segunda-feira, 23 de julho de 2007

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A Igreja pagando pelos pecados


Carlos Pompe*

O mundo vai dando suas voltas e, vez por outra, algumas instituições sofrem com reviravoltas. É o que está acontecendo com a Igreja Católica Apostólica Romana, condenada nos Estados Unidos devido a alguns casos de abuso sexual de menores por seus pastores. Tão soberba, dias atrás, quando divulgou um documento afirmando ser a única representante de Cristo na Terra (aliás, Balzac já alertava sobre os beatos: “Sempre ter razão é um dos sentimentos que nessas almas despóticas substitui todos os demais”), agora veste as sandálias da humildade e, como Jesus, desafia: “Atire a primeira pedra quem nunca pecou”...


Tudo tem seu preço?
A Igreja fez um acordo para pagar U$ 660 milhões como indenização por molestar crianças – na maioria das vezes, meninos – realizado por sacerdotes nos Estados Unidos. Flagrado em pecado, o Vaticano se manifestou através do porta-voz padre Federico Lombardi, que esqueceu o ensinamento cristão de não julgar para não ser julgado: “Como o problema dos abusos contra a infância e sua adequada tutela não se refere de jeito nenhum somente à Igreja, mas também a muitas outras instituições, é justo que estas também tomem as medidas necessárias”, afirmou. Seu colega Manuel Monteiro de Castro, núncio apostólico na Espanha, atacou os meios de comunicação (também lá foram flagrados padres pedófilos), acusando-os de serem cáusticos para com os escândalos sexuais protagonizados pelo clero.
Esses crimes se multiplicam pelo mundo afora. No Brasil, no ano passado, a Procuradoria do Estado de São Paulo pediu à Igreja indenização pelos crimes do padre Alfieri, que molestou 13 crianças, duas delas com apenas 5 e 6 anos. O sacerdote as colocava numa instituição de caridade que dirigia na região de Sorocaba. O padre filmou e escreveu num diário os crimes que cometeu.
É comum, quando um religioso é flagrado nesses casos, ele ser transferido pela alta cúpula de Igreja para outra região, evitando assim que seja punido pela lei e que a instituição fique exposta, podendo então continuar posando de mantenedora dos bons costumes e portadora oficial da ética e dos valores humanos mais sublimados. Quando a mera transferência do pervertido não acalma as ovelhas violadas e violentadas, a alta hierarquia apela para as indenizações. O atual caso da indenização pecuniária nos EUA envolve 113 criminosos, dos quais apenas 4 enfrentam os tribunais. Em 2004, a arquidiocese de Orange pagou 100 milhões de dólares para encerrar 90 processos; em 2005 a diocese de Oakland pagou 56 milhões de dólares para 56 vítimas; em 2006 a diocese de Convington pagou 84 milhões de dólares a 350 vítimas.
No caso das penas indenizatórias, pode-se dizer que a Igreja está pagando na mesma moeda punições que outrora prodigalizou em distribuir. Em 1517, o papa Leão X promulgou a Taxa Camarae, para vender indulgências. Determinava o segundo dos seus 35 artigos: "Se o eclesiástico, além do pecado de fornicação, quiser ser absolvido do pecado contra a natureza ou de bestialidade, deve pagar 219 libras e 15 soldos”. Talvez refletindo já na época uma preferência dos senhores que envergam batina e continuam sexualmente ativos, mandando aos diabos o voto de castidade, o artigo 2º anunciava um abatimento: “Mas se tiver apenas cometido pecado contra a natureza com crianças ou com animais e não com mulheres, pagará unicamente 131 libras e 15 soldos."
Mas, infelizmente, são pouquíssimos os depravados punidos. Quase nem sempre se realiza o ditado popular: aqui se faz, aqui se paga.



*Carlos Pompe, Jornalista e Curioso do mundo.

O renascimento da tensão russo-americana



Virgílio Arraes

O tema principal da última reunião do G8, que congrega os sete países mais ricos do globo e a Rússia, estava previamente relacionado com a questão ambiental, ao buscar-se estabelecer um percentual comum na emissão de gases provocadores do efeito estufa. Sediada na Alemanha, a proposta havia sido originada pela primeira-ministra do país, Angela Merkel, ela mesma ministra do Meio Ambiente entre 1994 e 1998.

De acordo com a proposta germânica, o G8 teria condições de cingir a dois graus Celsius a ampliação da temperatura até 2050, o que significaria diminuir o nível de liberação de gases à metade do de 1990. Contudo, os Estados Unidos não aceitam a fixação de meta alguma sem a inclusão de, ao menos, Índia e China, a segunda emissora de gases do globo.

Na visão estadunidense, um compromisso poderia ser apenas estipulado se se agregassem os quinze maiores países poluidores, o que abarca o Brasil – desde 1990, enquanto a União Européia diminui suas emissões, tendo por parâmetro o percentual dos anos 90, ainda que modestamente, os Estados Unidos aumentam-nas.

Contudo, o assunto subjacente ao encontro seria a tensão crescente entre Estados Unidos e Rússia, ocasionada pela instalação de mísseis na Europa Oriental, cujas conseqüências poderiam atingir até mesmo o programa multilateral de cooperação espacial - iniciado na segunda metade dos anos 1990 - de bastante interesse para a União Européia, por viabilizar-lhe literalmente uma outra plataforma de lançamento para seus satélites, dentre outras considerações.

Conquanto afirme, de público, que a Rússia é assaz importante para a oposição ao terrorismo, propagação de armas de destruição de massas e fundamentalismo, a política externa norte americana desenvolve duas frentes, de modo que desgaste politicamente o governo Putin: por um lado, propaga-se a visão de que o governo russo menoscaba rotineiramente os direitos individuais de seus cidadãos, restringe severamente o direito de livre informação dos meios de comunicação, coíbe implacavelmente as atividades de organização não governamentais e oprime ferreamente os seus opositores partidários.

Enfim, estar-se-ia diante de um renascimento do autoritarismo russo, de feitio externo distinto do passado, por não estar mais uniformizado com a estrela vermelha, porém de caráter estatizante, o que ocasionaria eventual afastamento do Ocidente liberal;

Por outro, na frente externa, cultiva-se a perspectiva de, em breve, talhar-se territorialmente a Sérvia, tradicional aliada russa, ao reconhecer-se o direito de independência do estado do Kosovo, atualmente sob supervisão européia; avança-se no projeto de instalar 10 bases antimísseis na Polônia e um sistema de radares antimísseis na República Tcheca, antigas áreas de influência russas durante a Guerra Fria, sob justificativa oficial de proteger a União Européia e os próprios Estados Unidos de ataques provindos de Estados renegados do Oriente Médio e adjacências, como o Irã, e, quiçá, Coréia do Norte.

Hodiernamente, três países apenas dispõem de tecnologia para o fabrico de mísseis intercontinentais: Rússia, Estados Unidos e China. Na avaliação russa, o Irã, na melhor das hipóteses, mal teria condições de lançar mísseis de médio alcance, o que, portanto, não embasaria a retórica estadunidense de justificar as instalações militares tcheco-polonesas.

Todavia, os Estados Unidos estimam que, desde 2000, o Irã tornou-se detentor de tal tecnologia, ao lançar o Sahab-3, com alcance entre mil e 500 a dois mil quilômetros. Desta maneira, o governo iraniano teria condições de, ao menos, bordejar a fronteira asiática da Rússia, além de poder atingir a maior parte do Oriente Médio.

Saliente-se que os atritos amero-russos ampliam-se há alguns anos e não se restringem a tópicos militares. Desde meados de 2003, quando o governo russo confrontou-se politicamente com alguns dos potentados locais - beneficiados no generoso processo de privatização executado pela gestão de Boris Yelstin - conhecidos como oligarcas, o governo norte-americano interpreta o posicionamento como sinalização de uma ampla nacionalização vindoura.


Diante dos últimos reveses militares norte-americanos na região médio-oriental e cercanias, onde se almeja a privatização da exploração das reservas de petróleo e gás, a fim de manter-se a regularidade do abastecimento e dos preços, a postura do governo Putin é preocupante para o Ocidente, à medida que os recursos naturais do país são analisados dentro da tradicional política do poder, o que exclui tratá-los como meros produtos primários.

Desta maneira, explica-se a política de fornecimento de gás à Ucrânia e Bielorússia, vista negativamente pelo Ocidente em um ambiente em que a variação das cotações de gás e petróleo é significativa - relembre-se que, às vésperas da II Guerra do Golfo, em março de 2003, o preço do barril de petróleo situou-se no início da faixa dos 30 dólares, enquanto, nos dias de hoje, localiza-se por volta dos 65 dólares.

Por fim, o reviver da desinteligência amero-russa revela a percepção da política externa estadunidense de distanciar o Ocidente da Rússia, ainda que de modo atabalhoado, já useiro e vezeiro na gestão Bush, a fim de contrabalançar o êxito russo, mesmo incipiente, no Oriente Médio, rumo a um entendimento com a Arábia Saudita, aliada dos Estados Unidos – a Rússia já participa como observadora da Conferência Islâmica, em decorrência de sua população muçulmana.

Virgílio Arraes é professor de Relações Internacionais na UnB.

Copiado de:CorreioDaCidadania

Necrocombustíveis



Frei Betto


O prefixo grego bio significa vida; necro, morte. O combustível extraído de plantas traz vida? No meu tempo de escola primária, a história do Brasil se dividia em ciclos: pau-brasil, ouro, cana, café etc. A classificação não é de todo insensata. Agora estamos em pleno ciclo dos agrocombustíveis, incorretamente chamados de biocombustíveis.

Este novo ciclo provoca o aumento dos preços dos alimentos, já denunciado por Fidel Castro. Estudo da OCDE e da FAO, divulgado a 4 de julho, indica que “os biocombustíveis terão forte impacto na agricultura entre 2007 e 2016.” Os preços agrícolas ficarão acima da média dos últimos dez anos. Os grãos deverão custar de 20 a 50% mais. No Brasil, a população pagou três vezes mais pelos alimentos no primeiro semestre deste ano, se comparado ao mesmo período de 2006.

Vamos alimentar carros e desnutrir pessoas. Há 800 milhões de veículos automotores no mundo. O mesmo número de pessoas sobrevive em desnutrição crônica. O que inquieta é que nenhum dos governos entusiasmados com os agrocombustíveis questiona o modelo de transporte individual, como se os lucros da indústria automobilística fossem intocáveis.

Os preços dos alimentos já sobem em ritmo acelerado na Europa, na China, na Índia e nos EUA. A agflação – a inflação dos produtos agrícolas – deve chegar, este ano, a 4% nos EUA, comparada ao aumento de 2,5% em 2006. Lá, como o milho está quase todo destinado à produção de etanol, o preço do frango subiu 30% nos últimos doze meses. E o leite deve subir 14% este ano. Na Europa, a manteiga já está 40% mais cara. No México, houve mobilização popular contra o aumento de 60% no preço das tortillas, feitas de milho.

O etanol made in USA, produzido a partir do milho, fez dobrar o preço deste grão em um ano. Não que os ianques gostem tanto de milho (exceto pipoca). Porém, o milho é componente essencial na ração de suínos, bovinos e aves, o que eleva o custo de criação desses animais, encarecendo derivados como carne, leite, manteiga e ovos.

Como hoje quem manda é o mercado, acontece nos EUA o que se reproduz no Brasil com a cana: os produtores de soja, algodão e outros bens agrícolas abandonam seus cultivos tradicionais pelo novo “ouro” agrícola: o milho lá, a cana aqui. Isso repercute nos preços da soja, do algodão e de toda a cadeia alimentar, considerando que os EUA são responsáveis por metade da exportação mundial de grãos.

Nos EUA, já há lobbies de produtores de bovinos, suínos, caprinos e aves pressionando o Congresso para que se reduza o subsídio aos produtores de etanol. Preferem que se importe etanol do Brasil, à base de cana, de modo a se evitar ainda mais a alta do preço da ração.

A desnutrição ameaça, hoje, 52,4 milhões de latino-americanos e caribenhos, 10% da população do Continente. Com a expansão das áreas de cultivo voltadas à produção de etanol, corre-se o risco dele se transformar, de fato, em necrocombustível – predador de vidas humanas.

No Brasil, o governo já puniu, este ano, fazendas cujos canaviais dependiam de trabalho escravo. E tudo indica que a expansão dessa lavoura no Sudeste empurrará a produção de soja Amazônia adentro, provocando o desmatamento de uma região que já perdeu, em área florestal, o equivalente ao território de 14 estados de Alagoas.

A produção de cana no Brasil é historicamente conhecida pela superexploração do trabalho, destruição do meio ambiente e apropriação indevida de recursos públicos. As usinas se caracterizam pela concentração de terras para o monocultivo voltado à exportação. Utilizam em geral mão-de-obra migrante, os bóias-frias, sem direitos trabalhistas regulamentados. Os trabalhadores são (mal) remunerados pela quantidade de cana cortada, e não pelo número de horas trabalhadas. E ainda assim não têm controle sobre a pesagem do que produzem.

Alguns chegam a cortar, obrigados, 15 toneladas por dia. Tamanho esforço causa sérios problemas de saúde, como câimbras e tendinites, afetando a coluna e os pés. A maioria das contratações se dá por intermediários (trabalho terceirizado) ou “gatos”, arregimentadores de trabalho escravo ou semi-escravo. Após 1850, um escravo costumava trabalhar no corte de cana por 15 a 20 anos. Hoje, o trabalho excessivo reduziu este tempo médio para 12 anos.

O entusiasmo de Bush e Lula pelo etanol faz com que usineiros alagoanos e paulistas disputem, palmo a palmo, cada pedaço de terra do Triângulo Mineiro. Segundo o repórter Amaury Ribeiro Jr, em menos de quatro anos, 300 mil hectares de cana foram plantados em antigas áreas de pastagens e de agricultura. A instalação de uma dezena de usinas novas, próximas a Uberaba, gerou a criação de 10 mil empregos e fez a produção de álcool em Minas saltar de 630 milhões de litros em 2003 para 1,7 bilhão este ano.

A migração de mão-de-obra desqualificada rumo aos canaviais – 20 mil bóias-frias por ano - produz, além do aumento de favelas, o de assassinatos, tráfico de drogas, comércio de crianças e de adolescentes destinados à prostituição.

O governo brasileiro precisa livrar-se da sua síndrome de Colosso (a famosa tela de Goya). Antes de transformar o país num imenso canavial e sonhar com a energia atômica, deveria priorizar fontes de energia alternativa abundantes no Brasil, como hidráulica, solar e eólica. E cuidar de alimentar os sofridos famintos, antes de enriquecer os “heróicos” usineiros.

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.

Copiado de:CorreioDaCidadania

As grandes manobras

Nos próximos meses, em antecipação da Cúpula Europa-África, a África vai estar na mira de muitos interesses. A minha suspeita é que nenhum deles seja o interesse das populações africanas injustamente empobrecidas.

A nova fase da globalização chama-se regionalização. Na Ásia, na África e na América Latina aprofundam-se os laços de cooperação entre os países com vista a melhor responder aos “desafios globais”. Todos estes movimentos ocorrem sob olhar atento das grandes potências.

Nos próximos meses, em antecipação da Cúpula Europa-África, a África vai estar na mira de muitos interesses. A minha suspeita é que nenhum deles seja o interesse das populações africanas injustamente empobrecidas. Temo que, mais uma vez, os desígnios globais se combinem com políticos e políticas locais no sentido de privarem os povos africanos do direito a um desenvolvimento justo e democraticamente sustentável.

No caso da África, a Europa tem uma dívida histórica, decorrente do colonialismo, a qual, para ser paga, obrigaria a uma política africana muito diferente da dos EUA. Para estes, os objetivos estratégicos na África são os seguintes: luta contra o terrorismo, controlo do acesso aos recursos naturais, contenção da expansão chinesa.

Muitos países do continente (por exemplo, Angola) apoiam ativamente os EUA na luta contra o terrorismo. A crescente importância do golfo da Guiné (Nigéria, Angola, São Tomé e Príncipe) para assegurar o acesso ao petróleo está bem patente na recente criação do Comando de África pelo Pentágono.

A contenção da China é mais problemática não só pela força abissal que ela representa – em 2005, a China consumiu 26% do aço e metade do cimento produzido em todo o mundo – como pelo fato de se dispor a investir em todos os países que as potências ocidentais rejeitam, do Sudão à Somália.

Se a Europa não tiver outros objetivos, em nada poderá contribuir para os problemas que se avizinham. Estes têm a ver com o agravamento da injustiça social e com a recusa das populações a sujeitarem-se ao papel de vítimas.

A condenação política de Robert Mugabe não pode deixar de ter em conta que a Inglaterra não cumpriu o compromisso assumido no tratado da independência de co-financiar a reforma agrária do Zimbabué, consciente como estavam as partes de que 1 a 2% da população (branca) ocupava 90% da terra agrícola e 4000 agricultores (brancos) consumiam 90% da água disponível para o regadio.

O fato de a situação na África do Sul e na Namíbia não ser muito diferente faz temer pela estabilidade na África Austral. As relações tensas entre Angola e a África do Sul – com boatos de tentativas cruzadas de assassinatos políticos que não serão totalmente destituídos de fundamento – não são bom prenúncio.

Angola destina-se a ser um grande ator na região. Para isso, é fundamental que se não repita em Angola o que está acontecendo na Nigéria, onde a produção petrolífera baixou para metade devido à violência política no delta do Níger provocada pela injustiça na distribuição da renda petrolífera.

Preocupa que em Angola não se vislumbre o mínimo gesto de redistribuição social (tipo bolsa-família do Brasil) quando é certo que uma migalha (digamos, o equivalente a um dia dos rendimentos do petróleo) permitiria à população dos musseques de Luanda comer uma refeição digna por dia durante um ano.


Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).