terça-feira, 24 de agosto de 2010

A tendência à barbárie e as perspectivas do socialismo



por James Petras [*]
Quadro de Fernando Botero.As sociedades ocidentais e os Estados estão se deslocando inexoravelmente para condições semelhantes à barbárie; mudanças estruturais estão revertendo décadas de bem-estar social e sujeitando o trabalho, os recursos naturais e as riquezas das nações à exploração bruta, à pilhagem e ao saque, rebaixando os padrões de vida e causando descontentamento num nível sem precedentes.

Inicialmente, descreveremos os processos econômicos, políticos e militares que vêm abrindo este caminho à decadência e à decomposição social, e a seguir mostraremos a reação das massas populares à deterioração de suas condições de vida. As profundas mudanças estruturais que acompanham a ascensão da barbárie constituirão a base para considerar as perspectivas para o socialismo no século XXI.

A crescente onda de barbárie 

Nas sociedades antigas, a "barbárie" e os seus portadores – os "bárbaros" invasores – foram vistos como uma ameaça vinda das regiões periféricas de Roma ou Atenas. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, os bárbaros vêm de dentro, da elite, com a intenção de impor uma nova ordem que corrói o tecido social e a base produtiva da sociedade, convertendo meios de subsistência estáveis em condições deterioradas e inseguras da vida cotidiana.

A chave para a barbárie contemporânea encontra-se nas estruturas internas do Estado imperial e da economia. Estas incluem:

1. A ascensão de uma elite financeira e especulativa, que tem saqueado trilhões de dólares dos poupadores, investidores, mutuários, consumidores e do Estado, subtraindo enormes recursos da economia produtiva e colocando-os nas mãos da camada parasitária aninhada no Estado e nos mercados financeiros.

2. A elite política militarista, que vem supervisionando um estado de guerra permanente desde meados do século passado. Terror de Estado, guerras intermináveis, assassinatos em zonas fronteiriças e a suspensão das garantias constitucionais tradicionais levaram à concentração de poderes ditatoriais, prisões arbitrárias, torturas e à negação do habeas corpus.

3. Em meio a uma profunda recessão econômica e estagnação, os altos gastos do Estado na construção de um império econômico e militar, às expensas da economia nacional e dos padrões de vida, refletem a subordinação da economia local às atividades do Estado imperial.

4. A corrupção desde o topo, visível em todos os aspectos da atividade do Estado - desde as aquisições de bens e serviços até a privatização e os subsídios para os super-ricos –, incentiva o crescimento do crime internacional de cima para baixo, a lumpenização da classe capitalista e um Estado onde a lei e a ordem se encontram em descrédito.

5. Resultantes dos elevados custos de construção do império e da pilhagem da oligarquia financeira, os encargos sócio-econômicos recaem diretamente sobre os ombros dos trabalhadores assalariados, aposentados e trabalhadores por conta própria, determinando uma grande mobilidade descendente na escala social ao longo do tempo. Com a perda de empregos e o desaparecimento das posições mais bem remuneradas, as retomadas de casas pelos bancos crescem exponencialmente e as classes médias, antes estáveis, encolhem, e os trabalhadores são forçados a alongar suas jornadas de trabalho diárias e a trabalhar durante um maior número de anos.

6. As guerras imperiais, que se espalham pelo mundo e são direcionadas a populações inteiras, que sofrem com os bombardeios e as operações clandestinas de terror, geram, em oposição, redes terroristas, que também atingem alvos civis nos mercados, transportes e espaços públicos. O mundo vai se parecendo ao pesadelo hobbesiano de "todos contra todos".

7. Um crescente extremismo etno-religioso ligado ao militarismo é encontrado entre os cristãos, judeus, muçulmanos e hindus, que substitui a solidariedade de classe internacional por doutrinas de supremacia racial e penetra as estruturas profundas dos Estados e das sociedades.

8. O desaparecimento dos Estados europeus e asiáticos de bem-estar social coletivo – nomeadamente, a ex-URSS e a China – levantou as pressões competitivas sobre o capitalismo ocidental e o encorajou à revogação de todas as concessões de bem-estar social obtidas pela classe trabalhadora no período pós-II Guerra Mundial.

9. O fim do "comunismo" e a integração da social-democracia ao sistema capitalista levaram a um enfraquecimento severo da esquerda, que os protestos esporádicos dos movimentos sociais não conseguiram substituir.

10. Diante do atual assalto às condições de vida dos trabalhadores e da classe média, só se vêem protestos esporádicos, no melhor dos casos, e impotência política, no pior.

11. A exploração maciça do trabalho nas sociedades capitalistas pós-revolucionárias, como a China e o Vietnã, compreende a exclusão de centenas de milhões de trabalhadores migrantes dos serviços públicos elementares de educação e saúde. A pilhagem sem precedentes e a captura, por oligarquias nacionais e multinacionais estrangeiras, de milhares de lucrativas empresas públicas estratégicas da Rússia, das repúblicas da ex-União Soviética, dos países da Europa Oriental, dos Bálcãs e dos países bálticos, foram a maior transferência de riqueza pública para mãos privadas, em curto espaço de tempo, em toda a História.

Em resumo, a barbárie surgiu como uma realidade definida, produto da ascensão de uma classe dominante financeira parasitária e militarista. Os bárbaros encontram-se aqui e agora, presentes dentro das fronteiras das sociedades ocidentais e seus Estados. Eles governam e perseguem agressivamente uma agenda que está continuamente a reduzir os padrões de vida, a transferir a riqueza pública para os seus cofres privados, a pilhar recursos públicos, a violar direitos constitucionais no exercício de suas guerras imperiais, a segregar e perseguir milhões de trabalhadores imigrantes e a promover a desintegração e o desaparecimento do trabalho estável e de classe média. Mais do que em qualquer outro momento na história recente, o 1% mais rico da população controla uma parcela crescente das riquezas e das rendas nacionais.

Mitos e realidades do capitalismo histórico 

A retirada, em grande escala e de forma sustentada, dos direitos sociais e previdenciários, da segurança no emprego, e as reduções de salários e aposentadorias, demonstram a falsidade da idéia do progresso linear do capitalismo. Essa reversão, produto do poder ampliado da classe capitalista, demonstra a validade da proposição marxista de que a luta de classes é o motor da História – na medida em que, pelo menos, a própria condição humana é considerada como sua peça central.

A segunda premissa falsa – a de que os Estados organizados em "economias de mercado" têm como pré-requisito a paz, tendo como corolário a ascendência dos "mercados" sobre o militarismo – é refutada pelo fato de que a principal economia de mercado – os Estados Unidos – tem permanecido em constante estado de guerra desde o início da década de 1940, estando ativamente engajada em guerras em quatro continentes, até os dias de hoje, e com perspectiva de novas, maiores e mais sangrentas guerras no horizonte. A causa e conseqüência da guerra permanente é o crescimento de um monstruoso "Estado de segurança nacional" que não reconhece fronteiras nacionais e absorve a maior parte do Orçamento do país.

O terceiro mito do "capitalismo avançado maduro" é o de que este sempre revoluciona a produção através da inovação e da tecnologia. Com a ascensão da elite financeira especulativa e militarista, as forças produtivas foram saqueadas e a "inovação" é em grande parte direcionada à elaboração de instrumentos financeiros que exploram os investidores, reduzem os ativos e acabam com o trabalho produtivo.

Enquanto o império cresce, a economia local se contrai, o poder está centralizado no Executivo, o poder legislativo é reduzido e aos cidadãos é negada uma representação efetiva, ou mesmo o poder de veto através de processos eleitorais.

A resposta das massas ao aumento da barbárie 

A ascensão da barbárie em nosso meio tem provocado revolta pública contra seus principais executores. As pesquisas de opinião têm reiteradamente encontrado:

(1) Profunda aversão e revolta contra todos os partidos políticos.

(2) Grande desconfiança, nutrida pela maioria da população, contra a elite empresarial e política.

(3) Rejeição, também pela maioria, da concentração de poder corporativo e do seu abuso, principalmente por parte dos banqueiros e financistas.

(4) Questionamento amplo das credenciais democráticas dos líderes políticos que agem a mando da elite empresarial e promovem as políticas repressivas do Estado de segurança nacional.

(5) Rejeição, pela grande maioria da população, da pilhagem do Tesouro nacional para salvação dos bancos e da elite financeira, com a imposição de programas de austeridade regressivos sobre a classe média trabalhadora.

Perspectivas para o socialismo 

A ofensiva capitalista teve certamente um grande impacto sobre as condições objetivas e subjetivas da classe média trabalhadora, empobrecendo-a e provocando uma onda crescente de descontentamento pessoal, que ainda não se traduziu numa movimentação anticapitalista massiva, ou mesmo numa resistência dinâmica e organizada.

As grandes mudanças estruturais requerem um melhor entendimento das atuais circunstâncias adversas e a identificação de novas instâncias e meios onde se desenvolvem a luta de classes e de transformação social.

Um problema-chave é a necessidade de se recriar uma economia produtiva e reconstruir uma classe trabalhadora industrial após anos de pilhagem financeira e desindustrialização, não necessariamente para as poluidoras indústrias do passado, mas certamente para novas indústrias que criem e utilizem fontes de energia limpa.

Em segundo lugar, as sociedades capitalistas altamente endividadas necessitam, fundamentalmente, sair do modelo de construção imperial militarista de alto custo em direção a um modelo de austeridade financeira baseado na classe e que imponha os sacrifícios e as reformas estruturais aos setores bancário, financeiro e comercial de grande varejo, que substitui a produção local pela importação de artigos de consumo de baixo custo.

Em terceiro lugar, o enxugamento do setor financeiro e do comércio retalhista exige a melhoria das qualificações dos trabalhadores que serão deslocados ou desempregados, bem como mudanças no setor de TI, de forma a acomodar as próprias mudanças econômicas. Exige, também, a mudança de um paradigma – da renda monetária para o rendimento social –, em que a educação pública e gratuita de alto nível, o acesso universal à saúde e as aposentadorias abrangentes substituirão o consumismo global financiado por dívidas. Isso pode se tornar a base para o fortalecimento da consciência de classe contra o consumismo individual.

Esta é a questão: como passar de uma posição em que a classe trabalhadora se encontra fragmentada e enfraquecida e os movimentos sociais em recuo ou na defensiva a uma posição em que seja possível lançar uma ofensiva anticapitalista?

Vários fatores subjetivos e objetivos já permitem o trabalho nesse sentido. Primeiro, há uma negatividade crescente contra a grande maioria dos atuais operadores políticos e, em particular, contra as elites econômicas e financeiras que estão claramente identificadas como responsáveis pelo declínio nos padrões de vida. Em segundo lugar, há o ponto de vista popular, compartilhado por milhões de pessoas, de que os atuais programas de austeridade são claramente injustos - com os trabalhadores a pagar pela crise que a classe capitalista produziu. Até o momento, no entanto, estas maiorias são mais "anti"-status quo do que "pró"-transformação. A transição do descontentamento privado para a ação coletiva é uma questão em aberto quanto a quem a desencadeará e como o fará, mas a oportunidade está presente.

Existem vários fatores objetivos que podem deflagrar uma mudança qualitativa do descontentamento, deslocando-o da raiva passiva rumo a um maciço movimento anticapitalista. Um "duplo mergulho" na recessão, o fim da atual recuperação anêmica e o início de uma recessão mais profunda e prolongada ou de uma depressão poderiam desacreditar ainda mais os governantes atuais e seus aliados econômicos.

Em segundo lugar, o aprofundamento interminável da austeridade poderá desacreditar a noção atual, difundida pela classe dominante, de que os sacrifícios atuais são necessários para se obterem ganhos futuros, abrindo as mentes e encorajando os corpos a se moverem à procura de soluções políticas, de forma a alcançar ganhos no presente e infligir dor às elites econômicas.

As inesgotáveis e "invencíveis" guerras imperiais que sangram a economia e a classe trabalhadora podem, em última análise, criar uma consciência de que a classe dominante oferece "sacrifícios" à nação sem nenhuma finalidade "útil".

Provavelmente, o efeito combinado de uma nova etapa da recessão, a austeridade perpétua e as estúpidas guerras imperiais acabarão por transformar o mal-estar atual e a difusa hostilidade das massas contra a elite econômica e política em favor dos movimentos socialistas, partidos e sindicatos.
[*] Sociólogo. Ver obras do autor  .

Tradução de http://www.correiocidadania.com.br/content/view/4921/9/ 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Os alemães tornaram-se cépticos em relação ao capitalismo

Os comentadores alemães rejubilam com as exportações e os políticos anunciam o fim da crise e o regresso à normalidade. Mas a população não parece convencida. Por João Alexandrino Fernandes, de Tübingen, Alemanha, para o Esquerda.net.
Uma recente sondagem indica que 88% dos alemães tornaram-se cépticos em relação ao capitalismo e aspiram a uma nova ordem económica. Foto Werner Kunz/Flickr
Uma recente sondagem indica que 88% dos alemães tornaram-se cépticos em relação ao capitalismo e aspiram a uma nova ordem económica. Foto Werner Kunz/Flickr

Têm vindo a surgir nos meios de comunicação social notícias sobre a recuperação económica da Alemanha: a Alemanha está a sair da crise, prevendo-se já uma taxa de crescimento de 3% em 2010. A Alemanha, o “motor” da Europa, está de regresso - assim se pensa, pelo menos.
Porém, o mais interessante é que estas notícias, que parecem convencer todos, não convencem a população alemã!
Neste momento diz-se que a economia da Alemanha cresce. Os comentadores rejubilam com as exportações e os políticos anunciam o fim da crise e o regresso à normalidade. E no entanto, segundo uma sondagem agora divulgada, efectuada pelo instituto de pesquisa de opinião Emnid, por incumbência da Fundação Bertelsmann, esta euforia não se reflecte no estado de espírito da população. A maioria das pessoas não acredita que tudo volte a ser como era de forma assim tão simples. Pelo contrário: dois terços da população não esperam sequer que a recuperação económica faça aumentar automaticamente a sua qualidade de vida.
Segundo a sondagem, a convição da população alemã mudou e tudo indica que de forma estável. De facto, 88% dos alemães tornaram-se cépticos em relação ao capitalismo e aspiram a uma nova ordem económica: acreditam que o capitalismo não toma suficientemente em consideração quer o equilíbrio social, quer a protecção do ambiente, quer a necessidade de uma relação cuidadosa com os recursos naturais.
Significa esta atitude que os alemães pretendem uma revolução? Atendendo aos resultados da sondagem, não. Significa que os alemães estão pensativos e que vêem a responsabilidade pela actual situação económica e social não só nos políticos e nos dirigentes da economia, mas também em si próprios: quatro em cada cinco alemães são da opinião de que cada um deveria reflectir sobre a sua própria forma de vida, sobre se, para si, o crescimento económico é tudo.
Hoje em dia valores como a justiça social ou a protecção ambiental são para a maioria dos alemães tão importantes que influenciam de forma crescente a sua posição relativamente ao sistema económico. Para a grande maioria dos cidadãos as fontes de qualidade de vida pessoal são de natureza imaterial: relações sociais, saúde e condições ambientais são mais importantes do que ter mais dinheiro e propriedade.
Importante também é que esta nova escala de valores recolhe um consenso fora do vulgar em todos os escalões sociais e mostra-se independente dos níveis de educação. Uma afirmação da pesquisa: “a prosperidade social é, para mim, menos importante do que a protecção ambiental e a redução das dívidas do Estado” mereceu não só a concordância de 75% das pessoas com formação liceal, a forma mais elevada do ensino secundário e que permite o acesso ao ensino superior, mas também a concordância de 69% das pessoas com a formação da chamada “Hauptschule”, que é a forma mais elementar do ensino secundário alemão.
Segundo os resultados da sondagem, os alemães acreditam ainda que o sistema económico pode ser orientado na direcção certa e a maioria está convencida de que crescimento e protecção ambiental são objectivos compatíveis um com o outro – mas pressupondo que existe para tal a necessária vontade política. 82% consideram a continuação do crescimento indispensável para a estabilidade política, mas em contrapartida não acreditam nas chamadas “forças de regeneração próprias” do mercado, em relação às quais os jovens são particularmente cépticos - e, pode-se aqui bem dizer, com razão. O que a crise financeira precisamente demonstrou foi o contrário, foi que quem “regenerou” o mercado não foram nenhumas “forças de regeneração próprias”, mas sim as gigantescas transferências de fundos feitas pelo Estado para instituições financeiras aí a operar.
São todas estas incongruências ligadas ao sistema económico, acrescidas da comprovada incapacidade do sistema para resolver os problemas de justiça social e para deter a ameaça de destruição ambiental, neste momento já à escala planetária, fortalecidas pela constatação de que por mais que os números digam que a economia cresce, o impacto deste crescimento pouco ou nada se faz notar na vida do cidadão comum, ao passo que, na situação contrária, de crise, o impacto negativo é imediato, que os alemães parecem ter deixado de ignorar.
Ora, deixar de ignorar não é, certamente, condição suficiente - mas é condição necessária para qualquer mudança seja possível.

Fontes: "Umfrage: Neun von zehn Deutschen fordern neue Wirtschaftsordnung“, in Spiegel Online, 18. August 2010, www.spiegel.de. "Umfrage-Wachstumsskeptisch“ em Zeit Online, 18.08.2010,www.zeit.de.

Homenagem a Getulio Vargas

Porque não mataram Getúlio

Brizola Neto no Tijolaço

A essa hora da manhã, 56 anos atrás,  as ruas já estavam cheias de uma multidão atônita, em pânico, em lágrimas.
O estampido do pequeno revólver que disparara a bala fatal no coração de Getúlio Vargas ecoava como se fosse um poderosíssimo canhão, um grunhido de dor que enchia os subúrbios da cidade, tomava corpo e, em pernas, em caminhões, em trens e em ônibus, começava fluir, em ondas, para as praças.
E a dor e a raiva, tão sempre companheiras, se misturaram numa comoção coletiva e em atos de inconformismo, queimando os jornais que detratavam o velho, empresas estrangeiras. O então jovem gaúcho Paulo José, o grande ator, conta que a multidão, em Porto Alegre, saiu “depredando tudo que tivesse nome americano: o Consulado, as Lojas Americanas, até a American Boite…”
Nem eu nem você vivemos estas cenas. Elas e perderam no tempo e sobrevivem apenas em velhos e riscados filmes em preto e branco, como o que reproduzo aí em cima, (espere um pouquinho, daqui a pouco a edição fica pronta e eu publico)com uma regravação, por Zé Ramalho, do genial “Ele disse”, composto por Jackson do Pandeiro sobre a carta testamento de Getúlio ainda ali, no terremoto da tragédia.
Mas será que é mesmo assim? Será que comoas velhas fotos  de família que parecem nos retratar como já não somos mais, na aparência, não se guardam ali as raízes do que fomos e somos e que irrigam nossos sonhos e desejos.
O Vargas dos direitos trabalhistas, do petróleo, da exploração soberana dos nossos recursos naturais, dos bairros operários, dos Iapis, que entoava o seu “trabalhadores do Brasil” ao discursar, para mostrar que falava ao povo, essencialmente, e não às elites deste país é uma destas raízes.
Formou-se e tomou corpo absorvendo a seiva das lutas sociais da primeira metade do século 20 e cresceu em direção à luz do sonho de uma soberania nacional, um desenvolvimento autônomo que, como o sol, não importa que o quão longe esteja, nos alimenta com sua força vital.
Ah, quantos machados e quantas serras tentaram cortar esta raiz. A ditadura e seus porões e seus exílios. Depois, os professores de finos modos e feroz crueldade, como Fernando Henrique e, como ele, outros tantos que, filhos de Vargas, desejaram tomar daquele pequeno revólver e disparar não contra seu peito, mas contra o que dentro dele havia: o desejo de um Brasil soberano, livre, forte, dono de suas riquezas e habitado por  uma gente que reunia todas as diferenças de pele, voz, secas, águas, campos, praias, frios calores, mas que se igualava naquela expressão que os chamava à consciência de que éramos um povo e um povo valoroso:
“Trabalhadores do Brasil”.
Se Vargas estava morto,o que mais queriam matar?
Era isso, meus amigos, era isso.
Os que vieram de Vargas, na primeira geração, Jango e Brizola, receberam um anátema. Eram malditos. Foi preciso bani-los, para o exílio, para a morte ou para o desterro político do “ultrapassado, populista, demagogo”. Não houve poucos, que, com a arrogância dos que acham que, antes deles, nada havia, repetiram o que vinha das vozes oficiais, fixando seus olhos nas origens e nos defeitos dos personagens, sem serem capazes de entender que alinão estavam apenas homens de carne e osso, mas personagens da história.
Mas o processo social é caprichoso. Ao tomar posse, depois de uma estrondosa eleição popular, Getúlio saudo o povo trabalhador dizendo: “Hoje, estais com o Governo, amanhã, sereis Governo”.
Pois não é que um operário de carne e osso – bem verdade que, por tempos, tutelado como ícone por um grupo de intelectuais onde não faltavam os elitistas,  que torcia o nariz ao nome de Getúlio, chegou ao Governo. Lá, lá, ao seu jeito e nas suas circunstâncias, entendeu o que foi o velho, ao ponto de repetir seu gesto sujando a mão de petróleo, de praticar uma política de valorização do salário-mínimo que e muito mais forte do que aquele discurso de “conquista da categoria organizada” e de entender que modernização do país e crescimento econômico só podem existir, de verdade, quando há ascensão do nosso povão.
Em um artigo que li, do professor Emir Sader, ele pergunta:
- Como isso foi possível, depois de 21 anos de ditadura militar e de mais de uma década de governos neoliberais? Qual o fio condutor que articula o movimento popular brasileiro desde suas origens contemporâneas, na Revolução de 30, passando por estas oito décadas de acontecimentos tão significativos – progressivos e regressivos – até chegar ao complexo período que vivemos?
Foi, professor, o fio da História, aquele que é tecido por gente e por fatos, por sonhos, por conquistas e derrotas, em que cada ponto se apóia e firma no ponto anterior, e no anterior, e no anterior,até estarmos todos seguindo uma linha que podemos nem mesmo saber onde começa, mas que serpenteia inexorávelmente em uma direção, como um rio procura o mar.
 
PS. Hoje, às 15 horas, quando fizermos uma pequena homenagem a Getúlio, em seu busto, na Cinelândia, preparei uma surpresa, uma cena que vai parecer uma brincadeira a alguns. Não me importo. A memória de Vargas é para ser lembrada com alegria, não com lágrimas. Porque a melhor homenagem que ele poderia desejar está expressa na sua própria letra, às portas do gesto heróico de 24 de agosto de 1956: que o povo de quem ele foi escravo, um dia, não mais seja escravo de ninguém.