Há espaço para jornal diário e de compromisso popular?
Por
que segmentos progressistas da população brasileira, em especial os
movimentos sociais organizados, jamais conseguiram implantar um jornal
diário e alternativo no país? Por que repórteres, de forma
cooperativada, também não conseguiram lançar um “jornal de jornalistas”,
nos moldes do italiano Il Manifesto ou do francês Le Monde? Mesmo a imprensa partidária brasileira tem história modesta. Nada vicejou por aqui que lembre veículos de prestígio como o L´Humanitè francês ou o L’Unità, da Itália.
Há quem entenda que Última Hora,
diário criado por de Samuel Wainer, durante o segundo governo Vargas
(1951-1954), com financiamento do Banco do Brasil e participação de
alguns empresários (Francisco Matarazzo, Euvaldo Lódi, Ricardo Jaffet,
Francisco Peixoto Gomide e Walter Moreira Salles) constituiu instigante e
renovadora experiência alternativa ao jornalismo mantido por grandes
grupos empresariais. Muitos deles, proprietários, além de jornais
impressos, de emissoras de TV, rádio e editoras de livros.
Samuel Wainer (1912-1980) assegura, na página 180 de seu livro de memórias, Minha Razão de Viver, que Última Hora foi
o exemplo de “uma imprensa genuinamente popular”. Quando o jornal
contava dois anos de existência, ele registrou em uma de suas páginas:
“Eis-nos na posse de plena vitalidade criadora. Melhor do que qualquer
outro argumento, atestam-no a nossa circulação e publicidade. E estamos
apenas no começo. Reivindicamos para nós o dever de criar no Brasil a
primeira grande imprensa popular, os primeiros grandes jornais de
massas, isentos de pressão de grupos econômicos, nacionais e
estrangeiros, vivendo exclusivamente do apoio de seus leitores e
anunciantes, podendo sem receios nem hesitações erguer cada vez mais
alto a bandeira, cuja legenda constitui a nossa própria razão de ser:
emancipação econômica, liberdade política, justiça social para o povo
brasileiro”.
No terceiro ano de existência de Última Hora,
Samuel Wainer reafirmou o papel do veículo do qual era proprietário e
editor: “Iniciamos no Brasil o ciclo da imprensa popular e nacional”.
Aloysio Castelo de Carvalho, professor da Universidade Federal
Fluminense (UFF) e autor de dois livros sobre a imprensa brasileira – O Caso Última Hora e o Cerco da Imprensa ao Governo Vargas e A Rede da Democracia – O Globo, O Jornal e o Jornal do Brasil na Queda do Governo Goulart (1961-1964) – reavalia os propósitos anunciados por Samuel Wainer:
“O Última Hora era
um jornal que atingia sobretudo os setores médios, progressistas, de
esquerda. Jamais foi um jornal que atingisse os setores populares, ou
seja, os trabalhadores da cidade, o proletariado, embora o jornal
falasse em seu nome, procurando representar e dar voz a esses setores.
Há uma enorme diferença entre falar em nome dos interesses nacionais e
populares, ou seja, defender um projeto de Nação que inclua os setores
populares e atingir em termos de vendas o público popular, os
trabalhadores. Se hoje fosse criado um jornal alternativo, de esquerda, a
situação se repetiria. O jornal atingiria, sobretudo, as camadas altas e
médias. Talvez pudéssemos observar alguns trabalhadores qualificados
lendo o jornal”.
Em 1964, com o triunfo do golpe militar, Última Hora, que teve edições no Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul, entre outros estados, conheceu momentos difíceis.
Seu
proprietário e editor exilou-se na Europa. Voltou ao Brasil alguns anos
depois, mas não havia mais clima para jornal que assumisse posições
ligadas ao ideário da esquerda nacionalista.
Era digital
Se a experiência de Última Hora foi
possível no tempo do jornal impresso, que apresentava o complexo e
dispendioso desafio da distribuição física – num Brasil de dimensões
continentais – um diário semelhante ao de Samuel Wainer seria viável em
tempos de suporte digital? Afinal, não há mais necessidade de parque
gráfico, nem de grandes quantidades de papel, nem de caminhões para
entrega de exemplares às bancas e aos assinantes.
Venício A. de Lima, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), especialista em mídia e autor de livros como Comunicação e Cultura: As Ideias de Paulo Freire e A Mídia nas Eleições de 2006, destaca
que, na verdade, setores importantes da esquerda brasileira, inclusive
partidos políticos, sempre trabalharam com a hipótese de “conquistar” o
apoio da mídia privada comercial, ao invés de pensar em patrocinar seu
próprio veículo. Ele entende que prioritário seria o apoio estatal à
mídia pública – caso da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), que
engloba TV, rádios e agência de notícia – de forma que ela pudesse se
constituir numa alternativa de qualidade. Algo semelhante ao que faz a
BBC, na Inglaterra.
O professor, formado pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), com estudos de doutorado e pós-doutorado
nos EUA, qualifica de “complexa e difícil” qualquer comparação com a
experiência do diário Última Hora, já que os tempos são outros.
Tempos em que “os jornais impressos, que ainda sobrevivem, estão
migrando para a internet. A nova geração – nossos filhos e netos – não
‘consome’ mais mídia impressa. A questão é nova e as respostas,
necessariamente, têm que ser pensadas neste novo contexto”.
O cientista político e professor da USP Bernardo Kucinski, autor do livro Jornalistas e Revolucionários – Nos Tempos da Imprensa Alternativa, define Última Hora como
“um jornal de linha política popular e antioligárquica, nisto diferindo
e se contrapondo à mídia convencional oligárquica e antipopular”. Mas
pondera que Última Hora “nunca foi um jornal alternativo”, pois “era produzido por uma grande empresa”.
Beto
Almeida, da junta diretora da TeleSur – emissora de TV, bancada pelo
governo da Venezuela em parceria com outros países da América Latina – ,
é um entusiasta da experiência histórica do jornal Última Hora e
defensor apaixonado da possibilidade de criação de um jornal diário, de
esquerda. “Penso nisto todos os dias”, confessa. “E acredito na
viabilidade de uma Cooperativa Nacional de Jornalistas. Temos mais de
100 mil jornalistas atuando no Brasil: será que não reuniríamos mil
deles para este projeto?”
Viabilidade de um diário
O
diretor da TeleSur-Brasil tem idéias claras sobre a estruturação do
suporte financeiro capaz de viabilizar o diário alternativo e de
esquerda. “Montaremos uma cooperativa nacional de jornalistas e
apoiadores, com cotas pertencentes a mil jornalistas, além de
escritores, ilustradores, pensadores e intelectuais de todas as
formações. Luiz Inácio Lula da Silva será o presidente de honra do novo
veículo. Que empresário progressista se negaria a atender a uma
solicitação do ex-presidente da República para que contássemos, durante
seis meses, com anúncios frequentes na fase inicial do jornal?”
Militante
do Partido dos Trabalhadores (PT), Beto Almeida lembra que “a criação
de um jornal popular foi aprovada em vários congressos do PT, mas nunca
implementada”. E que esta questão “perturba o equilíbrio interno do
partido, no qual há muita gente interessada apenas em assegurar e manter
posições de mando, seja nos estados, no Congresso Nacional ou nas
prefeituras”.
Para ele, “um jornal estimula a fruição intelectual
e política dos quadros partidários, promove um terremoto, bota a
direção para mexer-se, ganhar ritmo”. Isto, porém – lamenta – “contraria
muita gente, mas constitui necessidade histórica do Brasil e de seu
povo, vai além de uma bandeira partidária”.
No projeto que
acalenta a cada dia, Beto Almeida vê “um diário que não seja apenas um
jornal petista, mas sim um veículo de todas as forças que apóiam o
processo de mudanças iniciado com o governo Lula”.
“Na Argentina,
na Venezuela, na Bolívia e no Equador” – defende – “ já foram criados
jornais públicos e jornais populares, alguns diretamente estatais ,
outros com o apoio das forças que sustentam o governo, mas pertencentes a
entidades criadas para este fi m, lançar um jornal”. E constata: “Para
uma democratização das mídias eletrônicas, necessitamos de mudanças
constitucionais e de maioria parlamentar. O que é muito difícil”.
Já
“no caso de um jornal impresso popular, diário, de massas, tudo depende
apenas de nós. Claro que, hoje, este jornal seria também digital,
online, com recursos de multimídia”.
Dores do povo
Na
compreensão do jornalista da TeleSur-Brasil, “um jornal popular é um
veículo que assuma as dores do povo de maneira respeitosa,
questionadora, informativa e transformadora”. Cita verso de Chico
Buarque, em Gota D´Agua: A dor da gente não sai no jornal . “O
povo está em luta, mas isto não aparece no jornal. O povo cria, e isto,
apenas eventualmente sai no jornal. Há um amplo apoio popular ao
programa Mais Médicos e isso permitiria fazer reportagens criativas
sobre como o povão está reagindo ao programa em cada município. Onde
estão estas reportagens?”.
Beto sabe que o Le Monde francês, que nasceu como um jornal de jornalistas, já não é mais propriedade de sua Redação. “Sim, eu sei que o Le Monde está,
hoje, sob controle majoritário de um banco”. Mesmo assim, não perde as
esperanças, nem o humor: “por que os programas sociais podem distribuir
camisinha, dentadura, farinha, macarrão e não podem também distribuir
jornal?
Na França, a Previdência Social tem um jornal distribuído
gratuitamente a todos os segurados. E a publicação não aborda apenas
temas ligados à seguridade social. Trata-se de um jornal com informação
sobre política, economia, cultura, cinema, esportes, saúde etc”.
O
professor Aloysio Castelo de Carvalho também acredita que “um jornal
diário e alternativo, de esquerda, pode ser criado desde que tenha
suporte financeiro como foi o caso da Última Hora, que divulgava valores democráticos com foco nos temas da justiça e da igualdade social”.
Para
tanto – pondera – “seria necessário a união das forças políticas de
esquerda, do PT e outros partidos próximos, com suporte de um
empresariado disposto a apoiar uma nova visão do Brasil. Seria um passo
importante na democratização dos meios de comunicação”.
Certo desalento
Bernardo
Kucinski lembra que “já houve jornal diário e alternativo, na época do
Partidão (PCB), que tinha uma concepção de jornal organizador e
funcionava sob o conceito de ‘centralismo’”.
Hoje, o professor da
USP vê com certo desalento a possibilidade de implantação de um jornal
de esquerda e de grande alcance, mesmo que no suporte digital. “A nova
esquerda (leia-se PT) é constituída de facções que disputam espaço entre
si, cada uma com sua imprensa; os poucos projetos de frente entre
várias facções logo sucumbem devido à luta interna pelo controle
exclusivo.
Pelo mesmo motivo torna-se difícil um veículo digital
de grande porte alternativo, capaz de fazer frente a uma UOL, mesmo sem a
necessidade de arcar com todos os problemas de custo e distribuição que
caracterizavam a imprensa antiga.
No entanto, obviamente
tornou-se facílimo produzir, hoje, veículos digitais alternativos, e
eles aí estão aos milhares. Na verdade, a comunicação digital é por sua
natureza libertária e alternativa.