terça-feira, 24 de abril de 2012

A deliciosa história sobre a invenção do jogo do bicho

Luiz Antonio Simas, O Globo

O jogo do bicho surgiu no Rio de Janeiro em 1893. A criação da loteria popular mais famosa do Brasil se deve ao complicado contexto político daqueles tempos. A República, recentemente proclamada, tentava sepultar os resquícios da Monarquia derrubada — e desse quiproquó entre os adeptos dos regimes surgiu o jogo. Explico.
Nos tempos da Monarquia, o Barão de Drummond, eminência política do Império e amigo da família real, era fundador e proprietário do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro — que então funcionava em Vila Isabel.
A manutenção da bicharada era feita, evidentemente, com uma generosa subvenção mensal do governo, suficiente, diziam as línguas ferinas dos inimigos do Barão, para alimentar toda a fauna amazônica por pelo menos dez anos.
Quando a República foi proclamada, o velho Barão perdeu o prestígio que tinha. Perdeu, também, a mamata que lhe permitia, segundo o peculiar humor carioca, alimentar o elefante com caviar, dar champanhe francesa ao macaco e contratar manicure para o pavão.
Sem o auxílio do governo, o nosso Barão cogitou, em protesto, soltar os bichos na Rua do Ouvidor — o que, admitamos, seria espetacular — e fechar em definitivo o zoológico do Rio.
Foi aí que um mexicano, Manuel Ismael Zevada, que morava no Rio e era fã do zoológico, sugeriu a criação de uma loteria que permitisse a manutenção do estabelecimento. O Barão ficou entusiasmado com a ideia.
O frequentador que comprasse um ingresso de mil réis para o Zoo ganharia vinte mil réis se o animal desenhado no bilhete de entrada fosse o mesmo que seria exibido em um quadro horas depois. O Barão mandou pintar vinte e cinco animais e, a cada dia, um quadro subia com a imagem do bicho vitorioso.
Caríssimos, se bobear essa foi a ideia mais bem-sucedida da história do Brasil. Multidões iam ao zoológico com a única finalidade de comprar os ingressos e aguardar o sorteio do fim de tarde.
Em pouco tempo, o jogo do bicho tornou-se um hábito da cidade, como os passeios na Rua do Ouvidor, a parada no botequim, as regatas na Lagoa e o fim de semana em Paquetá. Coisa séria.
A República, que detestava o Barão, proibiu, depois de algum tempo, o jogo no zoológico. Era tarde demais.
Popularizado, o jogo espalhou-se pelas ruas, com centenas de apontadores vendendo ao povo os bilhetes com animais dadivosos. Daí para tornar-se uma mania nacional, foi um pulo. O jogo do bicho deu samba — com trocadilho.
Contei rapidamente a história da criação do jogo para constatar o seguinte: a situação atual do zoológico do Rio de Janeiro não parece ser muito diferente daqueles tempos bicudos do velho Barão de Drummond.
Dia destes, o próprio O GLOBO veio com uma reportagem chamando atenção para o desleixo a que o jardim está entregue em tempos recentes. Enquanto a loteria popular prosperou e virou uma espécie de instituição nacional, o zoológico não teve a mesma sorte.
O jogo, que a rigor foi criado apenas para tirar o zoológico da situação de abandono e com uma inocência digna das histórias de Polyana, a moça, chegou longe demais. Vejam, por exemplo, as atuais peripécias republicanas do bicheiro Carlinhos Cachoeira (curiosamente chamado por alguns da mídia de “empresário da contravenção”).
A inocente loteria popular ganhou asas e se transformou em uma complexa organização criminosa, com tentáculos inimagináveis que envolvem até mesmo cândidas vestais de ternos e togas do moralismo tupiniquim.
Deixo aqui a minha sugestão: já que o poder público aparentemente não dá pelota para a bicharada, confisquem as fortunas que o crime organizado amealhou em aparente conluio com os bacanas e poderosos da República.
Separem um pouquinho da grana tungada e, por justiça histórica, destinem o tutu ao carente Jardim Zoológico do Rio de Janeiro.
Uma parte do dinheiro do mafioso Cachoeira deve servir ao nobre destino de alimentar cobras, leões, passarinhos e macacos que, afinal de contas, fazem a alegria da criançada carioca em fins de semana.
A César o que é de César. Ou alguém aí sugere a criação de uma loteriazinha inocente que pode salvar o zoológico carioca desse abandono? Não recomendo.

Luiz Antonio Simas é historiador

Raul vive!!! Veja, e ouça, e viva Raul!!!

Ravel no blog ARQUIVOS CRITICOS

Me desculpe quem chegou a conclusão diferente, porventura até oposta, mas de minha parte estou convencido de que o documentário Raul: o início, o fim e o meio é uma obra-prima. Não um filme “perfeito”, bem entendido – mesmo porque um filme sobre Raul não poderia ser isso (ou melhor, cultivar a ilusão de ser isso) sem ser absolutamente infiel e desrespeitoso a seu “objeto” –, mas um filme de uma grandeza inamovível, na força (não importa se “única”) com que traz à tona a grandeza e a força – mas também os dramas e contradições – do próprio Raul.
Algo como a aura de um milagre cerca esse filme, como cercou, em seus auges intermitentes (mas constantes), a vida e “o trabalho”, ou seja, o ser em curso de Raul. Em primeiro lugar, é claro, pela mera “presença” de Raul no filme, em registros tão vivos e intensos que tornam essas aspas quase ofensivas. Quando, quase no início, Raul surge em estado de graça, cantando “Loteria da Babilônia” e declamando o manifesto da Sociedade Alternativa, a energia e a vitalidade (eu quase escrevia luminosidade) que emanam de seu corpo, sua voz e suas palavras contêm algo que não se pode chamar senão de divino. São cenas que já circulam na internet, mas mesmo os fãs que as conhecem, e que sabem o que foi Raul, provavelmente se assombrarão com a imponência e altissonância dessas imagens, como que devolvidas à grandeza de seu instante-evento na ampliação da tela e do som da sala de cinema.
E, cá entre nós, esse episódio fantástico e já tão comentado da mosca na sopa de Paulo Coelho (sopa de Coelho é maldade...), a aguadíssima sopa que Mr. Paul Rabbit tentava nos fazer engolir no momento em que uma vivíssima (e, como ele mesmo parece sugerir inconscientemente, quiçá brasileiríssima) mosca surgisse na cena, e, como que premiando nosso espanto, se tornasse tão incômoda a ponto de silenciar o Coelho e fazê-lo tentar eliminá-la com uma patada[1]; ou essa cena verdadeiramente incrível é uma prova de que uma espécie de chiste divino cerca a própria existência – e até ex-existência – do artista de gênio ou é (sabe-se lá!) fruto de um tremendo embuste, de um “planejamento” cujo imprevisível resultado, de qualquer forma, não poderia ser mais feliz. Se não for o caso, é claro, de uma transmigração meio à Quincas Borba, de um episódio, digamos, budista-tropical em plenos Alpes suíços, em pleno castelo medievalista de um dos escritores católicos mais vendidos do mundo...

E o que dizer da beleza quase transcendente do testemunho de Vivian Seixas, entrevistada pela própria mãe, Kika, e vertendo lágrimas de saudades pelo pai mas também de felicidade plena de se sentir filha dele, e 
poder falar dele?


Vivian Seixas
A força e a genialidade de Raul se espraiam de tal forma pelo filme de Walter Carvalho – sobretudo no início – que mesmo um Pedro Bial se deixa contaminar por ela, quando registra o privilégio de ter sido sua testemunha no auge de sua explosão. Mas se essa genialidade pode animar um farsante nato (ou inato) como Bial, ela também pode preocupar outro – vide a invectiva de Paulo Coelho de que não se fale do “mito” Raul (que, no entanto, afirmava: “não sou nenhuma ficção”) –, e ainda constranger um talentoso mas Veloso Caetano, cujos olhos, ou muito me engano, deixam ler, em algum momento, a velada confissão de que aquele artista ao qual finalmente alguém resolveu fazer justiça pública é maior do que ele.
Mas também pelos testemunhos propriamente documentais que colhe e registra o documentário de Carvalho é um grande filme. Por exemplo, o testemunho de críticos e produtores musicais a respeito da novidade, qualidade e centralidade de Raul – e não de outros baianos – na contracultura musical brasileira. Não que se trate de um trabalho exaustivo nesse sentido: muito ainda há a ser esclarecido, por exemplo, a respeito das parcerias e amizades de Raul, incluindo aí sua fase realmente mais problemática, a das farras com Oscar Rasmussem. Mas o pouco que Carvalho fez – sobretudo, é claro, no que diz respeito à mais famosa dessas parcerias –, além da própria visibilidade que ele deu a certos fatos, a certos pingos que há muito demandavam ser colocados nos is, já constitui um ato de justiça à memória e à obra, para sempre vivas e indomáveis, de Raul.
O maluco e o malandro, digo, “mago”

"Ó, pousou aqui, ó."
Ninguém em sã consciência pode negar a importância de Paulo Coelho na trajetória artística e pessoal (que são uma coisa só) de Raul, mas o êxito posterior do “mago escritor” parece ter confundido um pouco as coisas a esse respeito, levando muita gente a pensar que era ele o responsável pelas “super letras” (encontrei isso num blog) dos primeiros discos solo do parceiro. É grandemente constrangido, com uma humildade um tanto envergonhada (mas, enfim, corajosa), que Rabbit admite que foi Raul quem o ensinou a fazer letras de música. Que foi Raul, na prática, quem compôs Gita, ou seja, que deu acabamento ao Bhagavad-Gita do qual Coelho deve ter feito um resumão (que, no filme, ele chama de “poesia”); assim como compôs “Metamorfose Ambulante”, que dom Paulete assevera que gostaria de ter feito com Raul, meio que sabendo que isso teria feito mais diferença para si mesmo que para a canção, pois ele seria o que sempre foi: um coadjuvante na “relação” com Raul, alguém que este literalmente levava consigo, e não o contrário. Exatamente, aliás, como em “Super-heróis”: “Chamei dom Paulo Coelho e saímos lado a lado...”.

Mas não vou me deter muito nesse terreno delicado, talvez uma dessas histórias que, não fossem certos impedimentos, seriam mais bonitas – mas também mais dolorosas – do que foram. Também não sou partidário da tese da “perda” de Raul por Coelho, o que o filme também deixa perceber que é mais uma falácia que este sustenta implicitamente, quase se vangloriando dela. Coelho pode ter conferido – para o bem e para o mal – mais “substância underground” ao parceiro, mas quando Carvalho registra, por exemplo, a presença de Edy Star no trajeto inicial de Raul (apesar da ausência quase total, e imperdoável, de Sérgio Sampaio, que Edy apenas menciona), obriga o espectador a saber que essa substância já circulava nele; em suma, que antes da Sociedade Alternativa, Raul já havia “fundado” – e, ao lado de Star, Sampaio e Miriam Batucada, honrado com 
esse impagável “manifesto” sonoro – a Sociedade da Grã Ordem Kavernista.
Os kavernosíssimos Kavernistas
A importância de Paulo Coelho (mas também, anote-se, de Marcelo Motta) na vida e na obra de Raul foi ter lhe dado densidade – uma “densidade mística” que desde cedo foi também humana –, mas como parte de uma busca do próprio Raul (que foi quem o procurou, como fica muito bem registrado). O salto da circense Grã Ordem (a rigor, pouco mais que um Mutantes mais precário e “baianizado”) para o protéico – e magnífico – Krig-Ha-Bandolo! de alguma reflete esse processo. Ainda assim, como se diz, é lindo perceber que o momento de maior grandeza do “bruxo”, e que afinal o redime no filme de Carvalho, foi aquele em que, engolindo corajosamente o constrangimento, ele admite que “o maior parceiro de Raul foi ele mesmo”.

O que serve pra reafirmar que boa parte das obras-primas de Raul – por exemplo, “Ouro de tolo”, “Metamorfose ambulante”, "O trem das 7", "S.O.S.", "Para Nóia" e "É fim do mês" (pra ficar apenas nos três primeiros discos) – são de autoria mais ou menos exclusiva de Raul. Digo mais ou menos porque também é verdade que o próprio Raul praticou suas malandragens autorais: para ele, como atesta outro parceiro importante, Cláudio Roberto, os empréstimos tomados a canções estrangeiras eram casos de justiça social. Só faltou assinalar que, a despeito de assassinatos como o de “You really got me” (que, por outro lado, já pertence patrimônio universal do rock) por um estrambótico “Dá-lhe que dá”, quase todos os “plágios” de Raul foram na verdade recriações musicais extremamente bem-sucedidas, repletas de originalidade. Ou alguém vai reduzir o valor, por exemplo, de “Ave Maria da Rua” só porque seu arranjo é uma imitatio de “Bridge under troubled water”?
Os dois diabos

Uma das maiores virtudes do filme de Carvalho é abordar a relação de Raul com o misticismo de forma clara e, sem trocadilho, desmistificadora. Fica claro, em primeiro lugar, que Raul nunca foi submisso a quaisquer seitas ou ideias esotéricas, como, aliás, de qualquer tipo. É outro episódio engraçado envolvendo dom Paulete: o thelêmico Euclydes Lacerda, ao lado do idem Toninho Buda, antes ou depois de revelar que o catolicíssimo Coelho não havia pedido desfiliação da Ordo Templi Orientis (o que, depois, causa profundo incômodo no mesmo), confirma que era Mr. Rabbit, na dupla, o principal receptáculo da doutrina, sendo aliás bastante obediente a ela... "Raul não", Euclydes completa, com um sorriso finíssimo. Vale também o testemunho de Caetano, que, visitado por Raulzito em sua fase mais “alternativa”, não conseguia evitar a postura irônica, o que, ele assevera, despertava o instinto irônico do próprio Raul...
Toninho Buda

Mas também é importante o esclarecimento – e não há palavra melhor – a respeito do conteúdo do esoterismo de Raul. O gesto fundamental, nesse caso, pertence a Toninho Buda, que, devidamente caracterizado, lembra distinção, em "Rock do diabo", entre o diabo dos toques e o do exorcista, o demônio grego e o católico, para afirmar o disparate que é a redução de um ao outro, assim como a da imagem de Lúcifer enquanto iluminado à figura chifruda e ridícula da iconografia católica. E Euclydes ainda lembra que “faz o que tu queres” não quer dizer simplesmente “faz o que quiseres”, deixando implícito que aquele “tu” remete a uma vontade interior autêntica e profunda.
Não que isso tenha valido o tempo todo para o próprio Raul. O fato, porém, é que todo o filme de Carvalho – e mesmo nos momentos mais dolorosos –, transpira o panteísmo raulseixista, ou aquilo que de bom grado eu chamaria seu egoísmo-panteísmo. Aliás, não sei se eu devo ficar muito grato ou muito puto com Carvalho, pois tenho a impressão de que seu filme diz, indireta mas suficientemente, tudo o que eu gostaria de dizer sobre Raul, e que eu arrolaria sob sua divisa, a meu ver, mais importante: "O amor de todos os mortais".
As mulheres

Um mérito indiscutível de Carvalho foi ter conseguido colher entrevistas de todas as ex-mulheres mais ou menos oficiais de Raul – à exceção da primeira delas, a sempre esquiva Edith Wisner, mas mesmo nesse caso as cenas e fotos (sobretudo do casamento), de uma beleza tão tocante quanto a da própria Edith, de alguma forma suprem a lacuna. Ou melhor, não suprem, mas é até melhor que seja assim, tudo apenas tocado, em se tratando da que foi, provavelmente, a relação mais “romântica” de Raul.
Edith e Raul
Nos outros casos, principalmente de Kika e Gloria Vaquer, fica o testemunho do quão apaixonante foi Raul, o que transpira na orgulhosa reivindicação dessas mulheres belas e fortes de terem sido amadas por ele; e também, no caso de Gloria, no abatimento, ainda presente mas não reduzido à mágoa, de ter sido preterida em algum momento. A certa altura, aliás, Gloria explica o fato de Raul ter tido amantes como um fato relacionado à cultura brasileira, na qual a fidelidade conjugal geraria a suspeita de homossexualismo – o que naturalmente faz pouca justiça à filosofia libertária do próprio Raul, esta sim, à qual ele nunca deixou de ser fiel.
Por outro lado, é pena que Carvalho não tenha chegado a explorar um dos aspectos mais interessantes das relações amorosas de Raul, que é sua imbricação com o trabalho artístico, por meio de parcerias em obras-primas como as delicadíssimas “Sunseed” e “Mata virgem” e a enfezadíssima "Pagando brabo", a primeira com Gloria Vaquer e as outras duas com Tânia Menna Barreto (ambas do excelente Mata virgem), ou as, digamos, transcendentais "DDI (Discagem Direta Interplanetária)", "O segredo da luz" e "Nuit", todas  e várias outras  com Kika Seixas; a última, com um "toque" especial de Schopenhauer.

“E quão longa é a noite...”

Outro registro importante: a declaração de, salvo engano, Gloria Vaquer de que foi o álcool e a cocaína, não a maconha, que esvaíram as forças – e a beleza – do Maluco Beleza. É chocante, aliás, a percepção de como foi abrupto o início da decadência de Raul, cujo primeiro sintoma inequívoco, no filme, é justamente um registro de “Maluco Beleza”, realizado, provavelmente, em estado de semiembriaguez. É comovente ver Raul, a certa altura, tentando interpolar um pequeno discurso sobre si mesmo no meio da canção e obrigando-se a calar, ao perceber que a pausa da letra não era suficiente. É comovente ver as fotos e imagens do ídolo combalido, com os olhos mortiços e o rosto inchado, em contraste com as performances vigorosas de poucos anos antes.
Mas é comovente constatar, também, que esse vigor nunca arrefeceu totalmente, e nesse sentido as imagens dos derradeiros shows com Marcelo Nova já redimem, por si sós, o que quer que eles possam ter significado de ruim em termos de saúde para Raul. O fato fundamental a esse respeito é muito simples, e perceptível no filme: Marcelo proporcionou a Raul a chance de continuar vivo e ativo, além de produzir com ele sua última obra-prima discográfica, não menos irregular mas não menos vigorosa que a maioria delas, a caudalosa A panela do diabo.
Marcelo e Raul, + ou novos
Só pra terminar

Eu já disse, e repito, que Raul: o início, o fim e o meio não é filme "perfeito" – eis aí, aliás, uma bela e espúria palavra. Pelo contrário, é um filme tão irregular quanto foi a vida e a obra de Raul, e não poderia ser diferente, se Carvalho decide ser fiel à vida de Raul, não só a seus fatos mas, principalmente, seu espírito. É um tipo de “respeito pelo objeto” nos obriga a assistir e até nos saturar com cenas mais ou menos ridículas – mas sempre, também, seu quê de poesia. Como, por exemplo, Carvalho poderia ser fiel ao espírito de Raul se não concedesse o espaço reivindicado por seus amigos de infância, com suas demandas de publicidade ou suas “performances” tão risíveis quanto, às vezes, admiráveis? É verdade que às vezes o excesso de edição incrementa (ou até determina) o kitsch da situação[2], mas nem o kitsck – e, claro, o brega – era estranho a Raul nem Carvalho se furta ao outro lado, digo, um dos outros lados de Raul, a acidez irônica, permitindo-se, por exemplo, acentuar o ranço autoritário de um desses tipos impagáveis que encarrega-se, ele mesmo, de mandar cortar a cena – o que é impagavelmente mantido na edição.
Trazer à tona o espírito de Raul significa ouvir seus espíritos, os que emergiram dele e os que o rondaram, os que se comunicaram com ele, incluindo aí aqueles de onde ele adveio (por exemplo, Élvis, Gonzaga etc.). Ouvi-los e respeitá-los, menos, porém, no sentido de uma atitude formal ou servil que no de atender ao que eles demandam – de responder-lhes, de dialogar com eles. Às vezes, talvez, de formas meio abusivas, como me parece ser pelo menos um caso: o da inclusão da mensagem que uma das filhas de Raul lê pela internet recusando-se a conceder entrevista sobre o pai – inclusão algo birrenta e perfeitamente desnecessária, mesmo porque a moça acabou concedendo a entrevista, que aliás tinha acabado de ser mostrada. Se também uma pequena baixeza como essa pode ser tributada ao “espírito de Raul” (por exemplo, em “Você roubou meu videocassete”), este seria um caso, talvez, em que o diretor poderia evitar esse “contágio”...
Mas são detalhes, embora detalhes importantes, como tudo o que diz respeito a Raul para seus fãs inesgotáveis. Pois Raul é eterno, e sempre vai haver um maluco para gritar, em alguma “cover night” de rock inglês: TOCA RAUL!!! Sempre vai haver uma criança que, distraída ou atentamente, ouvirá Raul e se encantará, no mesmo instante e para sempre, com sua verve, seu ritmo e seu canto.

[1] Não fica claro se ele conseguiu, o que aliás é bem possível: acertar na mosca, como mostra outra cena (também, aliás, algo impressionante), é uma especialidade de Coelho. Mas é claro que, a despeito disso, Carvalho não deixaria de dar a última palavra a Raul: “Porque cê mata uma e vem outra em meu lugar!”.

[2] Numa cena, um dos amigos – o, digamos, mais “maluco beleza” – de Raul canta “Blue suede shoes”, em cenas intercaladas com as de um registro ao vivo de Élvis, cenas que – é o pior de tudo – se fundem no fim.

Extrema-direita cresce na França, mas socialista deve derrotar Sarkozy


Divulgação
Pesquisas de domingo (22) e segunda-feira (23) apontam socialista François Hollande com percentuais entre 53% e 56% para segundo turno | Foto: Divulgação

Felipe Prestes no SUL21

Em sua primeira eleição presidencial, Marine Le Pen já superou o pai. Em cinco eleições disputadas pela Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen nunca havia chegado aos mais de 6,4 milhões de votos – ou 17,9% — conquistados pela filha mo último domingo (22), resultado que a colocou na terceira colocação, atrás do socialista François Hollande e do atual presidente Nicolas Sarkozy, da União por um Movimento Popular, de direita. Nem em 2002, quando alcançou o 2º turno, o Le Pen pai alcançou o feito da filha. Naquela ocasião, fez 4,8 milhões de votos no 1º turno e apenas 5,25 milhões no 2º, chegando a 17,79% do eleitorado francês.
Com discurso xenófobo e contra a União Europeia, Marine assusta os países vizinhos e o mundo. Sua votação expressiva, entretanto, não deve pautar o próximo governo da França, porque as pesquisas indicam a vitória do socialista François Hollande, mesmo com a demonstração de força da direita.
Ao contrário do Brasil, o 2º turno na França ocorre apenas duas semanas após o 1º. Há pouco tempo, portanto, para reviravoltas. Pesquisas de quatro diferentes institutos feitas neste domingo (22) ou nesta segunda (23) mostram Hollande tendo entre 53 e 56% dos votos válidos. O atual presidente Nicolas Sarkozy teria entre 44 e 47%. É bem verdade que há tendência de crescimento de Sarkozy. Na semana que antecedeu o 1º turno, as projeções de diversos institutos mostravam Hollande com 54 a 57%.
A votação de Sarkozy no primeiro escrutínio chegou a ser maior do que apontavam as pesquisas. O presidente obteve 27,18%, mas havia chegado a estar abaixo de 20% em alguns levantamentos. Mas Hollande ficou mesmo na frente, conforme apontavam os institutos. E isto tem forte significado. É a primeira vez que um presidente não vence o 1º turno desde a fundação da 5ª República, em 1958. A desaprovação do francês a Sarkozy levou-o, portanto, a um feito negativo único, histórico.
Os socialistas, por sua vez, não venciam um 1º turno desde que Lionel Jospin venceu Jacques Chirac, em 1997, mas acabou perdendo no 2º turno. Hollande obteve a primeira vitória dos socialistas em Paris na história e abocanhou 35 departamentos em que Sarkozy havia vencido em 2007 (ao todo são 100 departamentos). Após a confirmação dos resultados, Hollande afirmou que o resultado era um “castigo” para Sarkozy.
Nicolas Sarkozy precisaria puxar para si cerca de 80% dos votos da extrema direita para vencer segundo turno na França | Foto: World Economic Forum/Flickr

Como ficará o voto dos eleitores derrotados no 1º turno

Com a enorme desaprovação, não surpreende, portanto, que Sarkozy não esteja conseguindo capitalizar boa parte dos votos da extrema-direita. Em quatro diferentes pesquisas feitas no último domingo, Hollande oscila entre 18 e 31% dos votos dos eleitores de Marine Le Pen para o 2º turno. Sarkozy tem entre 48 e 60% dos votos da candidata da Frente Nacional e calcula-se que precisaria chegar a 80% dos eleitores dela para vencer.
Além disto, o número de pessoas que saíram de casa para votar foi considerado bastante alto, aproximadamente 80%. Assim, é difícil capitalizar em cima dos que não votaram. E uma pesquisa do instituto CSA mostra que Hollande teria 28% dos votos dos que não compareceram, brancos e nulos contra 13% de Sarkozy.
O atual presidente também deve lutar pelos votos do centrista François Bayrou, que ficou na quinta colocação, com 9,13% dos votos. Segundo quatro institutos de pesquisa, Sarkozy tem entre 25 e 38% das intenções de voto dos eleitores de Bayrou; Hollande tem entre 32 e 40%.
À esquerda, as chances de abocanhar votos para Sarkozy são quase nulas. Entre 83 e 91% dos eleitores do quarto colocado, o comunista Jean-Luc Mélenchon, que teve 11,1% dos votos, devem votar em François Hollande. Sarkozy deve ter entre 3 e 6% dos votos dos comunistas. Proporção semelhante entre os que votaram na candidata verde Eva Joly, que teve 2,31% dos votos.
Ainda no domingo eleitoral, Mélenchon e Joly conclamaram seus eleitores a derrotar Sarkozy. Mélenchon pediu que no dia 6 de maio seus eleitores votem “para vencer Sarkozy, como se estivessem votando em mim”. Joly pediu a “todos que compartilham dos meus valores republicanos a vencer Sarkozy e reunir-se em torno de Hollande”. O centrista Bayrou, por sua vez, manifestou sua preocupação com o crescimento da extrema-direita, mas disse que quer ouvir Sarkozy e Hollande sobre pontos fundamentais de seu programa para então definir-se por uma das candidaturas.

Sarkozy deve acenar ainda mais para a direita

Analistas apontam que em 2007, ano em que a votação de Jean-Marie Le Pen caíra muito em relação a 2002, Nicolas Sarkozy havia conseguido já no 1º turno abocanhar os votos da extrema-direita. Agora, ela o rejeitou na primeira votação. Mesmo correndo o risco de perder os votos do centro, Sarkozy acenou que deve correr atrás dos extremistas.
Guillaume Paumier
Tentando atrair voto da extrema direita, Sarkozy afirma que "respeito às fronteiras" e "luta contra a imigração" são temas prioritários para 2º turno na França | Foto: Guillaume Paumier

Em seu discurso após a divulgação dos resultados, ele afirmou que o “respeito às fronteiras” e a “luta contra a imigração”, além da “família e do trabalho” deveriam ser temas prioritários do debate político do 2º turno. Ele também mostrou-se compreensivo com o eleitor de extrema-direita. “Vejo esta votação (em Le Pen) como um grito de dor. Meu dever é ouvir os franceses”.
Surpreendentemente, Marine Le Pen não deve se definir por nenhum dos candidatos. Segundo um porta-voz, a Frente Nacional considera que Hollande e Sarkozy têm “programas semelhantes”. Ela deve fazer uma manifestação sobre o 2º turno no dia 1º de Maio, quando tradicionalmente a Frente Nacional faz ato em memória a Joana D’Arc, mas dificilmente irá abrir voto a alguém e, com um discurso contra a “política tradicional”, é provável que ela peça o voto em branco.
No xadrez político, diz-se que Le Pen, que se considera a única oposição possível à esquerda, torce por uma vitória socialista. Assim, ela, que tem apenas 43 anos, contaria com a derrota de Sarkozy para arrebanhar aliados em seu partido e se credenciar como grande liderança da direita no país.
Buscando votos à extrema-direita, Sarkozy pode não conquistar o apoio do centro. Com François Bayrou, a estratégia do atual presidente é diferente, buscando apoio político, mas não necessariamente ideológico. Nos bastidores, diz-se que o candidato à reeleição irá prometer a indicação de Bayrou para primeiro-ministro. Ao mesmo tempo, Sarkozy também tenta um discurso quase esquizofrênico, buscando acenar timidamente para a esquerda. Após o pleito deste domingo, ele afirmou que foi alvo de mentiras, criticou a cobertura da imprensa, e acusou os socialistas de não irem onde estão os trabalhadores, mas em “jantares caros”. Sarkozy também disse que sua campanha é voltada aos aposentados e aos trabalhadores rurais “que não querem morrer”.

Crise empurra a Europa para os extremos

A ascensão da extrema-direita na França preocupa a União Europeia e até governos de direita em países vizinhos. Segundo reportagem do El Pais, um porta-voz da UE disse que estes ideais se chocam com os ideais promovidos pelas instituições europeias. O ministro das Relações Exteriores da Espanha, que é governada pela direita, também mostrou preocupação, ressaltando que as duas grandes guerras foram precedidas por “este tipo de ideologias, o que se acentua com as crises econômicas”.
Rémy Noyon
Marine Le Pen não deve recomendar voto nem a Sarkozy, nem a Hollande; segundo Frente Nacional, ambos têm "discursos semelhantes" | Foto: Rémy Noyon

O jornal espanhol aponta que há crescimento da extrema-direita não só na França, mas na Holanda, Áustria, Suécia, Dinamarca, Hungria, Itália e no próprio Parlamento europeu. No país onde a crise financeira é mais latente, a Grécia, houve crescimento dos dois extremos, esquerda e direita. Fenômeno semelhante ocorre na França. É impossível ignorar o enorme crescimento dos comunistas. Em 2007, eles haviam tido 2% dos votos para presidente contra 11% no pleito atual, resultado mais de cinco vezes superior.
O discurso da Frente de Esquerda capitaneada por Mélenchon era também flagrantemente contra o status quo – o que não deixa de ser verdade, mas 180 graus oposto, para o discurso de Le Pen. Até ao pedir voto para Hollande, o comunista foi claro: era para votar contra uma Europa sequestrada pelo sistema financeiro, ou, nas palavras do candidato derrotado, “acabar com o diktat de Merkel e Sarkozy”.

Socialistas prometem não fazer concessões à extrema-direita

Para os socialistas, em uma análise que é corroborada por analistas, Sarkozy é culpado pelo crescimento da ultra-direita. Ao fazer um governo dúbio, que ora joga para a extrema-direita, ora joga contra ela, ele acabou alimentando o monstro, por assim dizer. Já que o presidente alimenta a extrema-direita, mas não chega a se assumir como tal, a própria Frente Nacional foi quem mais ganhou com isto.
“Estou ciente de que há uma parte de nossos cidadãos que têm sido tentados a ir para a extrema-direita, porque não sabem como traduzir as suas decepções e desilusões. O chefe da ascensão da extrema direita é aquele que, por vezes, usou as palavras da extrema-direita para tentar impedir o seu progresso”, disse Hollande, no domingo à noite, apontando o dedo para o adversário.
Divulgação
"O chefe da ascensão da extrema direita é aquele que, por vezes, usou as palavras da extrema-direita para tentar impedir o seu progresso”, diz Hollande, em recado direto a Sarkozy | Foto: Divulgação

A estratégia de campanha do socialista não será a de alimentar a extrema-direita. Ao contrário, será a de mostrar ao eleitor descontente com o status quo, com o desemprego e a crise econômica, o voto na esquerda pode ser a melhor opção. “Temos que provar que nós somos uma resposta a esta raiva, não Sarkozy”, disse o dirigente socialista Stephane Le Foll.
O dirigente afirmou ainda que Hollande não irá retroceder em nenhum dos 60 compromissos de seu programa de governo. Não é um programa de mudanças radicais, mas difere muito da agenda de Sarkozy e nem de longe tangencia as ideias da extrema-direita.
No campo econômico, Hollande se propõe a ter um Estado muito maior do que pregam Merkel, Sarkozy e o sistema financeiro. Um dos pontos centrais é o aumento da carga tributária, com a recuperação de 29 bilhões de euros, eliminando “brechas fiscais”. Há também um aumento de 15% na taxação do lucro de bancos. Com os recursos, o socialista promete a criação de um banco público de investimento para pequenas e micro empresas, aumento dos subsídios à educação e à habitação. Outra medida do programa de governo de Hollande vai totalmente na contramão das reformas trabalhistas que estão sendo feitas em países europeus: o socialista promete dificultar as demissões.
Quanto a questões ligadas à moral e os bons costumes, Hollande promete opor-se totalmente à extrema-direita. Seu programa de governo inclui o direito de casamento e adoção por casais homossexuais e a permissão da eutanásia em alguns casos. No que diz respeito à imigração, o socialista propõe aumentar os direitos dos estrangeiros, permitindo que aqueles que vivem legalmente há cinco anos possam votar.
Com informações de Le Monde, Le Fígaro, RFI, El Pais, BBC, Carta Maior e PolicyMic