Em entrevista ao Middle East Channel, Mustafa Barghouti
revela bastidores da pacificação Fatah-Hamas, destaca avanço da opção
pela não-violência e sugere isolar direita israelense. "Tornou-se
evidente para o líder da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas que nada
seria jamais conseguido em discussões com o premier israelense, Benyamin
Netanyahu. Portanto, o único modo para alterar a situação dependia de
nós fortalecermos o nosso lado – o lado dos palestinos", diz Barghouti.
Um acordo político assinado no início do mês
no Cairo entre os dois partidos políticos palestinos marca a primeira
vez, em quatro anos, em que há governo palestino unificado nos
territórios (até aqui, o Fatah governava a Cisjordânia e o Hamás, Gaza).
Mustafa
Barghouti, participante ativo das negociações que levaram ao acordo, e
líder do movimento independente “Iniciativa Nacional Palestina”, que
também assinou o acordo, falou do Cairo ao Middle East Channel sobre as
implicações do acordo.
Há anos militante pelos direitos dos
palestinos e pela resistência não-violenta, Barghouti concorreu como
candidato nas eleições presidenciais palestinas em 2005. Obteve o
segundo lugar, quando Mahmoud Abbas foi eleito. Logo depois, foi eleito
para o Conselho Legislativo Palestino, em 2006; em 2007, foi ministro da
Informação do governo da unidade palestina, que teve vida curta.
Por que esse acordo entre Fatah e Hamas, que vem sendo tentado, sem sucesso há anos, aconteceu agora?
Moustapha Barghouti:
São vários fatores. Um dos mais importantes, na minha opinião, é o alto
grau de frustração dos palestinos, de todos os lados, com a persistente
divisão interna. De certo modo, pode-se dizer que seja influência das
revoluções árabes na Palestina. No final de janeiro e início de
fevereiro começaram as manifestações públicas pelo fim da divisão. E as
pessoas mostraram-se suficientemente maduras e prudentes para perceber
que ninguém precisava de um terceiro partido, contra os dois existentes;
e que, sim, era hora de pressionar na direção da unificação. A pressão
das ruas foi muito importante. Fatah e Hamas perceberam que, separados,
começariam a perder o apoio popular.
Um segundo fator foi o
fracasso do processo de paz e, sobretudo, a intransigência obcecada dos
israelenses. Tornou-se evidente para o líder da Autoridade Palestina,
Mahmoud Abbas que nada seria jamais conseguido em discussões com o
primiê israelense, Benyamin Netanyahu. Portanto, o único modo para
alterar a situação dependia de nós fortalecermos o nosso lado – o lado
dos palestinos. Abbas fez o que podia ter feito para convencer Netanyahu
a aceitar um processo de paz sério e significativo. Até que se
convenceu de que Israel não tem interesse algum em fazer a paz. Além do
mais, Israel usou o fato de os palestinos estarem divididos, como
pretexto para nada fazer. Foi a ideia de que os palestinos não tinham
liderança que os representasse.
Um terceiro fator foi, não há
dúvidas, as mudanças que houve na região. Acho que o Egito passou a ser
mais positivo, mais proativo. Primeiro, os egípcios estimularam a ideia
de que os palestinos nos entendêssemos internamente. E os palestinos,
com nosso próprio empenho, conseguimos avançar. Os egípcios, então,
puderam voltar à cena como mediadores; e, em apenas três, quatro horas,
numa única reunião, Fatah e Hamas assinaram o acordo. Como novidade, os
mediadores egípcios são hoje menos sensíveis às pressões externas contra
a unificação. Os egípcios trabalharam muito firme e empenhadamente a
favor do acordo – e essa é mudança muito importante, efeito das outras
mudanças pelas quais está passando hoje toda a política egípcia.
Há
mais um fator importante. Percebemos que, como palestinos, tínhamos,
nós mesmos, que definir o papel que mais nos interessava, que tínhamos
de mudar alguns pontos, e que, para fazer isso, tínhamos de alterar a
correlação de forças em relação a Israel. Para fazer isso, o primeiro
passo, passo vital, tinha de ser a unidade interna. Esse foi o resultado
da nossa avaliação, depois do fracasso do processo de paz. Os dois
partidos palestinos não têm objetivos essencialmente diferentes: os dois
apoiam a solução dos Dois Estados e, hoje, os dois lados convergiram a
favor da resistência não-violenta. Hoje todos acreditam mais nas
possibilidades da resistência não-violenta. É oportunidade que se
configura pela primeira vez, para que haja governo palestino unificado.
Em minha opinião, é a primeira boa oportunidade que se cria para uma paz
real, duradoura.
Houve outros acordos de unificação,
antes, que não deram certo. Quais os principais obstáculos que se podem
prever, em relação ao novo acordo?
Moustapha Barghouti:
O principal obstáculo é que o acordo não interessa a Israel e,
portanto, Israel mobilizará toda sua máquina de propaganda contra a
unificação dos palestinos. Foi o que Israel já fez em 2007, quando
atacaram, com propaganda, o acordo que havia e a democracia palestina.
Já estão tentando fazer o mesmo, outra vez. Claro que ainda temos muito
trabalho por fazer. Temos de formar o governo e a liderança interna da
OLP. Mas acho que as ações de Israel para boicotar o acordo são o
principal obstáculo a enfrentar.
O ministro dos Negócios
Exteriores de Israel, Avigdor Lieberman, já reagiu, de forma nada
difícil de entender. Disse que Israel prefere que os palestinos
continuem divididos, porque divididos são mais fracos e unidos são mais
fortes. Foi claramente ao ponto: essa é, exatamente, a posição de
Israel. Se Israel tivesse qualquer interesse real na solução Dois
Estados – que foi apoiada claramente na assinatura do acordo, tanto pelo
presidente Abbas como pelo líder do Hamas, Khaled Meshaal – essa seria a
ocasião certa para Israel aceitar um acordo com todos os palestinos, em
vez de insistir em negociar só com Abbas, como tem feito. Estamos
diante de oportunidade excelente para a paz, mas, infelizmente, Israel
preferiria voltar ao passado, antes da união dos partidos palestinos, do
que pensar no futuro.
Mas quero chamar atenção para mais um
aspecto. É importante ver que o acordo que assinamos não é apenas acordo
para voltar a um tempo em que os palestinos viviam sob um único
partido. O acordo é, sobretudo, para recuperar o que perdemos com a
divisão, porque perdemos, naquela época, toda a democracia que tínhamos e
sob a qual vivíamos. O acordo visa, sobretudo, a reconstruir as
instituições do estado, que foram destruídas. Visa a revitalizar o
parlamento palestino e o conselho legislativo. Trata-se de devolver aos
cidadãos o direito de escolher os governantes em eleições limpas e
livres, votando democraticamente. Quem se manifeste contra o acordo
entre Fatah e Hamas, terá de explicar por que exige democracia na Líbia e
na Síria… mas não exige democracia na Palestina.
Considerando-se
a resposta do governo de Israel, a resposta até aqui cautelosa do
governo Obama e a reação declaradamente negativa do Congresso dos EUA,
e, também, o fato de que um governo de unidade não atende às três
condições do Quarteto [EUA, Rússia, União Europeia e ONU], por que a
unidade dos palestinos deve ser vista como útil à causa da paz?
Moustapha Barghouti:
Em primeiro lugar, acho que os EUA devem ficar atentos para não repetir
os erros de 2007. Os EUA devem ter posição independente – não devem
limitar-se a seguir o que Israel faça. Devem ficar atentos, sobretudo,
em não seguir os conselhos de Israel, porque tudo que Israel diga ou
faça visa, exclusivamente, a garantir que Netanyahu tenha pretexto para
nada fazer a favor da paz e para prosseguir com a política de construir
nos territórios ocupados. É altamente desejável que os EUA construam
abordagem mais cuidadosa, e que considerem o potencial que o acordo
gera, com vistas à paz. Dentre outras coisas, o acordo abre um caminho
real para a reconstrução de Gaza, além de ser boa via para que se
reconstruam também as instituições em Gaza, e para consolidar o que já
foi construído na Cisjordânia. A alternativa é divisão continuada, que
se pode tornar irreversível e dificultar ainda mais qualquer solução
futura.
Não esqueça que esse acordo não visa a construir governo
partilhado entre Hamas e Fatah. Trata-se de um entendimento – o que está
bem claramente dito no texto do acordo e nos discursos – segundo o qual
Abbas será autorizado, agora por todos os palestinos, inclusive pelo
Hamas, a prosseguir nas negociações. Abbas não mudou nenhum dos
parâmetros que a OLP aceitou antes, inclusive o reconhecimento de
Israel. Há uma única diferença: agora, Abbas está autorizado por todos
os palestinos – não só pelo Fatah. O próprio governo da Autoridade
Palestina nada terá a ver com as negociações. Sua tarefa é trabalhar no
front interno e preparar as eleições. A OLP continuará responsável pelas
negociações – com delegação chefiada por Abbas.
Há agora,
também, probabilidade real de manter um amplo cessar-fogo – e não só em
Gaza – e de menos violência, inclusive na Cisjordânia. O melhor meio de
ultrapassar a rejeição e a oposição israelense é a comunidade
internacional aceitar o acordo, reconhecendo o direito que os palestinos
têm de promover reformas democráticas e, depois, aceitar o futuro
governo a ser eleito e dispor-se a negociar com ele.
Pelo acordo assinado, o Hamas passa a ser parte da OLP [Organização para a Libertação da Palestina]?
Moustapha Barghouti:
O Hamas será parte da OLP – bem como todos os grupos que estavam fora
da OLP e que agora também assinaram o acordo, inclusive o movimento do
qual participo, a Iniciativa Nacional Palestina. Tudo isso significa que
haverá um liderança de transição que não substitui nem se sobrepõe ao
papel que hoje cabe à comissão executiva da OLP e nada muda nos
compromissos da OLP. A nova estrutura de transição trabalhará para
preparar eleições livres e democráticas para o Conselho Nacional
Palestino da OLP, que há 25 anos não realiza eleições. Na prática, o
acordo fortalece a OLP e lhe garante representatividade, sem alterar os
atuais compromissos, e abre a porta para ampla participação democrática,
de todos.
Como se conectam o acordo e a possibilidade de a
OLP comparecer à ONU, em setembro, para requerer reconhecimento
internacional para o estado palestino?
Moustapha Barghouti:
Acho que o acordo ajuda a fortalecer essa ideia. O comportamento de
Israel nos tornou mais determinados do que nunca, e daremos andamento a
esse projeto. Agora, os palestinos podem apresentar-se como frente
unida, ante a comunidade internacional, para requerer que o estado
palestino seja reconhecido, o que inclui, evidentemente, o fim da
ocupação.
Houve quem levantasse a possibilidade de os EUA
suspenderem o financiamento que dão à Autoridade Palestina, por causa
desse acordo. Como o senhor analisa essa possibilidade e que impacto
teria para os palestinos?
Moustapha Barghouti:
Esperemos que não aconteça, mas, se acontecer, será um problema a ser
enfrentado. O mais importante é que os EUA não deem início à prática de
sanções contra nós, ou pressionem outros governos, como fizeram em 2007,
para que implantem sanções contra os palestinos.
Há, nesse
acordo, uma oportunidade – há consenso entre os palestinos em torno da
solução Dois Estados; e todos estamos dispostos a nos abster de qualquer
prática violenta. Nossa mensagem é: os palestinos estão prontos para
fazer a paz.
Por outro lado, há um risco. Se Israel preferir
pressionar a Autoridade Palestina – e os EUA apoiarem Israel e, por sua
vez, pressionarem a comunidade internacional contra os palestinos –, o
efeito será um só: o colapso total da Autoridade Palestina e de todo o
projeto construído até aqui. Que escolham: se escolherem a oportunidade,
ela levará à paz; se escolherem o risco, ele levará ao desastre.
E o que será feito das forças de segurança palestina? O Hamás manterá suas milícias armadas?
Moustapha Barghouti:
Concordamos que, nessa primeira etapa, tudo ficará como está – o status
quo será mantido na Cisjordânia e em Gaza. Os arranjos vigentes não
serão alterados e adiante, aos poucos, enfrentaremos gradualmente essa e
outras questões, depois de o governo estar reconstituído e operando.
Será formado um comitê de supervisão formado por profissionais que
planejarão e executarão a unificação e a despartidarização de todo o
aparelho de segurança. De tal modo que, quando tivermos eleições,
devemos estar organizados para que os corpos eleitos possam assumir a
responsabilidade pelas forças de segurança.
Há quem diga que, ao fazer esse acordo, a OLP adotou a cartilha do Hamas. Como o senhor reage a esse argumento?
Moustapha Barghouti: Perdoe a franqueza, mas isso é bullshit.
Lixo, mentiras, intrigas. O que aconteceu é que o Hamás adotou a
cartilha da OLP. Se você ler o discurso de Khaled Meshaal, lá está dito
que o Hamás aceitou a solução Dois Estados. Meshaal disse muito
claramente que o Hamás subscreve proposta a favor das fronteiras de
1967, capital em Jerusalém, estado soberano e democrático; que é a favor
de eleições e que o Hamás respeitará o resultado de eleições livres e
democráticas. O que mais querem de nós? Melhor fariam todos se não
engolissem, tão cegamente, a propaganda de Netanyahu. É o caminho
errado, que leva a nada de bom e promove o atraso.
Tradução: Vila Vudu