Por César Benjamin no GRABOIS
As
economias modernas criaram um novo conceito de riqueza. Não se trata
mais de dispor de valores de uso, mas de ampliar abstrações numéricas.
Busca-se obter mais quantidade do mesmo, indefinidamente. A isso os
economistas chamam "comportamento racional". Dizem coisas complicadas,
pois a defesa de uma estupidez exige alguma sofisticação.
Quem refletiu mais profundamente sobre essa grande transformação foi
Karl Marx. Em meados do século 19, ele destacou três tendências da
sociedade que então desabrochava: (a) ela seria compelida a aumentar
incessantemente a massa de mercadorias, fosse pela maior capacidade de
produzi-las, fosse pela transformação de mais bens, materiais ou
simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em
mercadoria; (b) ela seria compelida a ampliar o espaço geográfico
inserido no circuito mercantil, de modo que mais riquezas e mais
populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o
planeta; (c) ela seria compelida a inventar sempre novos bens e novas
necessidades; como as "necessidades do estômago" são poucas, esses novos
bens e necessidades seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados
à fantasia, que é ilimitada. Para aumentar a potência produtiva e
expandir o espaço da acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução
técnica incessante. Para incluir o máximo de populações no processo
mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador
daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a
cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a
deteria.
Havia, porém, obstáculos internos, que seriam, sucessivamente,
superados e repostos. Pois, para valorizar-se, o capital precisa
abandonar a sua forma preferencial, de riqueza abstrata, e passar pela
produção, organizando o trabalho e encarnando-se transitoriamente em
coisas e valores de uso. Só assim pode ressurgir ampliado, fechando o
circuito. É um processo demorado e cheio de riscos. Muito melhor é
acumular capital sem retirá-lo da condição de riqueza abstrata, fazendo o
próprio dinheiro render mais dinheiro. Marx denominou D - D" essa forma
de acumulação e viu que ela teria peso crescente. À medida que passasse
a predominar, a instabilidade seria maior, pois a valorização sem
trabalho é fictícia. E o potencial civilizatório do sistema começaria a
esgotar-se: ao repudiar o trabalho e a atividade produtiva, ao
afastar-se do mundo-da-vida, o impulso à acumulação não mais seria um
agente organizador da sociedade.
Se não conseguisse se libertar dessa engrenagem, a humanidade correria
sérios riscos, pois sua potência técnica estaria muito mais
desenvolvida, mas desconectada de fins humanos. Dependendo de quais
forças sociais predominassem, essa potência técnica expandida poderia
ser colocada a serviço da civilização (abolindo-se os trabalhos
cansativos, mecânicos e alienados, difundindo-se as atividades da
cultura e do espírito) ou da barbárie (com o desemprego e a
intensificação de conflitos). Maior o poder criativo, maior o poder
destrutivo.
O que estamos vendo não é erro nem acidente. Ao vencer os adversários, o
sistema pôde buscar a sua forma mais pura, mais plena e mais essencial,
com ampla predominância da acumulação D - D". Abandonou as mediações de
que necessitava no período anterior, quando contestações, internas e
externas, o amarravam. Libertou-se. Floresceu. Os resultados estão aí.
Mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação
predatória dos capitalistas. Karl Marx manda lembranças.
* César Benjamin, 53, é editor da Editora Contraponto e doutor honoris
causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de
"Bom Combate" (Contraponto, 2006)