A construção da unidade continental é um sonho que esteve presente na vida e na obra dos melhores intelectuais, lutadores e estadistas da América do Sul, mas nunca se realizou. Muitas causas contribuíram para essa frustração.
Durante a maior parte da nossa história, fomos economias primário-exportadoras, cujos centros dinâmicos ligavam-se diretamente com o exterior e eram comandados de lá. A infraestrutura unia regiões exportadoras aos portos, e estes, diretamente, à Europa ou aos EUA, de onde importávamos produtos industriais. As elites locais articulavam-se muito mais fortemente com os centros estrangeiros do que com suas próprias sociedades. Além disso, permaneceu existindo um vazio econômico e demográfico no coração do continente, na região amazônica e em sua extensa periferia, onde predominavam atividades extrativistas dispersas. As distâncias interiores eram quase intransponíveis.
Esses obstáculos deixaram de existir. Dos esforços desenvolvimentistas do século 20 herdamos economias mais industrializadas, capacidade técnica mais desenvolvida e mercados internos mais fortes, além de uma incipiente rede de infraestrutura voltada para efetuar ligações internas. E o papel da Amazônia mudou. No século 21, ela terá de constituir a base geográfica de um novo projeto comum de cooperação e desenvolvimento, capaz de garantir o nosso controle sobre recursos estratégicos -como água doce, biodiversidade, fontes de energia e minerais-, além do domínio pleno das biotecnologias.
Isso não é suficiente para que o projeto continental prospere. Falta uma ideia clara da nossa identidade coletiva. A história produziu diferenciações importantes. No Brasil, na Venezuela, na Colômbia, no Chile e na Argentina, predominaram povos novos, formados já no mundo moderno pela mistura de grupos humanos originários da própria América, da Europa, da África e até da Ásia, usados como força de trabalho pelo capitalismo europeu. No Peru, no Paraguai e no Equador, predominaram povos herdeiros das civilizações pré-colombianas; mesmo espoliados pela invasão europeia, preservaram línguas, costumes, formas de organização social, crenças e valores.
A Bolívia ocupa um lugar especial. Não é apenas o centro geográfico do continente. É também o principal lugar de encontro desses dois grandes contingentes humanos. Por isso, sempre esteve sob ameaça de desagregação. Até recentemente cresciam as tensões separatistas. A nova Constituição, recém-aprovada, concluiu com êxito uma fase fundamental do rico debate sobre a refundação do país. Mais de 90% dos bolivianos foram às urnas, e mais de 60% votaram sim. As posições da maioria prevaleceram, mas nem por isso as minorias foram esmagadas: suas reivindicações foram levadas em conta, o que reforça a legitimidade do novo arranjo político e institucional.
Evo não traiu as expectativas de mudança que nele foram depositadas. Nunca foi uma metamorfose ambulante. A Bolívia reformada, democrática e unitária mostra que a unidade dos povos sul-americanos é uma proposta possível e necessária. Um continente que pode ser facilmente superavitário na produção de alimentos e de energia não pode aceitar a pobreza de suas populações e a condição periférica no mundo.
Artigo de Cesar Benjamin, publicado na Folha, em 07/02/2009, sábado passado, dia em que foi promulgada a nova Constituição popular da Bolívia.
Fotos: população boliviana comemora a promulgação da nova Constituição do país, sábado passado.
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