Prova de fogo da esquerda uruguaia
Depois de viver a experiência do primeiro governo de esquerda da sua história, o povo uruguaio vai às urnas, no dia 25 de outubro, para escolher o novo presidente.
Por Fania Rodrigues - Caros Amigos
Um
ex guerrilheiro lidera as intenções de voto para as eleições
presidenciais do Uruguai. O que seria impossível na América do Sul dos
anos 1970, quando muitos países viviam em plena ditadura militar, ainda
soa estranho, mesmo se tratando de um dos mais democráticos países da
América Latina. José “Pepe” Mujica, hoje com 74 anos, é o candidato a
sucessor do primeiro governo de esquerda da história do Uruguai, que
chegou ao poder em 2005, quando foi eleito Tabaré Váquez, da Frente
Amplio, um partido de coalizão que reúne diferentes forças políticas de
linha marxista.
“El Pepe”, como é conhecido, começou sua militância política ainda na década de 1960, quando ingressou no Movimiento de Liberación Nacional - Tupamaros (MLN-T), uma organização política uruguaia composta por distintos movimentos da esquerda radical, que atuou como guerrilha urbana, entre 1960 e início da década de 1970. Preso quatro vezes, no total Mujica passou quase 15 anos de sua vida encarcerado. O último período de detenção durou 13 anos, entre 1972 e 1985, vivendo em condições precárias, sofrendo tortura e isolamento. Marcado pelos seis balaços da época do enfrentamento
armado e pelos anos de cadeia, quando ganhou a liberdade, beneficiado pela lei de anistia, Mujica levou sua luta para as vias eleitorais. Criou o Movimento de Participação Popular (MPP), dentro da Frente Amplio, e no ano de 1994 foi eleito deputado federal por Montevidéu e depois em 1999 senador, cargo que ocupa desde então. Agora, no próximo dia 25 de outubro vai enfrentar a mais dura das batalhas da sua vida: o veredicto do povo através das urnas.
Ministro da Pecuária, Agricultura de Pesca, entre 2005 e 2008, Pepe Mujica não era o favorito do atual presidente, Tabaré Vásquez, para a sua sucessão. Vásquez nunca escondeu sua preferência por Daniel Astori, ex-ministro de Economia e Finanças de seu governo. Derrotado nas internas da Frente Amplio, realizadas em 28 de junho desse ano, Astori aceitou o convite de Mujica para ser seu vice.
Polêmico, contraditório, herói para uns e perigoso para outros, Pepe é inteligente e culto, não usa gravata, não gosta de assessores, fala o que pensa e muitas vezes comete gafes. Faltando 40 dias para as eleições ele deu uma extensa entrevista para o jornal argentino La Nación, em que fez algumas declarações no mínimo desastrosas para um candidato a presidência e quase causou um incidente diplomático. Disse que “o problema de Hugo Chávez é que ele fala demais. Tem que falar menos”. Sobre a Argentina afirmou: “Não sei qual é a ideologia dos Kirchner. Parece que são progressistas, mas também são peronistas. No Uruguai é difícil para nós entendêlos”. E não parou por aí. Falou que “a justiça tem odor de vingança” e que nela não crê.
Depois admitiu que também fala demasiadamente. Nessa mesma semana, o jornalista uruguaio Alfredo García lançou, no dia 13 de setembro, o livro Pepe Coloquios, com 14 entrevistas de Mujica, em 28 horas de conversas gravadas. O livro virou polêmica, teve repercussão internacional e esgotou em poucos dias. Nele o presidenciável faz mais declarações sobre os Kirchner, a quem define como “patota” (gangue, em português) e chama o governo e os ruralistas argentinos de “burros”.
No entanto, isso em nada mudou o cenário político. Mujica e Astori continuam liderando as pesquisas, com 45% das intenções de votos. Mas as eleições não estão ganhas. Mais quatro partidos estão na disputa, entre eles o Partido Nacional (Blanco), Colorado, Assembleia Popular e Partido Independente. Mas apenas os candidatos de dois deles possuem chances reais de vencer as eleições: José “Pepe” Mujica, da Frente Amplio, e Luis Alberto Lacalle, do Partido Nacional, que possui 32% das intenções de votos.
O Uruguai possui uma direita organizada e com tradição política. “O Partido Nacional é muito antigo, criado em 1836, assim como o Colorado, criado em 1825, um dos primeiros do mundo. São partidos de direita que historicamente tiveram em seu cerne o liberalismo e a democracia”, observa o cientista político Adolfo Garcé, professor e pesquisador do Instituto de Ciência Política da Universidade da República de Montevidéu.
Luis Alberto Lacalle, de 68 anos é um político experiente. Ex-presidente uruguaio, governou o país entre 1990 e 1995 e foi um dos grandes responsáveis pelo processo de consolidação da democracia. Assumiu o governo com 49 anos, sendo considerado um dos mais jovens presidentes que o Uruguai já teve. Isso porque ingressou na política em 1958, quando tinha apenas 17 anos.
Advogado, cientista social e jornalista, Lacalle é um intelectual respeitado. Também foi deputado nacional e senador. Opositor à ditadura militar, em agosto de 1978 recebeu uma garrafa de vinho enviada por um desconhecido, com um bilhete que dizia “brindar pela Pátria em sua nova etapa” e assinado com a sigla “MDN”. Garrafas iguais foram enviadas também aos legisladores do Partido Nacional, Carlos Julio Pereyra e Mario Heber. Muitos acreditaram que era pelos rumores de que o país estava prestes a sofrer um golpe dentro do próprio regime. No entanto, a motivação era outra. Os vinhos
estavam misturados com um potente veneno. Lacalle não provou a bebida, alertado por sua esposa que achou tudo muito suspeito. Mas a companheira de Mario Heber, Cecilia Fontana, experimentou e morreu logo em seguida. O caso nunca foi esclarecido e há suspeitas inclusive de haver ligação com a morte, em 1976, do ex-presidente brasileiro João Goulart, que também pode ter sido envenenado.
Semelhanças e diferenças
José “Pepe” Mujica é uma figura muito polêmica, que encontra muita resistência em uma parte da sociedade e é muito querido entre os pobres e pouco aceito pelos ricos. “As pessoas sentem carinho por Mujica, muitas o admiram pelos anos que esteve na luta revolucionária. O respeitam pelo modo como vive, por sua coerência. Porque a ele não importa dinheiro, nem conforto. Vive em uma chácara a 20 km do centro da cidade, tem uma casa humilde e cultiva suas próprias flores. Não é como os políticos clássicos que têm grandes carros e um luxuoso apartamento em um bairro lindo. Mujica tem um carro muito velho e usa roupas velhas. As pessoas gostam dele e o consideram um homem honesto e sensível. Acreditam, sobretudo os pobres, que ele compreende seus problemas”, analisa Adolfo Garcé.
Com Lacalle é diferente. “O respeitam e acreditam que ele entende os problemas do mundo, que é um homem culto e bem informado. Todo mundo sabe que Lacalle pode ser um presidente que resolve muitos entraves. Tem aspecto de presidente. Fala como um presidente. Tem uma casa linda em Carrasco, um dos lugares mais caros de Montevidéu. É um homem que as pessoas sentem que as pode representar”, compara o cientista político. O que se sabe é que a competição entre Mujica e Lacalle é muito dura no terreno retórico. Mujica fala da corrupção dos anos 1990, do governo de Lacalle, que por sua vez fala da violação dos direitos humanos cometida pela guerrilha urbana que Mujica integrou. Para o pesquisador da Universidade da República de Montevidéu, Adolfo Garcé, ao mesmo tempo em que confrontam não estão se contrapondo com dois projetos de país completamente distintos. “José Mujica está fazendo uma campanha de centro-esquerda e Lacalle de centro-direita, sem grandes conflitos de interesses”.
Essa, no entanto, é a crítica mais feroz tanto ao governo de Tabaré Vásquez, quanto à candidatura de Pepe Mujica. Pois a Frente Amplio, assim como o PT do presidente Lula, saiu da esfera ideológica que sempre a norteou e vem atuando mais como progressista ou centro-esquerda.
Fania Rodrigues é jornalista
“El Pepe”, como é conhecido, começou sua militância política ainda na década de 1960, quando ingressou no Movimiento de Liberación Nacional - Tupamaros (MLN-T), uma organização política uruguaia composta por distintos movimentos da esquerda radical, que atuou como guerrilha urbana, entre 1960 e início da década de 1970. Preso quatro vezes, no total Mujica passou quase 15 anos de sua vida encarcerado. O último período de detenção durou 13 anos, entre 1972 e 1985, vivendo em condições precárias, sofrendo tortura e isolamento. Marcado pelos seis balaços da época do enfrentamento
armado e pelos anos de cadeia, quando ganhou a liberdade, beneficiado pela lei de anistia, Mujica levou sua luta para as vias eleitorais. Criou o Movimento de Participação Popular (MPP), dentro da Frente Amplio, e no ano de 1994 foi eleito deputado federal por Montevidéu e depois em 1999 senador, cargo que ocupa desde então. Agora, no próximo dia 25 de outubro vai enfrentar a mais dura das batalhas da sua vida: o veredicto do povo através das urnas.
Ministro da Pecuária, Agricultura de Pesca, entre 2005 e 2008, Pepe Mujica não era o favorito do atual presidente, Tabaré Vásquez, para a sua sucessão. Vásquez nunca escondeu sua preferência por Daniel Astori, ex-ministro de Economia e Finanças de seu governo. Derrotado nas internas da Frente Amplio, realizadas em 28 de junho desse ano, Astori aceitou o convite de Mujica para ser seu vice.
Polêmico, contraditório, herói para uns e perigoso para outros, Pepe é inteligente e culto, não usa gravata, não gosta de assessores, fala o que pensa e muitas vezes comete gafes. Faltando 40 dias para as eleições ele deu uma extensa entrevista para o jornal argentino La Nación, em que fez algumas declarações no mínimo desastrosas para um candidato a presidência e quase causou um incidente diplomático. Disse que “o problema de Hugo Chávez é que ele fala demais. Tem que falar menos”. Sobre a Argentina afirmou: “Não sei qual é a ideologia dos Kirchner. Parece que são progressistas, mas também são peronistas. No Uruguai é difícil para nós entendêlos”. E não parou por aí. Falou que “a justiça tem odor de vingança” e que nela não crê.
Depois admitiu que também fala demasiadamente. Nessa mesma semana, o jornalista uruguaio Alfredo García lançou, no dia 13 de setembro, o livro Pepe Coloquios, com 14 entrevistas de Mujica, em 28 horas de conversas gravadas. O livro virou polêmica, teve repercussão internacional e esgotou em poucos dias. Nele o presidenciável faz mais declarações sobre os Kirchner, a quem define como “patota” (gangue, em português) e chama o governo e os ruralistas argentinos de “burros”.
No entanto, isso em nada mudou o cenário político. Mujica e Astori continuam liderando as pesquisas, com 45% das intenções de votos. Mas as eleições não estão ganhas. Mais quatro partidos estão na disputa, entre eles o Partido Nacional (Blanco), Colorado, Assembleia Popular e Partido Independente. Mas apenas os candidatos de dois deles possuem chances reais de vencer as eleições: José “Pepe” Mujica, da Frente Amplio, e Luis Alberto Lacalle, do Partido Nacional, que possui 32% das intenções de votos.
O Uruguai possui uma direita organizada e com tradição política. “O Partido Nacional é muito antigo, criado em 1836, assim como o Colorado, criado em 1825, um dos primeiros do mundo. São partidos de direita que historicamente tiveram em seu cerne o liberalismo e a democracia”, observa o cientista político Adolfo Garcé, professor e pesquisador do Instituto de Ciência Política da Universidade da República de Montevidéu.
Luis Alberto Lacalle, de 68 anos é um político experiente. Ex-presidente uruguaio, governou o país entre 1990 e 1995 e foi um dos grandes responsáveis pelo processo de consolidação da democracia. Assumiu o governo com 49 anos, sendo considerado um dos mais jovens presidentes que o Uruguai já teve. Isso porque ingressou na política em 1958, quando tinha apenas 17 anos.
Advogado, cientista social e jornalista, Lacalle é um intelectual respeitado. Também foi deputado nacional e senador. Opositor à ditadura militar, em agosto de 1978 recebeu uma garrafa de vinho enviada por um desconhecido, com um bilhete que dizia “brindar pela Pátria em sua nova etapa” e assinado com a sigla “MDN”. Garrafas iguais foram enviadas também aos legisladores do Partido Nacional, Carlos Julio Pereyra e Mario Heber. Muitos acreditaram que era pelos rumores de que o país estava prestes a sofrer um golpe dentro do próprio regime. No entanto, a motivação era outra. Os vinhos
estavam misturados com um potente veneno. Lacalle não provou a bebida, alertado por sua esposa que achou tudo muito suspeito. Mas a companheira de Mario Heber, Cecilia Fontana, experimentou e morreu logo em seguida. O caso nunca foi esclarecido e há suspeitas inclusive de haver ligação com a morte, em 1976, do ex-presidente brasileiro João Goulart, que também pode ter sido envenenado.
Semelhanças e diferenças
José “Pepe” Mujica é uma figura muito polêmica, que encontra muita resistência em uma parte da sociedade e é muito querido entre os pobres e pouco aceito pelos ricos. “As pessoas sentem carinho por Mujica, muitas o admiram pelos anos que esteve na luta revolucionária. O respeitam pelo modo como vive, por sua coerência. Porque a ele não importa dinheiro, nem conforto. Vive em uma chácara a 20 km do centro da cidade, tem uma casa humilde e cultiva suas próprias flores. Não é como os políticos clássicos que têm grandes carros e um luxuoso apartamento em um bairro lindo. Mujica tem um carro muito velho e usa roupas velhas. As pessoas gostam dele e o consideram um homem honesto e sensível. Acreditam, sobretudo os pobres, que ele compreende seus problemas”, analisa Adolfo Garcé.
Com Lacalle é diferente. “O respeitam e acreditam que ele entende os problemas do mundo, que é um homem culto e bem informado. Todo mundo sabe que Lacalle pode ser um presidente que resolve muitos entraves. Tem aspecto de presidente. Fala como um presidente. Tem uma casa linda em Carrasco, um dos lugares mais caros de Montevidéu. É um homem que as pessoas sentem que as pode representar”, compara o cientista político. O que se sabe é que a competição entre Mujica e Lacalle é muito dura no terreno retórico. Mujica fala da corrupção dos anos 1990, do governo de Lacalle, que por sua vez fala da violação dos direitos humanos cometida pela guerrilha urbana que Mujica integrou. Para o pesquisador da Universidade da República de Montevidéu, Adolfo Garcé, ao mesmo tempo em que confrontam não estão se contrapondo com dois projetos de país completamente distintos. “José Mujica está fazendo uma campanha de centro-esquerda e Lacalle de centro-direita, sem grandes conflitos de interesses”.
Essa, no entanto, é a crítica mais feroz tanto ao governo de Tabaré Vásquez, quanto à candidatura de Pepe Mujica. Pois a Frente Amplio, assim como o PT do presidente Lula, saiu da esfera ideológica que sempre a norteou e vem atuando mais como progressista ou centro-esquerda.
Fania Rodrigues é jornalista