Porto Alegre recebeu, durante a quinta-feira (14), a visita de uma
pessoa que ajudou a mudar o panorama político da Tunísia e abrir caminho
para uma série de revoltas que está redefinindo o mundo árabe. Amami
Nizar, dirigente sindical da Federação de Correios e Telégrafos da
Tunísia e integrante da Liga de Esquerda Operária, participou de
palestra na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, promovida pela
Fundação Lauro Campos com apoio da Secretaria de Relações Internacionais
do PSol. Durante sua fala, o dirigente descreveu o processo que
conduziu à Revolução de Jasmim, além de explicar o atual momento do
país, que aguarda as eleições para uma nova Assembleia Constituinte,
marcadas para 24 de julho.
Amami Nizar atua politicamente desde os anos 70, quando era estudante
secundarista. Ajudou a fundar a Liga Comunista Revolucionária, no
início dos anos 80, entidade filiada à Quarta Internacional. Passou a
atuar no meio sindical a partir de 1990, quando ingressou nos correios e
acabou tornando-se secretário-geral do sindicato da categoria. Nessa
época, lutou contra a privatização dos correios na Tunísia e contra a
precarização das condições de trabalho de vários setores. Como dirigente
da Liga da Esquerda Operária, Amami Nizar participou diretamente das
mobilizações que resultaram na queda de Zine al-Abidine Ben Ali, e
atualmente participa da mobilização política que busca garantir uma
mudança efetiva nos rumos da política tunisiana.
Antes da palestra, Amami Nizar concedeu uma entrevista coletiva para
blogueiros e representantes de veículos alternativos de mídia. Durante
cerca de uma hora, falou do clima tenso que imperava na Tunísia antes da
revolução, e criticou o governo de transição, que descreveu como uma
representação da burguesia do país árabe. Falou também da importância
das redes sociais em estimular a revolta popular, além de criticar a
postura dos países ocidentais, que teriam apoiado durante anos as
ditaduras que oprimem vários países da região. A seguir, os principais
trechos da coletiva.
A ditadura de Zine al-Abidine Ben Ali
“Como qualquer ditadura, a da Tunísia foi regida por um processo
imperialista, economicamente submissa ao FMI. Essa crise na Tunísia foi,
no fundo, a falência desse sistema baseado no Fundo Monetário
Internacional. A taxa de desemprego era muito grande, cerca de 130 mil
pessoas que saíram das universidades sem perspectivas de emprego. A
desigualdade de desenvolvimento entre as diferentes regiões da Tunísia
também contribuiu na decadência do regime. A gente observava, na
realidade política da Tunísia, um espaço muito restrito para as pessoas
se manifestarem, além de um controle total dos mecanismos de poder. Os
donos do poder eram corruptos, e havia muita repressão. Mesmo os
partidos organizados de oposição não podiam usufruir de liberdades
constitucionais, não tinham liberdade de reunião, por exemplo. A polícia
não deixava as pessoas se reunirem, a repressão era forte, e isso criou
uma tensão tão grande que a vida política tornou-se quase inexiste”.
As mobilizações contra o regime
“Mesmo nesse contexto, algumas revoltas e manifestações aconteciam,
especialmente da parte dos estudantes, pedindo bolsas de estudo, e das
centrais sindicais. Essas organizações impulsionaram os protestos de
muitos setores, como os correios, professores, médicos e bancários.
Trabalhadores do setor têxtil e operários também fizeram protestos, já
que sofriam muitas arbitrariedades. Temos também um grupo feminista,
chamado Associação de Mulheres Pela Democracia, que faz esforços para
lutar, mas sempre sofreu muita repressão. Então, durante os 30 anos de
governo de Ben Ali – na verdade mais de 30, porque ele representava um
regime que comanda o país desde a independência – tivemos muitas mortes e
repressão muito violenta dos opositores. Então, as revoltas surgiram de
forma espontânea, mas há também um acúmulo de anos, promovidos pelos
partidos e pelas organizações de esquerda. Talvez não haja uma cabeça
por trás da revolução, mas as organizações sindicais e a juventude
certamente foram os grandes protagonistas”.
O processo de transição para a democracia
“Após duas quedas de presidente, agora temos a volta de um velho
presidente, que é representação da burguesia tunisiana. Além disso,
temos diversos ministros que são independentes, mas estão inseridos na
burocracia do Estado. Em relação às perspectivas para as eleições, foi
votada há poucos dias uma lei especial na assembleia constitucional,
votada e aprovada por quase todos os partidos que lutaram contra Ben
Ali. Essa lei tem três aspectos principais. Primeiro, paridade de homens
e mulheres nas listas de votação. Em segundo lugar, a proibição,
durante 23 anos, de Ben Ali e qualquer outro que esteve no governo
concorrer a cargos eletivos. Por fim, uma eleição por lista, mas com uma
proporcionalidade que favoreça a consolidação e o crescimento dos
partidos políticos na Tunísia. Outro ponto positivo é que teremos um
poder independente para fiscalizar as eleições, com a presença de
representantes internacionais”.
A atuação das potências ocidentais nos conflitos árabes
“Falando de forma concreta e especificamente de países como a França,
há uma espécie de jogo dúbio, uma via de mão dupla. Na verdade, eles
adotam um discurso de democracia, mas a França só foi apoiar de fato a
revolta depois do dia 14 de janeiro, depois que já tínhamos derrubado
Ben Ali do governo. A então ministra de Relações Internacionais da
França chegou a prestar solidariedade a Ben Ali, e depois foi obrigada a
se demitir por causa disso. Quanto à intervenção da Otan no governo de
(Muammar) Kadafi, a Liga da Esquerda Operária tem como postura apoiar
iniciativas independentes. Claro que Kadafi precisa sair o mais rápido
possível, não há nenhuma dúvida disso. Mas acreditamos que essa
intervenção da Otan é uma tentativa de alguns países ocidentais de achar
um ponto de fixação dentro da Líbia, para a partir daí encontrar formas
de acessar recursos do país. A Otan sempre defendeu regimes ditatoriais
no mundo árabe. Os EUA, por exemplo, mandou soldados para o Bahrein,
para conter a revolta popular no país”.
Uma onda de mudanças no mundo árabe?
“É uma região comum, e certamente existem pontos que unem esses
países. A questão palestina, por exemplo. Há também um inimigo comum,
que é o sionismo, o que acaba sendo claramente um ponto de unidade dos
países árabes. Mas existem muitas diferenças políticas, com relação às
organizações, ao grau de consolidação dos partidos políticos e outros
pontos semelhantes. No caso da Tunísia, temos três elementos que podem
ser citados como diferenciais políticos. Primeiro, tivemos uma
constituinte em 1860, que foi a primeira constituinte (do mundo árabe) e
teve um caráter bastante reformista. Segundo, temos um espaço sindical
consolidado desde os anos 1920, e essas entidades tiveram papel
importante na independência da Tunísia. E, em terceiro lugar, o fato de
termos, desde 1959, um código de defesa das mulheres. São três
particularidades que nos diferencia
Um partido em busca do povo tunisiano“A Liga da Esquerda Operária herda uma cultura da Liga Comunista Revolucionária. Queremos ser abertos à população. Queremos manter a tradição da Quarta Internacional, queremos manter os princípios trotskistas, mas também queremos ser um partido de massas, com um diálogo direto com a população, para que possamos estar ao lado delas na busca de uma situação melhor para o país”.
A importância da internet para a Revolução de Jasmim
“No caso da Tunísia, o principal impacto foi de redes sociais como o Facebook, que foram meios alternativos para disseminar informação. Certamente essas redes tiveram papel fundamental para que mais pessoas soubessem do massacre, das arbitrariedades do regime. Mesmo porque a mídia oficial sempre teve um caráter de desinformação, de tirar a atenção da população para o que estava acontecendo e até de inverter as coisas, colocando os revolucionários como inimigos da nação. Policiais colocavam fogo em escolas, em estabelecimentos públicos, e a mídia do governo dizia que eram os revolucionários que estavam fazendo isso, para jogar a população contra os que estavam fazendo a revolta. Hoje, a mídia continua sendo toda do Estado, e está de acordo com o governo: uma mídia liberal, burguesa, que não está realmente comprometida com o povo e com quem provocou a revolução em nosso país. Mas há um anseio da população para que se abra novos espaços, para que a mídia não fique apenas nas mãos do governo e possam surgir novos espaços além dos oficiais”.