O povo Mapuche segue em luta
Pouca gente sabe, mas existe um povo que nunca foi conquistado pelos
espanhóis aqui na América Latina. Com a chegada dos brancos europeus,
civilizações complexas foram dizimadas; Estados foram destruídos;
nacionalidades extintas. Mas, o povo que habitava as margens dos rios
Biobío e Toltén, no que é hoje o sul do Chile, nunca se deixou vencer,
nem mesmo pelos incas que, antes da dominação espanhola, também
chegaram a conformar o império do Tawantinsuyo.
Ao longo de 300 anos de invasão européia, este povo guerreiro
enfrentou com valentia e audácia a fúria dos espanhóis até ser
reconhecido como um estado autônomo dentro do imenso território
conquistado. São os Mapuche, palavra que designa "gente da terra", na
língua mapudungun. Nestes séculos todos em que reinaram Espanha e
Portugal aqui por estas terras, os Mapuche resistiram altivamente a
qualquer investida, chegando a usar, com sucesso, táticas de espionagem
bastante eficazes. Além disso, incorporaram as novidades das forças
produtivas inimigas para fortalecer a sua defesa.
Pois esta gente única, hoje segue em pé de guerra, agora contra
o estado chileno que tem atuado como opressor e também contra as
transnacionais que invadem seu território. Nunca vencidos, os Mapuche
enfrentam com a mesma dignidade ancestral, os novos desafios que se
apresentam. Saber da sua história é o primeiro passo para compreender
suas demandas político/econômico/culturais e adentrar pelas intricadas
trilhas de Abya Yala (nome dado pelos originários ao que os brancos
chamam de América Latina).
Luan-Taru - o grande herói Mapuche
Assim que desembarcaram na parte leste do que hoje é América do Sul
os espanhóis iniciaram suas guerras de conquista e destruição,
derrotando primeiramente os incas. A região Mapuche, mais ao sul, logo
passou a ser também espaço da cobiça. Muitas foram as batalhas entre
eles e os invasores. Numa dessas escaramuças, em 1546, um menino
Mapuche, filho do lonko (guia do povo) local, foi capturado pelas
tropas inimigas. Seu nome era Luan-Taro, de luan (guanaco) e de taro
(conhecida ave de rapina da região), que na língua mapundungun queria
dizer "veloz". Ele tinha pouco mais de 11 anos e foi levado para servir
ao comandante Pedro Valdívia. Durante muito tempo participou das
batalhas, cuidou dos cavalos, fez-se ginete e aprendeu táticas
militares. Por não saber pronunciar direito seu nome os espanhóis o
chamaram Lautaro. Seus olhos escuros observavam todas as atrocidades
que as tropas de Valdívia cometiam contra seu povo. Ele se fazia mudo e
aprendia mais e mais.
No ano de 1552 Luan-Taru montou num cavalo e deu de rédea pelo campo
afora. Os espanhóis não fizeram caso, era só mais uma fuga de "índio".
Só que este não iria apenas escapulir e sumir da vista dos espanhóis.
Ele imediatamente se apresentou diante dos chefes Mapuche e ofereceu-se
para ensiná-los a lutar. Mostrou o cavalo - até então desconhecido
pelos originários - ensinou a montar e a tal ponto que os Mapuche
tornaram este animal quase como uma parte do seu ser. Usaram a vantagem
do inimigo a seu favor, transformando-se em centauros, quase
invencíveis sobre o cavalo. Luan-taru ainda os ensinava a lutar em
campo aberto, introduzia novas armas, mostrava as técnicas de guerra
aprendidas com os espanhóis e usava cada uma delas para enfrentá-los em
pé de igualdade. Tamanha foi a liderança deste jovem Mapuche que em
pouco tempo era escolhido como o Toqui (chefe máximo na guerra).
Tornado líder das batalhas, Luan-taru ensinou a técnica do batalhão,
da retirada estratégica e ainda criou um eficaz sistema de espionagem
que envolvia crianças, velhos e mulheres. Eles eram introduzidos no
contexto espanhol como traidores do povo Mapuche, loucos, bêbados ou
servos e, fingindo não entender o idioma, arrebanhavam informações
importantes que eram repassadas por um também engenhoso sistema de
sinais enviado através dos ramos das árvores. Foi por conta da
sabedoria militar de Luan-taru que o próprio Valdívia caiu prisioneiro
dos Mapuche pouco tempo depois. Sob a liderança do jovem Toqui, os
Mapuche enfrentaram por anos, sem fraquejar, as tropas espanholas. A
palavra de ordem que movia as gentes era o seu grito de guerra:
"Adiante, Mapuches, vamos tomar Madrid". Ele não chegou a Madrid, mas
tampouco foi vencido em batalha. Sua morte se deu num acampamento perto
do Rio Maule. Luan-taru descansava nos braços da sua mulher, Guacolda,
numa tenda de campanha. Emboscado por uma pequena tropa liderada por
Francisco de Villagra, ele foi surpreendido e transpassado por uma
lança, no ano de 1557. O jovem Toqui encantou, mas a luta Mapuche não
acabou. Como um verdadeiro mestre ele havia ensinado seu povo, e a
resistência seguiu pelos 300 anos afora.
Os Mapuche e o estado chileno
A luta do povo Mapuche não foi em vão. Diante de um continente
dominado, a Espanha obrigou-se a aceitar a autonomia desta
nacionalidade, sendo traçadas, inclusive, fronteiras territoriais bem
claras. O "wall mapu", território e também espaço sagrado dos Mapuche,
permaneceu intacto até que chegaram as guerras de independência.
Durante este processo os Mapuche foram, por várias vezes, mostrados
como exemplo, inclusive por Bernardo O’Higgins, um dos grandes heróis
da independência do Chile, que falava fluentemente o mapudungun. Mas,
com o passar do tempo, e já sem a presença de O’Higgins, a nação
Mapuche teve de enfrentar a saga capitalista que começava a se
expressar nos Estados-nacionais criados pós independência. Depois de
uma década de conflitos, estabelece-se o conservadorismo no Chile, e os
ideais de Bolívar são esquecidos. Descobre-se a riqueza do cobre e do
trigo. Em 1861 o liberalismo se instala e duas décadas depois havia
"modernizado" o país a partir da exploração do cobre e do salitre.
Neste período inicia-se uma campanha agressiva de "nacionalização" do
Chile, e a proposta era a de incluir todas as diferenças no conceito
único de "chileno", daí o processo que ficou conhecido como
"pacificação da Araucanía", região onde viviam quase duzentos mil
Mapuche.
Este foi um período conturbado, com inclusive a presença de um
francês na área do Arauco, que havia se autoproclamado rei. Aquele era,
portanto, um espaço conflagrado e o governo decidiu iniciar um trabalho
de colonização, criando cidades, abrindo estradas, levando escolas e
hospitais. Mas, neste movimento, a república chilena jamais reconheceu
os Mapuches como um povo autônomo, que tinha sua própria cosmovisão e
sua forma original de organizar a vida. Considerava-os "araucanos",
simples moradores daquele espaço de terra e acreditava que todos
deveriam se unificar sob a mesma bandeira. Não houve conversa nem
respeito.
Neste meio tempo, em 1879 o Chile trava com a Bolívia a Guerra do
Pacífico, por conta das minas de salitre. O ouro branco era responsável
por quase 75% dos ingressos financeiros do país. . Não bastasse isso,
se registrou a existência de ouro nas terras do sul, o que tornou ainda
mais aguda a ocupação do território Mapuche. Assim, a chamada
pacificação acabou sendo uma guerra suja e significou justamente a
invasão do "wall mapu" por hordas de aventureiros e de colonos enviados
pelo governo que tomavam terra, gado e expulsavam violentamente as
famílias. Então, aproveitando que o exército nacional estava envolvido
na guerra do pacífico, os Mapuche se levantaram em rebelião. Mas, com o
fim da guerra com a Bolívia, o exército voltou seus olhos para a região
Mapuche e recomeçou a ocupação. Durante muito tempo o povo resistiu,
mas no ano de 1881 os Mapuche foram finalmente vencidos e incorporados
à república chilena, perdendo o estatuto de comunidade autônoma. A
partir daí os originários foram colocados em "reduções", e suas terras
ancestrais passaram para as mãos dos colonos brancos enviados para
"civilizar" um espaço territorial que desde os tempos imemoriais
estivera sob o domínio do povo Mapuche. Este mesmo processo de
colonização também foi encaminhado no lado argentino, para onde se
estendia o wall pamu.
A resistência Mapuche
Desde a derrota diante do exército chileno em 1881, os Mapuche
seguiram resistindo na intenção de recuperar seu território, porque
para este povo, o território não é apenas a terra. Ele significa uma
unidade física e cosmológica, onde coabitam seres humanos, bichos,
matas, rios, deuses, enfim, é muito mais do que a idéia de propriedade
privada imposta pelo capitalismo. No vídeo "El despojo", fala um
Mapuche: "Os deuses habitam esse lugar, e nós nos sentimos protegidos
pela paisagem. O território não é só terra, é herança cultural. Da
terra vem a araucária, que nos foi dada por deus, dela vem o pinhão que
recolhemos e que nos permite viver. É nossa riqueza". Há uma relação
profunda entre a vida Mapuche e os deuses que habitam o wall mapu.
"Eles se comunicam através do sonho e assim nós sabemos se o verão vai
ser bom se a colheita será farta, se o inverno vem rigoroso". Sem wall
mapu os Mapuche perdem essa ligação. Um pouco da compreensão desta
realidade foi conseguida durante o governo de Salvador Allende, que
iniciou um processo de Reforma Agrária no qual respeitava a lógica
Mapuche de organização da vida, fincada na comunidade. Mas, a ditadura
militar chilena, que inicia em 1974, com o golpe liderado por Augusto
Pinochet, promove mais uma divisão das terras comunitárias que se havia
conseguido ao longo dos anos de luta. Não bastasse isso, a região da
Araucanía, a exemplo do que passou a acontecer também no sul do Brasil,
se transforma em espaço da plantação do pinus, matando as araucárias. E
as personagens nefastas que vão tomando conta da terra Mapuche são as
transnacionais do campo do reflorestamento. Heresia pura. A terra que
dá o pinhão, a unidade sagrada, é rompida em nome do lucro e da
"plantation".
Em resposta a essa política da ditadura a luta Mapuche se organiza
de forma mais orgânica e começam os movimentos pela recuperação do
território e pela autodeterminação que eles lograram manter ao longo de
mais de 300 anos, em pleno domínio espanhol. Nos anos 90, com a
instituição do Aukin Wallpamu Ngulam (Conselho de Todas as Terras -
espaço de organização e governo do povo Mapuche) esta nacionalidade
inaugura nova onda de mobilização com a ocupação das empresas
transnacionais de reflorestamento e de energia, incêndio das
plantações, passeatas, ocupações de prédios públicos. Uma reação
radical que os coloca hoje sob a Lei de Segurança Nacional e os
denomina "terroristas". O estado chileno, sob o comando de uma
ex-ativista de esquerda, sequer deu fim a esta lei arbitrária da
ditadura de Pinochet. Os militantes Mapuche, quando presos em algumas
destas ações que visam a recuperação e a proteção do seu território,
são presos como bandidos e ainda está longe de o estado chileno
compreender a dimensão do que seja a nacionalidade Mapuche e o que
significa para esse povo manter seu espaço original.
A luta hoje
Conforme conta o professor de história e militante da causa Mapuche,
Bóris Ramírez, a luta hoje está amparada em três grandes eixos:
recuperação do território ancestral, autodeterminação e fim da
discriminação pelo Estado. E o que se vê no sul do Chile é um
enfrentamento entre o estado e o povo, num contexto de completa
militarização da região da Araucanía e criminalização do movimento, no
qual os Mapuche em luta são presos, torturados ou assassinados sob a
denominação de "terroristas". É a completa inversão da história.
Aqueles que são os donos da terra - que foram roubados e espoliados -
são os que agora se tornam os vilões por quererem de volta o que sempre
lhes pertenceu. Mas, no Chile, o racismo é uma doença endêmica e só
agora, com as lutas do povo Mapuche avançando para dentro das cidades,
onde estão muitos dos membros desta nacionalidade, é que este tema
começa a ser desvelado. Desde os tempos da chamada "pacificação" os
winka (os brancos) consideram que é legítimo colonizar as terras dos
"índios", porque, afinal, para eles, aquele povo que se manteve
autônomo por tanto tempo nesta América dominada, não deve nem ser
humano. "O racismo é uma coisa bem séria no Chile. Custa muito
reconhecer a mestiçagem, e há muita discriminação contra peruanos e
equatorianos. É uma contradição porque na escola se usa muito a
história dos Mapuche como um povo guerreiro que resistiu ao império
espanhol, mas, por outro lado, essa imagem fica só no passado. Hoje, os
Mapuche são apontados como bêbados, vadios e sequer são reconhecidos
como cidadãos chilenos, uma vez que qualquer ação deles não é julgada
pela lei ordinária, e sim pela Lei de Segurança Nacional", conta Bóris.
Outra contradição é que o governo finalmente assinou o Convênio 169
da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que define os direitos
dos povos originários e de outros grupos que se constituem uma
identidade própria, como os quilombolas, mas apesar disso segue
tratando os Mapuche como bandidos. "Seria necessário uma redefinição
constitucional para que esta questão se resolvesse pelo menos do ponto
de vista do direito. Porque a Constituição chilena não os reconhece
como um povo originário, que tem direito a autodeterminação".
Reconhecidos ou não pelo governo chileno, para os Mapuche a luta
segue. E, hoje, o que era uma batalha dentro das fronteiras do
Estado-nação, já tomou outras dimensões. Os principais embates da
nacionalidade Mapuche são contra as grandes empresas florestais e a as
hidrelétricas, a maioria propriedade de empresas estrangeiras, uma vez
que no Chile, o processo neoliberal foi levado às últimas
consequências. Então, a luta assume proporções gigantescas porque o
enfrentamento é com o próprio capital, que se expressa ali na região
através destas empresas cujos donos estão em lugares não sabidos. Não é
sem razão que, praticamente todos os dias, tenha algum Mapuche sendo
preso ou assassinado. É a razão da força se impondo tal qual nos tempos
coloniais.
As relações com os demais movimentos sociais
A luta dos Mapuche até bem pouco tempo era uma coisa meio fechada,
resolvida entre eles. Pudera, fica difícil confiar nos winka (brancos).
A própria esquerda também tem visões muito diferenciadas sobre a
questão indígena. Há quem defenda a integração, outros a "guetização",
o que torna o diálogo bem mais difícil. O novo movimento originário que
se expressa em Abya Yala com mais vigor desde o final dos anos 80 não
quer mais este paternalismo fingido que vigorou por décadas nos países,
com os originários sendo tutelados em reservas, e também não querem
essa proposta de "branqueamento" que se expressa na idéia de
"integração". Os originários querem o direito de viver nas suas terras,
de acordo com sua cultura e seguindo outras formas de organização da
vida. Daí a proposta dos estados plurinacionais, que em nada quer dizer
separatismo como querem fazer crer os racistas que não aceitam a idéia
de que um povo possa ter mantido ao longo de todos estes anos sua
identidade originária.
No Chile, hoje, os Mapuche já conseguiram sair de suas fronteiras e
estabelecer parcerias políticas. Vários movimentos sociais apóiam a
luta originária e nos episódios de prisão ou assassinato, se
manifestam, dão suporte e denunciam internacionalmente. Além disso,
participam ativamente das marchas e protestos que o povo Mapuche
organiza para se fazer visível a um país que insiste em não
reconhecê-lo. Mas, segundo Ramírez, esta parte da esquerda organizada
ainda é muito pequena no Chile, embora contribua muito ao levar a
discussão para o reduto winka.
A organização dos Mapuche avança agora no rumo da Argentina, o que
torna o assunto ainda mais complexo, por sair das fronteiras do
estado-nacional. É que a região de Neuquén, no país vizinho, faz parte
do território ancestral, o wall mapu, e os Mapuche que ali vivem
igualmente se sentem parte da mesma nacionalidade. Não é à toa que esta
aproximação seja vista como um "perigo" pelos governantes dos dois
países, incapazes de compreender a nova configuração do mundo
abyayálico. Os povos originários não entendem o mundo como um espaço
esquadrinhado artificialmente pelo povo conquistador. Eles vivenciam
seu território como espaço unitário de corpo/terra/espírito/deuses. As
fronteiras são outras. E a proposta de autodeterminação é a única
possível para estas nacionalidades que se encontram firmemente
organizadas num tronco comum de cultura. Eles não buscam se separar do
estado-nação onde estão fincados, mas exigem que este estado os
reconheça como nacionalidade autônoma, capaz de gerir seus destinos e
também de atuar em sintonia com os interesses de todo o povo chileno e
argentino. Entender isso é dar um passo para o futuro. A América Latina
não pode mais ser a mesma que foi fundada hegemonicamente pelos
criollos com as guerras de independência. Assim como muitos
Estados-nação estão refundando suas repúblicas, tais como a Venezuela,
o Equador e a Bolívia, também o continente precisa se refazer. Abya
Yala reclama seu lugar. E o povo Mapuche está fazendo sua parte nesta
nova conformação. Das entranhas da Araucanía ouve-se o grito Mapuche de
Luan-taru e todos os outros heróis tombados: pulchetun... pulchetun...
Esta palavra, na língua dos "hombres de la tierra", quer dizer: faça
deslizar a flecha mensageira. E lá vai ela, rasgando as fronteiras,
constituindo a terra do esplendor.