Porque não mataram Getúlio
Brizola Neto no Tijolaço
A essa hora da manhã, 56 anos atrás, as ruas já estavam cheias de uma multidão atônita, em pânico, em lágrimas.
O estampido do pequeno revólver que disparara a bala fatal no coração
de Getúlio Vargas ecoava como se fosse um poderosíssimo canhão, um
grunhido de dor que enchia os subúrbios da cidade, tomava corpo e, em
pernas, em caminhões, em trens e em ônibus, começava fluir, em ondas,
para as praças.
E a dor e a raiva, tão sempre companheiras, se misturaram numa
comoção coletiva e em atos de inconformismo, queimando os jornais que
detratavam o velho, empresas estrangeiras. O então jovem gaúcho Paulo
José, o grande ator, conta que a multidão, em Porto Alegre, saiu “depredando tudo que tivesse nome americano: o Consulado, as Lojas Americanas, até a American Boite…”
Nem eu nem você vivemos estas cenas. Elas e perderam no tempo e
sobrevivem apenas em velhos e riscados filmes em preto e branco, como o
que reproduzo aí em cima, (espere um pouquinho, daqui a pouco a edição fica pronta e eu publico)com
uma regravação, por Zé Ramalho, do genial “Ele disse”, composto por
Jackson do Pandeiro sobre a carta testamento de Getúlio ainda ali, no
terremoto da tragédia.
Mas será que é mesmo assim? Será que comoas velhas fotos de família
que parecem nos retratar como já não somos mais, na aparência, não se
guardam ali as raízes do que fomos e somos e que irrigam nossos sonhos e
desejos.
O Vargas dos direitos trabalhistas, do petróleo, da exploração
soberana dos nossos recursos naturais, dos bairros operários, dos Iapis,
que entoava o seu “trabalhadores do Brasil” ao discursar, para mostrar
que falava ao povo, essencialmente, e não às elites deste país é uma
destas raízes.
Formou-se e tomou corpo absorvendo a seiva das lutas sociais da
primeira metade do século 20 e cresceu em direção à luz do sonho de uma
soberania nacional, um desenvolvimento autônomo que, como o sol, não
importa que o quão longe esteja, nos alimenta com sua força vital.
Ah, quantos machados e quantas serras tentaram cortar esta raiz. A
ditadura e seus porões e seus exílios. Depois, os professores de finos
modos e feroz crueldade, como Fernando Henrique e, como ele, outros
tantos que, filhos de Vargas, desejaram tomar daquele pequeno revólver e
disparar não contra seu peito, mas contra o que dentro dele havia: o
desejo de um Brasil soberano, livre, forte, dono de suas riquezas e
habitado por uma gente que reunia todas as diferenças de pele, voz,
secas, águas, campos, praias, frios calores, mas que se igualava naquela
expressão que os chamava à consciência de que éramos um povo e um povo
valoroso:
“Trabalhadores do Brasil”.
Se Vargas estava morto,o que mais queriam matar?
Era isso, meus amigos, era isso.
Os que vieram de Vargas, na primeira geração, Jango e Brizola,
receberam um anátema. Eram malditos. Foi preciso bani-los, para o
exílio, para a morte ou para o desterro político do “ultrapassado,
populista, demagogo”. Não houve poucos, que, com a arrogância dos que
acham que, antes deles, nada havia, repetiram o que vinha das vozes
oficiais, fixando seus olhos nas origens e nos defeitos dos personagens,
sem serem capazes de entender que alinão estavam apenas homens de carne
e osso, mas personagens da história.
Mas o processo social é caprichoso. Ao tomar posse, depois de uma
estrondosa eleição popular, Getúlio saudo o povo trabalhador dizendo:
“Hoje, estais com o Governo, amanhã, sereis Governo”.
Pois não é que um operário de carne e osso – bem verdade que, por
tempos, tutelado como ícone por um grupo de intelectuais onde não
faltavam os elitistas, que torcia o nariz ao nome de Getúlio, chegou ao
Governo. Lá, lá, ao seu jeito e nas suas circunstâncias, entendeu o que
foi o velho, ao ponto de repetir seu gesto sujando a mão de petróleo,
de praticar uma política de valorização do salário-mínimo que e muito
mais forte do que aquele discurso de “conquista da categoria organizada”
e de entender que modernização do país e crescimento econômico só podem
existir, de verdade, quando há ascensão do nosso povão.
Em um artigo que li, do professor Emir Sader, ele pergunta:
- Como isso foi possível, depois de 21 anos de ditadura militar e
de mais de uma década de governos neoliberais? Qual o fio condutor que
articula o movimento popular brasileiro desde suas origens
contemporâneas, na Revolução de 30, passando por estas oito décadas de
acontecimentos tão significativos – progressivos e regressivos – até
chegar ao complexo período que vivemos?
Foi, professor, o fio da História, aquele que é tecido por gente e
por fatos, por sonhos, por conquistas e derrotas, em que cada ponto se
apóia e firma no ponto anterior, e no anterior, e no anterior,até
estarmos todos seguindo uma linha que podemos nem mesmo saber onde
começa, mas que serpenteia inexorávelmente em uma direção, como um rio
procura o mar.
PS. Hoje, às 15 horas, quando fizermos uma pequena homenagem a
Getúlio, em seu busto, na Cinelândia, preparei uma surpresa, uma cena
que vai parecer uma brincadeira a alguns. Não me importo. A memória de
Vargas é para ser lembrada com alegria, não com lágrimas. Porque a
melhor homenagem que ele poderia desejar está expressa na sua própria
letra, às portas do gesto heróico de 24 de agosto de 1956: que o povo de
quem ele foi escravo, um dia, não mais seja escravo de ninguém.
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