reprodução

Pais e filhos devem entender que os filhos não nascem para suprir as expectativas dos pais. A gente existe para corresponder às próprias expectativas. O conselho de alguns colegas é dar um tempo para os pais absorverem a ideia. Isto é errado. Não é o filho gay que tem que dar suporte para estes pais, são os pais que devem dar suporte para os filhos gays. Esta história está errada. Temos nas famílias ainda um processo educacional que é equivocado: “eu vou tentar falar com aversão a respeito, para ver se ele deixa de ser”. Como se esta deseducação pudesse transformar alguém. As pessoas ainda acreditam que homossexualidade é uma opção. Não é. Mas, mesmo se fosse, requer respeito das pessoas. Eu já atendi vários casos de pais que se arrependeram porque os filhos se mataram. Na escola é preciso enfrentar e orientar os professores para detectar e combater o bullying. O bullying homofóbico é cometido de muitas maneiras. Uma risadinha, um olhar torto, chegando até a agressões verbais e físicas. Tudo é muito doido. Os gays escutam o todo tempo falar coisas a seu respeito que muitas vezes não são verdadeiras. Blindar este tipo de bullying, percebido todo o tempo, é muito difícil. Até porque são coisas veladas, como um tio que não te cumprimenta, pais que não te reconhecem. É tudo muito pesado. O processo terapêutico é fundamental para apoiar as vítimas deste bullying.

Sul21 – Já tivemos a oportunidade de falar sobre sexualidade com outros especialistas que acreditam que o futuro da humanidade será de relações bissexuais e/ou poligâmicas. O senhor partilha desta visão?

Cláudio Picazio – É muito controverso isso. O comportamento dos homens e mulheres pode ser bissexual. Homens podem transar com homens e mulheres, assim como mulheres como mulheres e homens. Podem existir relações múltiplas. Enfim, todas as formas de desejo. Agora, para as relações se tornarem bissexuais ou poligâmicas existe um elemento muito crucial que influencia o ser humano a não conseguir viver assim: o ciúme. A perda do objeto amoroso. As pessoas não se acostumam com isso. Os anos 70 não deram certo até hoje por causa disso. Não é possível assistir nossa amada ou amado transando com outro na nossa frente de forma feliz sempre. Em termos afetivos, temos capacidade de amar dois gêneros. Amamos nosso pai e mãe, irmãos e irmãs. Temos uma esfera amorosa que permite o amor por homens e mulheres, mas por um gênero temos desejo sexual e por outro não. Eu particularmente acredito que o futuro da humanidade é ter mais respeito por quem tem desejo erótico por homens ou mulheres, mas não que todos vão virar bissexuais ou poligâmicos. Temos mais liberdade para experimentar, porém, se um gay transa com uma mulher não vai deixar de ser gay e vice-versa. Ele teve uma atitude sexual de determinada orientação, mas o desejo sexual não muda sua orientação. A evolução humana tem que ser para não se preocupar mais com o desejo sexual dos outros. As nossas transas não serem uma espécie de preenchimento de currículo.
Psicólogo defende que orientação sexual é algo que nasce com o indivíduo, não é fruto da educação./Foto: Reprodução

Sul21 – Gostaria de encerrar com uma curiosidade em relação ao orgasmo masculino que o senhor defende: homens não tem orgasmo toda vez que ejaculam?

Cláudio Picazio – O mito do orgasmo masculino. Essa tese eu adoro. (risos) O homem não tem um orgasmo a cada ejaculação, ele tem um gozo. Ele tem um prazer, mas orgasmo é muito diferente. A grande excitação e a grande satisfação, é como perder os sentidos. Isso não é em toda relação que ele tem. Na rapidinha que ele dá, ele ejaculou, mas não foi o grande prazer erótico que o faz levitar, tremer as pernas. Existe um desconhecimento neste sentido e que gera uma perseguição em relação ao orgasmo. O mesmo para mulher. Às vezes as pessoas estão mais dispostas, mais tranquilas e vão conseguir ter. Outras vezes não estão tão confiantes ou excitados e não terão. E o problema é que isto é equiparado com felicidade. Se eu não tive um orgasmo eu não sou feliz. Se eu não enlouquecer na cama, eu não sou homem ou mulher. Mas a intimidade e o prazer não se resumem a ter orgasmo. Às vezes não gozar e só curtir a intimidade é super prazeroso e excitante. Não precisamos ficar escravos de mitos.