sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Classes e luta de classes: feudalismo


Por Wladimir Pomar*

O processo de transformação do escravismo em feudalismo ocorreu de forma generalizada na Ásia, Oriente Médio e Europa, mas não nas Américas, África e Oceania. Nestes continentes, pelo menos até o início do século 16, sobreviviam povos ainda nos estágios históricos anteriores, como o comunista primitivo, o patriarcal e o escravista.
As civilizações asteca, maia e inca já eram escravistas. Mas ao norte, no atual Estados Unidos e Canadá, viviam tribos organizadas segundo o sistema matrilinear comunitário. O mesmo ocorria entre as tribos que habitavam a Amazônia e o atual litoral brasileiro, inclusive entre aquelas que já praticavam a agricultura de coivara. Na África competiam tribos vivendo no comunismo primitivo, como os bosquímanos, com outras que haviam ingressado no escravismo, como os reinos de Abissínia, Darfur, Kaffa e Hausa. Na Oceania, os polinésios também viviam no sistema matrilinear.
As transições conflituosas do escravismo para o feudalismo, nas regiões do Oriente e do Ocidente em que ocorreram, transformaram um sem número de escravos e homens livres em servos da gleba, ao invés de servos diretos dos senhores fundiários. Isto é, ao contrário dos clientes ou servos do patriarcado, os servos feudais eram camponeses livres para produzir seus meios de vida, sendo proprietários de seus meios de produção, com exceção da terra. Porém, por pertencerem à gleba, não podiam migrar para outras terras. Por outro lado, formalmente, os senhores feudais também não podiam expulsá-los da terra a que pertenciam, mesmo em caso de venda da gleba a outro senhor feudal.
Muitos plebeus livres e escravos aproveitaram-se da situação conflituosa, que retirou parte do poder dos proprietários fundiários, para se transformarem em lavradores ou criadores livres, assim como em artesãos. Criou-se uma economia agrária que tinha os camponeses como base principal do processo produtivo, introduzindo uma transformação qualitativa no caráter da classe trabalhadora de então.
Ao contrário do período escravista, os trabalhadores deixaram de ser propriedade de homens livres. Em termos econômicos e sociais vingou a liberdade formal dos trabalhadores agrícolas e dos artesãos em relação aos senhores feudais. Eles conquistaram o direito de propriedade sobre seus meios de produção. Mas os camponeses servos eram subordinados não só à terra, mas também às várias obrigações que deviam observar diante dos proprietários ou concessionários feudais.
Essas obrigações incluíam a entrega de parcela de sua produção, no início em espécie, tanto ao senhor feudal quanto ao monarca. Incluíam, ainda, a corveia. Isto é, a prestação de trabalho gratuito nas terras ou benfeitorias do senhor feudal, ou a participação nas hostes armadas do feudo e/ou do monarca. Em várias regiões do mundo, como na Escócia, por exemplo, as obrigações também incluíam outros itens, como o direito de pernada, que constrangia as camponesas a se entregarem ao senhor na primeira noite de seu casamento. Os camponeses e os artesãos, por outro lado, eram proibidos de casar-se com pessoas alheias à sua classe social.
Na China, as guerras de transição do escravismo para o feudalismo levaram à constituição de uma monarquia feudal centralizada no século 2 antes de nossa era. Mas isso não impediu que revoluções, guerras e divisões monárquicas se sucedessem por séculos. Na Europa feudal, resultante dos conflitos promovidos pela decadência do Império Romano e pelas invasões bárbaras, por volta dos séculos 7 a 10 de nossa era, emergiu uma miríade de reinos feudais. Estes também viveram às turras por vários outros séculos, antes de alguns se unificarem nas nações atuais. Algo idêntico ocorreu na Índia, Japão, Ásia Central e Oriente Médio.
A consolidação do feudalismo, após o longo período de destruições causadas pelas guerras de transição do escravismo, foi acompanhada da recuperação da agricultura e do artesanato, do surgimento de novas técnicas, e do crescimento da população. O comércio voltou a ocupar um papel importante na destinação dos excedentes agrícolas e da produção artesanal. O Estado feudal tinha em seu ápice o rei ou monarca por desígnio divino, proprietário de todas as terras, ou apenas o maior proprietário fundiário. Sua corte era constituída pela nobreza, seja senhores de feudos cedidos pelo rei, seja de senhores proprietários de feudos menores.
Olhando-se com atenção, o feudalismo constituiu uma formação social e política conflituosa, não apenas em sua origem, mas também em seu desenvolvimento. Suas classes sociais, a nobreza, o campesinato, os artesãos e os comerciantes, mantinham relações extra-econômicas entre si, permeadas por contradições e conflitos constantes.
Os nobres viviam em constante pé de guerra com a realeza e entre si, seja para apropriar-se totalmente da riqueza gerada pelo campesinato e pelo artesanato, seja para dominar novos territórios, seja ainda para tornar-se o proprietário fundiário mais poderoso e dominar o Estado feudal. O campesinato, por sua vez, vivia em confronto com os senhores feudais, principalmente pela voracidade destes em apropriar-se das terras dos camponeses livres, de parcelas maiores da produção de camponeses servos, exigir mais corveias do que o que estava instituído nas obrigações, e praticar toda sorte de arbitrariedades. Também se chocava com os comerciantes em relação aos preços dos produtos agrícolas, que vendia a eles, e aos preços dos produtos artesanais, que comprava.
Os artesãos trabalhavam sob regras rígidas, vendo-se constantemente pressionados pelos senhores feudais e pela realeza, ao mesmo tempo em que procuravam explorar os camponeses. As atividades dos comerciantes, por outro lado, dependiam de licença real e do direito de passagem através dos feudos. Ou seja, pagavam tributos tanto ao rei quanto aos senhores feudais, numa intensidade que os transformou paulatinamente numa classe em revolta, embora explorassem os camponeses e artesãos o máximo possível.
Embora no feudalismo, como no patriarcado e no escravismo, a mobilidade social de uma classe para outra fosse extremamente difícil, isso não impediu que a luta de classes se desenvolvesse e criasse situações em que membros das classes consideradas inferiores ascendessem a classes consideradas superiores. Tanto no Oriente quanto no Ocidente, a necessidade do Estado e a luta de classes abriram brechas para tal ascensão política, social e econômica. Exemplo disso foi Liu Ban, um camponês livre que, no século 2 antes de nossa era, comandou a revolta vitoriosa contra a monarquia Qin e, após também derrotar seus aliados feudais, tornou-se o primeiro imperador da dinastia Han.
De qualquer modo, essa mobilidade pouco tinha a ver com as contradições que estavam sendo gestadas nas entranhas das próprias sociedades feudais e iriam modificar seu curso histórico, transformando as classes sociais existentes em novas classes e dando surgimento a novas formações sociais.
*Wladimir Pomar é analista político e escritor.

Libertadores da América

Simón Rodríguez: plantador de uma nova América


“Professor é o que ensina a aprender e ajuda a compreender”
22/10/2013

Elaine Tavares

Findava o século 18 quando nesse continente dominado pela ocupação espanhola uma voz solitária propõe outra forma de educar as crianças, para além do simplesmente escrever o nome e soletrar algumas palavras. Era o jovem Simón Rodríguez, professor numa pequena escola da cidade de Caracas, Venezuela. Num documento que entra para a história, ele faz uma ácida crítica ao sistema educacional da época e expõe suas ideias. Segundo ele, o estado tinha de investir na formação de professores e a educação não podia mais ficar restrita aos jovens brancos bem nascidos. Era necessária uma educação popular capaz de formar meninos, meninas, negros e índios. Essa proposta, revolucionária para aquele então, o colocaria para fora da escola, mas começava aí a incrível trajetória desse educador sem igual na América Latina.

O começo
Simón Rodríguez nasce em Caracas no ano de 1771. Ele mesmo contava que fora um menino exposto, daqueles que são colocados nas portas dos conventos. Foi criado por Caetano e Rosália Rodríguez, embora sua educação estivesse a cargo do tio, que era sacerdote. Naqueles dias, a cidade de Caracas era um lugar aprazível, de grandes solares onde viviam os espanhóis e os criollos, servidos por escravos. Para essa sociedade, o trabalho era basicamente uma desonra e aos filhos da classe dominante se permitia unicamente a carreira militar além dos postos de mando da vida cotidiana. Havia apenas três estabelecimentos de educação na cidade: o convento dos Franciscanos, uma escola pública e a Universidade. Simón foi alfabetizado em casa, pelo tio, mas era um garoto aplicado e observador. Amava ler e devorou cada livro que encontrou na biblioteca do tio, que era bem servida. Na Caracas daqueles dias chegavam os franceses da ilustração (Montesquieu, Voltaire, Rousseau) e Simón os conhecia. Também tinha acesso aos escritos que chegavam dos Estados Unidos e acompanhou o processo de independência daquele país, bem como o da Revolução Francesa. Forjava-se nele o espírito da rebelião.
Em 1791, com apenas 20 anos, consegue o cargo de professor na escola pública e tem sob seu comando 114 alunos. Simón não tem experiência, mas observa que o ensino ministrado não tem um método e começa a matutar sobre essa deficiência. Amante de Rousseau, quer estabelecer outra relação com os alunos, mas fica prisioneiro das regras. Então, decide ensinar alguns dos alunos em sua própria casa, que gradativamente torna-se uma escola. A cidade olha curiosa para aquele garoto de aparência séria que dedica sua vida ao ensino. E é essa pequena “fama” que faz com que o tutor de Simón Bolívar peça ao educador que assuma a educação do garoto, então com nove anos. Começa aí a relação dos dois Simóns que mudará a face da colônia.
No começo Simón atende o garoto Bolívar na casa da família e passa a usar com ele as ideias de Rousseau. Uma educação ao ar livre, repleta de brincadeiras e exercícios físicos. O ensino das letras vai devagar. Com o passar do tempo, a família de Bolívar percebe que não há muito avanço e exige mais. Então, Simón propõe que o garoto fique na escola que mantém em sua casa, junto com os demais alunos. Já naqueles dias a escola de Simón era bem diferente. Recebia, além de filhos da aristocracia, crianças de famílias pobres, uma coisa praticamente inédita para a época. E lá se vai Bolívar estudar com negros e índios, além de dividir o quarto, coisa até então impensável para um herdeiro criollo. Há quem diga que foi aí que aquele que seria o “libertador” forjou seu amor pelas gentes da América. Mas, isso são especulações.
O certo é que Simón não se conformava em ver a educação das crianças colocada nas mãos de gente sem formação e sem método. Então se dispõe a registrar uma crítica avassaladora do sistema. Escreve o texto: “Reflexões sobre os defeitos que viciam a Escola de Primeiras Letras de Caracas e os meios para uma reforma por um novo estabelecimento”. Nele, o jovem professor arrasa com o sistema vigente, critica o fato de só ser oferecida educação às crianças brancas e aponta a necessidade de educar as crianças pobres, aos agricultores, aos artesãos. “O regime deve ser de igualdade”, diz. Mostra também que o sistema não se preocupa com a formação dos professores e insiste que esse deve ser o principal fator de mudança. Como proposta exige o aumento do número de escolas, capaz de atender todas as crianças em idade escolar, a formação de professores profissionais, salários dignos para os educadores, jornada de seis horas, móveis adequados para o ensino e finalizava exigindo que se tomasse a sério a escola de primeiras letras. “Uma escola até pode ser superficial, mas não inútil. O aluno não pode esquecer o que aprendeu. Há que ter cuidado e delicadeza para dar às crianças a primeira ideia de uma coisa”. Dizia isso porque havia a tradição de ensinarem até nas barbearias, enquanto afeitavam os clientes. Simón abominava isso. Defendia que como nessa idade a criança se distrai com qualquer coisa, era necessário um ambiente adequado e que o professor também prestasse atenção nas brincadeiras. “É necessário saber ler em todos os sentidos e dar a cada expressão o seu próprio valor”.
As reflexões de Simón não são bem vindas, nem na escola nem na administração. Ele se indigna e deixa o cargo, seguindo apenas com sua escola, em casa. Nesse meio tempo se engaja num movimento conspiratório pela independência que já existia em Caracas. O grupo é descoberto e Simón acaba fugindo para a Jamaica, visando escapar da justiça colonial. No dia do embarque recebe a visita de seu aluno, Bolívar, do qual se despede. Chegando à Jamaica Simón troca de nome, passa a chamar-se Samuel Robinson. Não quer nenhuma ligação com a vida antiga e jura nunca mais voltar à Venezuela. Pouco tempo depois vai para os estados Unidos onde fica por três anos trabalhando numa gráfica. Lá, ele aprende a editar e inventa uma nova forma de montar os textos, usando letras maiúsculas para destacar bem como criando manchetes.
Tem 30 anos (1801) quando embarca finalmente para a França. Lá abre escolas, ensina espanhol e inglês, lê como um louco e vai consolidando seu pensamento educativo. Três anos depois encontra, em Viena, seu antigo aluno, Bolívar, que passa a conviver com o mestre. Eles leem, estudam e viajam juntos. No ano de 1805 os dois seguem à pé até a Itália, aproveitando para discutir a realidade do mundo e da velha pátria colonizada. E é justamente no Monte Sacro que os dois fazem seu histórico juramento: libertar a pátria ou morrer. A partir daí, Bolívar retorna para a Venezuela, onde nos anos seguintes vai dar consequência a essa promessa. Simón segue no velho mundo criando escolas por todo o lugar onde passa: Itália, Alemanha, Prússia, Polônia e Rússia. O educador acompanha as façanhas de seu aluno na colônia e percebe que a vida por ali está prestes a sofrer uma grande transformação. Decide então, voltar para casa.

O retorno para a América
Simón tem 52 anos quando desembarca em Cartagena em 1823, disposto a dar todo o seu conhecimento para construir a Pátria Grande, liberta do jugo espanhol. Vinha honrar o juramento que fizera com Bolívar há quase 20 anos. As guerras de independência já estavam quase consolidadas. Bolívar era o grande libertador e comandava os destinos de toda a Gran Colômbia. Simón então viaja até Bogotá onde começa a pôr em prática a sua proposta pedagógica, amadurecida por longos anos de estudo e prática. Todos ali já sabem que ele é o grande mestre de Bolívar e todos os recursos são colocados à sua disposição para a criação da Casa de Indústria Pública, o que vem a ser o inovador método educativo de Simón. Nessa casa as crianças teriam ensino por tempo integral e além de estudarem as matérias clássicas aprenderiam também um ofício, aprendendo artes mecânicas. Seu foco eram as crianças mais pobres, que precisariam enfrentar o mundo que nascia com uma formação adequada. O educador entendia que o que estava nascendo era uma forma nova de ser nação e por conta disso era necessária também uma nova educação. “Formar o povo deve ser a única ocupação dos que se ligam a uma causa social”, dizia e, para ele, as novas repúblicas eram essa causa social.
Toda a sua linha de agir pedagógico já tinha sido eternizada num escrito chamado: “Sociedades Americanas”, que ele só conseguirá editar em 1828. Nele, Simón defendia que o aluno dessa nova forma de ser nação tinha de ser um sujeito pensante. “O que pensa, procede segundo sua consciência. O que não pensa, só imita”. Sua preocupação não era formar letrados e sim cidadãos, pessoas capazes de compreenderem seu espaço geográfico e político. Por isso insistia que em vez de papagaiar sobre os persas e os egípcios era necessário entender os índios. Simón queria tomar para si a tarefa de educar os jovens pobres que estavam pelas ruas, os abandonados, os ilegítimos, fazendo com eles se tornassem homens cientes de seus direitos na nova sociedade. “Deixemos a França e vejamos a América”, bradava. Sua proposta era de educação popular para que todos pudessem viver sem amos. “Na educação popular o filho do sapateiro se educa como o filho de um negociante. Ambos aprendem a faculdade do pensar. A instrução é para o espírito assim como o pão é para o corpo”. Simón tinha plena certeza de que se todos fossem instruídos, os ignorantes de então poderiam vira a ser conselheiros e os ladrões, companheiros de viagem. Certo de que a ignorância era a causa de todos os males, seu remédio era a educação. “A América é original, original hão de ser suas instituições e seus governos, e originais os meios de fundar um e outro. Ou inventamos ou erramos”.
Simón Rodriguez não podia conceber que a nova nação se erguesse sob bases antigas, sob imitações da Europa. Queria saídas originais e sabia que isso era possível. Queria homens e mulheres capazes de gerir sua própria história sem precisar de heróis ou mitos. Um homem que pensa é um homem livre, afirmava. E, para isso, era preciso investir tudo na formação de professores. Depois, com eles, criar as condições para que o ensino fosse um fazer-se compreender e não o velho estilo de trabalhar a memória. A proposta era formar homens úteis à República. Também insistia que era necessário educar e ensinar as mulheres “para que elas não se prostituíssem por necessidade, nem buscassem o casamento para garantir sobrevivência”. Toda a base de sua pedagogia era mesclar o ensino social, corporal e científico. “O fundamento do sistema republicano está na opinião do povo. Ninguém faz bem o que não sabe, então não se pode fazer uma república com gente ignorante”.
Seu conceito original de escola, a escola social, é o que ele tenta pôr em prática na Colômbia, mas não encontra eco. Ele queria formar pessoas que atendessem a uma autoridade social e não pessoal. Foi o precursor da Escola de Artes e Ofícios, da Universidade Popular. Na época, comandava a Colômbia aquele que viria a trair toda a proposta de Bolívar: Santander. E obviamente esse tipo de ensino não lhe era favorável.

De novo com Bolívar
Quando Simón finalmente encontra Bolívar, depois de mais de ano de sua chegada, decide que não é mais possível ficar na Colômbia e segue com seu antigo aluno rumo ao Peru. Bolívar quer que o velho mestre se incorpore ao esforço de construir a grande pátria americana e não mede esforços nem recursos para que ele consiga colocar em prática suas ideias educativas. Simón segue então para a cidade de Cuzco onde cria um colégio já dentro do seu padrão: para crianças pobres, com ensino de ciências, arte e trabalho. Para isso usa os espaços e o dinheiro das congregações religiosas, o que também já coloca uma boa parte do clero contra ele. Mas, como está com Bolíviar, tudo vai se fazendo conforme as regras ditadas por Simón. Em várias cidades peruanas surgem colégios desse tipo. Logo em seguida eles partem para a Bolívia aonde vão se encontrar com Sucre. Na cidade de La Paz Simón estrutura uma biblioteca e Bolívar decide nomear o professor para comandar todo o processo de Educação no nascente país. Assim, no ano de 1825, Simón é nomeado Diretor de Ensino e prepara um Plano Educativo para o governo de Sucre. Entendia ele que o primeiro dever de um governo é dar educação ao povo e, assim, monta uma proposta semelhante a que tinha tentado trabalhar na Colômbia: uma escola social. Para isso buscou recolher todos os órfãos que andavam vagando pelas ruas e os colocou em ambiente adequado para o ensino das artes, da ciência e do ofício. Também procurou acolher as meninas, as quais acreditava mereceriam também receber educação. Da mesma forma que no Peru, também usou propriedades da igreja.
Bolívar segue seu caminho e deixa Simón na Bolívia. Sem a proteção do libertador, Simón vai perdendo apoio no seu projeto. As autoridades locais, os padres e até mesmo Sucre não conseguem entender os métodos de caraquenho. É que ele insistia em proporcionar aos alunos aquilo que havia de melhor. Os melhores móveis, as melhores máquinas para o trabalho, os melhores professores. Tudo isso custava dinheiro e, no meio da guerra, os que estavam no comando acreditavam que havia coisas mais urgentes para investir. Seis meses depois de estar no cargo de Diretor Geral, ele sai de Chuquisaca e vai para Cochabamba criar mais uma escola. Aproveitando a ausência, o prefeito da cidade fecha a sua Escola Modelo que abrigava mais de 200 crianças. “Essa é uma escola para cholas e filhos de putas”, dizia o prefeito, e pregava a necessidade de ter uma escola apenas para “gente decente”. Intrigado com os padres que não queriam ver os bens da igreja sendo dispensados aos garotos pobres e aos índios, Simón vai sendo derrotado. Até mesmo Sucre o repreende pelo alto valor dos gastos e Simón se sente insultado. Então, renuncia ao cargo e sai da Bolívia. “Por querer ensinar mais do que todos sabem, não me entenderam, muitos me depreciaram, e alguns me ofenderam. Entretanto, para fazer republicanos é preciso gente nova”.
Derrotado na Bolívia ele volta ao Peru, vai para a cidade de Arequipa onde escreve seu livro “Sobre o Projeto Popular” que é a sistematização das experiências que ele havia dado início na Colômbia e na Bolívia. Ali orienta, mais uma vez, o ensino da ciência, das letras e de ofício, defende a educação das meninas, dos índios e dos pobres. “Todos devem ser bem alojados, bem vestidos e alimentados”. Sua proposta era de educação integral. Além disso, preocupava-se com a situação dos pais das crianças. Acreditava que era preciso garantir trabalho a eles, e socorro se fossem inválidos. “Há que formar homens úteis, dar-lhes terras e auxiliar nos seus negócios”. Não é sem razão que o método de Simón é visto como assustador pelos novos dirigentes criollos. Sua proposta educativa era também uma revolução social e econômica.

Educação colonizada
Naqueles dias em que a independência se consolidava não eram poucos os educadores europeus que vinham oferecer seus serviços a Bolívar e aos outros dirigentes das repúblicas. Um deles foi Lancaster. Seu método aparecia como muito mais interessante para os novos governadores porque era bem mais barato do que o de Simón. Lancaster propunha que os alunos mais adiantados fossem os professores dos menores, o que para Simón era uma vilania. Afinal, o pilar de sustentação do seu método era justamente a formação dos professores, a qualificação dos mesmos. “Instruir não é educar, nem instrução pode ser equivalente à educação, ainda que instruindo se eduque”, dizia, mostrando que aluno não podia educar aluno. Acreditava que na primeira escola as crianças, mais do que aprender a pintar as palavras, precisavam aprender a pensar e a raciocinar. E isso era tarefa para gente capacitada a educar. Simón trabalha com uma pedagogia prática: expõe como ensinar lógica, o idioma, o cálculo, a história, sempre por princípios e “como os princípios estão nas coisas, se ensinará a pensar”. Esse era seu mantra. “Ler não será estropear palavras para ganhar tempo, mas sim dar sentido aos conceitos. Assim, quem não entende o que está lendo, não deve ler”. E assim esgrimia sua crítica ao método lancasteriano. “O que pode ler aquele que não tem ideias?” Simón acreditava que ensinar mal era um crime que se cometia contra aqueles que deveriam ser os novos dirigentes na nova América.

Morre Bolívar
O ano de 1830 é particularmente triste para todo o continente sul-americano. A proposta de Bolívar de criar uma grande pátria, compostas por províncias interdependentes, fracassa. Traído pelos velhos companheiros, doente, Bolívar vê seu sonho desmoronar como um castelo de cartas. Certos de que a enfermidade vencerá o libertador, os novos dirigentes vão dando fim a qualquer rastro da Pátria Grande idealizada por ele. Sucre, que seria o braço direito do libertador e seu natural sucessor, é assassinado em uma emboscada. Pouco depois, Bolívar morre, abandonado e degredado. Para Simón, tudo aquilo também significaria a derrota de seu projeto de educação. Sem seu velho amigo e marcado como um dos homens de Bolívar, Simón terá seu caminho sistematicamente travado a partir daí.
Abandona Arequipa e segue para Lima, onde recomeça a dar aulas. Mas, não consegue avançar no seu método. As famílias “de bem” o chamam de louco e imoral, porque ele insiste em educar as meninas e os índios. Ainda assim, insiste na crítica à educação da época, escrevendo num jornal local: “Para ser uma república há que se investir em educação popular. Com homens já formados só se pode fazer o que se faz hoje: desacreditar a causa social”.
Simón permanece em Lima até o ano de 1834, quando completa 60 anos. Recebe o convite de um amigo para ir ao Chile ser reitor de um Colégio Provincial. Apesar de todos os ataques que sofre, ainda restam muitos seguidores de Bolívar, muitos homens dispostos a dar outra cara para as repúblicas nascentes e é aí que ele se ampara. Che ao Chile e prefere dirigir uma pequena escola, onde seu método pode vingar. Lá, ele ensina a partir de quatro quadros, que desenha na lousa. O primeiro era o fisionômico, no qual repassava as noções acerca das matérias e dos ofícios. O segundo era o fisiográfico, no qual repassava o conhecimento mais aprofundado sobre os temas. O terceiro era o fisiológico, no qual ensinava as ciências e o quarto era o econômico, no qual ensinava filosofia. Sua maneira de ensinar era expositiva. Não usava textos, apenas os quadros sinópticos, sempre apontando explicações que estivessem ao alcance dos alunos. “Encontrem vocês as suas ideias, para fixa-las e retê-las na memória. Procurem armazenar as ideias e se perguntem sobre o que fazer”.

Um homem sem raiz
Quando tudo parecia caminhar bem, alguma coisa acontecia e obrigava o velho educador a se mover. Era como se ele fosse predestinado a não encontrar guarida. Um ano depois de estar no Chile, um grande terremoto destrói a escola e faz com que Simón mude-se outra vez. Segue agora para Santiago onde abre uma escola e uma fábrica de velas, para dar aos alunos a possibilidade de aprender um ofício. Continua tentando imprimir uma educação transformadora, ainda acredita na possibilidade de um mundo novo. “A educação pública no século XIX pede muita filosofia. O interesse geral está chamando por uma reforma e a América está chamada pelas circunstâncias para empreendê-la. A América não deve imitar servilmente e sim ser original. Ideia, ideias, primeiro que letras”.
Naqueles dias, apesar de todos os infortúnios, Simón era muito procurado por educadores de todo o mundo. Vinha gente da Europa para conhecê-lo e aprender seu método. Mas, na América mesmo, sua voz era como pérolas aos porcos. Tanto que as escolas que criava acabam se fechando por falta de recursos. Não havia quem bancasse. E os que bancavam exigiam mudanças, queriam baixar os custos. Simón não aceitava. Foi o que se passou em Valparaíso, onde foi também obrigado a desistir da escola, embora seguisse com a fábrica de velas. Com sua fina ironia, dizia: “A liberdade me é mais querida que o bem estar. Vou continuar iluminando a América, sigo fazendo velas”.
A experiência chilena logo se desfaz e Simón volta para Lima onde permanece até o ano de 1843. Lá, aproveita o tempo para escrever seus livros. Tem 72 anos quando desde o Equador, um velho amigo o chama para ensinar na cidade de Latagunga. Atravessa os Andes no lombo de uma mula, mas não fica por lá muito tempo, em função da instabilidade política. O chamam da Venezuela, mas ele se nega a voltar. Segue então para a Colômbia outra vez. Apesar da idade, está forte e continua abrindo escolas por onde passa. Quando completa 80 anos de vida retorna para o Equador onde permanece por três anos ainda ensinando no Colégio São Vicente.
No final do ano de 1853 decide voltar para o Peru com o filho José e um amigo. Leva com ele tudo o que tem. Uma muda de roupa e duas caixas de livros. Sem recursos, eles decidem ir por mar, numa balsa. O mar encapelado, tempestades e eles se perdem. Quase naufragam. Acabam batendo numa pequena comunidade de pescadores. Simón está muito fraco e tem problemas de intestino. Os pescadores temem que seja doença contagiosa e expulsam os viajantes. O amigo vai até a aldeia, buscar ajuda junto ao padre. Explica quem é Simón, sua situação e o padre decide ajudar. Mas, depois, informado de quem era Simón, chamado de louco e imoral, não deixa que o velho venha para a aldeia. O confina numa propriedade fora do povoado. Simón vai definhando. Apenas uma caridosa mulher leva comida, apesar de ter sido proibida. Dois dias antes de morrer, manda chamar o padre. Ele vai, achando que o velho vai se confessar. Não o faz. Segundo o amigo, Camilo Gomez, ele apenas disserta uma arenga materialista e diz que a única religião que teve na vida foi o juramento que fez, junto com Bolívar, no Monte Sacro, de libertar a América. No dia seguinte, morreu. Foram 83 anos de caminhada pelo mundo, incompreendido, amaldiçoado. Mas nunca traiu seus princípios.

O legado
Simón foi, em tudo, um homem original. Casou-se cedo, teve um filho, mas não viveu para ser um pai de família tradicional. Seu destino era o de ser um plantador de escolas por todo o lugar onde passou. E não foram poucos. Saiu da Venezuela, por conspirador, e nunca mais voltou. Mas nunca deixou de mandar dinheiro para a esposa, apesar de nunca mais vê-la. Forjou seu pensamento acerca de educação na crítica sistemática e seu maior legado foi ter pensado a América desde a América. Não foi capaz de se oportunizar das novas possibilidades do mundo novo que se abria. Insistiu no seu método de ensinar a pensar os meninos, as meninas, os negros e os índios, a quem chamada de “os donos do país”. Queria formar gente capaz de ser sujeito de sua própria vida. “Dos brancos não espere nada. Mais vale entender os índios que a Ovídio”. Acreditava que a escola devia ser um lugar de acolhimento, com espaço para a educação e a brincadeira, tirando as crianças da rua. Queria seres pensantes: “Que aprendam as crianças a serem perguntadoras, para que pedindo o porquê se acostumem a obedecer a razão, não à autoridade como os limitados, nem aos costumes como os estúpidos”.
Simón também ensinava a partir da realidade local, da observação da realidade da criança. “Se ensinamos ciências exatas e de observação, os jovens aprenderão a apreciar o que pisam”. Ministrava uma educação social, não individual. Propunha-se a tirar o pobre da ignorância. “O homem não é ignorante porque é pobre, senão o contrário. Ensinem e terão quem saiba, eduquem, e terão quem faça. A América não deve imitar servilmente, deve ser original”.
Aquele que forjou Bolívar par a libertação tinha tanto amor pela educação que, apesar de toda a sisudez, foi capaz de produzir poesia. “Ler é ressuscitar ideias sepultadas no papel. Cada palavra é um epitáfio. Chamá-las à vida é uma espécie de milagre e, para fazê-lo, é necessário conhecer o espírito das palavras”. Tratado como louco ele ficou esquecido por longo tempo. Agora, tal qual as palavras que amava, ele também ressuscita, para assumir seu lugar no panteão dos grandes sábios dessa Abya Yala.
Simón Rodriguez, Samuel Robinson, presente!

Referências
Obras completas de Simón Rodríguez – Tomos I e II. Presidencia de la República. Venezuela, 1999

Elaine Tavares é jornalista.