terça-feira, 2 de abril de 2013

Os índios e o Brasil: da história às redes sociais



As redes sociais devem ressignificar o conceito de espaço público, configurando-o, na medida em que o torna mais ativo em relação ao levantamento de opiniões, reflexões, diálogos, etc. E isto é o que deve ser mantido, não seu inverso, ou seja, um espaço do deslumbramento com a crítica esmaltada, a ideia de aprendizagem por “osmose”, compartilhamento de textos que não são lidos, etc. 

“Se não fosse o Facebook do homem branco todos já estariam mortos”
Líder Kaiowá Elizeu Lopes, falando sobre a situação da tribo, 
 em audiência pública realizada no dia 01 de novembro, 2012

Ana Monique Moura* no BRASILDEFATO

Estivemos à frente de uma grande manifestação a favor dos Guarani-Kaiowá, travada nas redes sociais, em especial no Facebook. E não se tratou de uma manifestação vã. Inspirada em Deleuze e Pierre Lévy eu diria que a potencialidade do virtual sobre as realizações na nossa realidade comum é inegável. Vivenciamos uma magnífica confluência da nossa extensão existencial nas redes sociais com algumas decisões importantes de nossa existência não virtual.
Mas o que me incomoda é como há ainda uma grandiosa ingenuidade permeando o que deveria ser senso crítico. Falam sobre as terras dos Guarani-Kaiowá com um tamanho frisson, que a crítica, ou, pra ser mais precisa, a luta, está em muitos aspectos mais próxima de uma agitação ou de uma folia da indignação do que de uma luta que faz a reflexão invadir aonde ela chegue.
As redes sociais devem ressignificar o conceito de espaço público, configurando-o, na medida em que o torna mais ativo em relação ao levantamento de opiniões, reflexões, diálogos, etc. E isto é o que deve ser mantido, não seu inverso, ou seja, um espaço do deslumbramento com a crítica esmaltada, a ideia de aprendizagem por “osmose”, compartilhamento de textos que não são lidos, etc. Esta ideia da urgência de um espaço público plenamente crítico não é, ademais, de nenhuma maneira algo recente, já que foi defendida, embora em outras condições, por filósofos como Hannah Arendt e, com mais força, por Jürgen Habermas. Então, a proposta aqui não se propõe inauguradora, mas contributiva ou reflexiva.
Desde 1500 os índios sofrem com o – assim chamam os índios - “homem branco”. A década de 80 foi marcada por uma série de atrocidades. E ainda hoje elas ocorrem. Contudo, agora temos o domínio de uma rede social com um poder comunicativo que vem superando as imprensas hegemônicas. Nós fazemos a matéria, a denúncia. Não esperamos mais por aquele jornalista poetizado e heroi que, de certa forma, era tutor da informação que nos chegava, e nos entregava uma informação de pouca expansão. Agora, com o uso incisivo do Facebook, uma situação como a dos Guarani-Kaiowá não passou batida. O compartilhamento de vídeos, informes e denúncias sobre o tema não nega isso. No entanto, há um problema: O discurso da indignação ou da comoção, que é, a meu ver, um pouco distante da crítica e a ela se confunde, ao mesmo tempo.
A indignação e a comoção movem as denúncias nas redes sociais. Foi isso o que moveu a luta virtual a favor dos Guaranis Kaiowás. Porém, acredito que isto não basta. É preciso uma ação não apenas comovida ou indignada, mas uma ação crítica. Embora a crítica muitas vezes instaure uma comoção ou indignação e vice-versa, quero dizer que a comoção ou indignação não precisa ser totalizante. Uma ação comovida no facebook, por exemplo, é passageira, porque os deslumbramentos e espantos com novas conjunturas chegam para substituir os antigos sentimentos e as antigas conjunturas. Já a crítica embasada, permanece.
Em relação à proposta de iniciativa virtual, não se trata de pensar que todos tem a obrigação de fazer de seus murais espaços para reivindicação de melhores condições aos índios. Nem todos querem usar seu facebook ou qualquer outra rede social com intenções de manifesto político. O ideal é apenas que a maioria, senão todos, partilhem a motivação para o reconhecimento, seja de modo ativo ou passivo, das possibilidades de contribuição do ciberespaço aos índios.
Agora esse é o momento pensarmos também sobre direitos em relação a outras situações tanto dos Guaranis, como dos outros indígenas. A própria Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que se propõe proteger os índios é um vilão para eles, com certas negligências, como, por exemplo, o desfalque da distribuição de cesta básica durante meses para os Guarani-Kaiowá. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) chegou a fechar acordos com fazendeiros a favor da subjugação de índios para trabalharem em suas próprias terras roubadas e, em caso de trabalho improdutivo, serem expulsos. Foi o caso dos Xavante que tiveram terras roubadas pela família Ometto e a fazenda Suiá-Missú, no Mato Grosso do Sul. Recentemente a polícia federal matou um indígena Muduruku e deixou vários índios feridos. E, outro caso particular, mas não menos impactante: uma índia Guarani-Kaiowá foi estuprada por quatro pistoleiros há um só tempo. Enquanto se revezavam, mantinham a faca no seu pescoço. Ainda mais recente é o caso do cacique da aldeia Remanso Gwasu que, na segunda quinzena de janeiro, foi atingido por pistoleiros. Na década de 80 os Xikrin do Catete tiveram suas terras invadidas para a extração de madeira. As terras Yanomami estão sendo invadidas por garimpeiros. Só entre 1987 e 1992 foram mortos em média 1500 Yanomami. Sem contar a invasão do garimpo na Reserva Raposa Serra do Sol, uma área com várias etnias indígenas (dentre elas Wapixána Eingaripó, Macuxí, Taurepang).
Poderia me demorar aqui comentando praticamente ad ifinitum as atrocidades de ontem e de hoje... E, acrescento, os casos atuais são vários e faz-me recordar parte do enredo da obra Macbeth de Shakespeare, na qual Malcolm, o filho do rei morto, pergunta a Ross: “Qual a última desgraça?”, e ele lhe responde: “Referir a de há uma hora faz quem a narra ser vaiado; a cada instante se procria alguma nova”.
Parece importante acrescentar que o Brasil “não existe” para os índios. E as terras também não existem para eles como existem para nós. A noção de país é nossa. E de terra como propriedade privada também. O Brasil dos Índios é uma vastidão de natureza sagrada. As terras são sagradas e são deles não por uma finalidade de capital financeiro, mas por um princípio do cuidar daquilo que é sagrado. Deus dá a terra para o “homem branco” explorar. Os deuses dão a terra ao índio para que ele cuide dela.
Como pensou o antropólogo Lévi Strauss, os índios são iguais ao “povo civilizado”. A única diferença cabal é que os índios procuram preservar, e nós procuramos destruir. Eu acrescentaria que os índios vivem para contemplar, e nós vivemos para criar. Parece um condicionamento fortemente cultural e quase indelével. A questão é: como fazer essas forças existirem sem grandes problemas? Com a abertura para a convivência. Sem isso, não há como. Não há nada mais unível que criação e contemplação. O criar do homem branco não pode amedrontar o contemplar do homem índio. E o contemplar do homem índio deve encorajar a criação do homem branco a ser mais criativa e menos decadentista, no meu ver, o mesmo que progressismo.
Muito sangue, muito trabalho foi retirado dos índios para agora estarmos na nossa zona de conforto, apreciando as maravilhas de uma “sonhada civilização” (ou seria civilização sonhadora?).
Nós não viemos para apenas trabalhar ou ganhar a vida no Brasil. Viemos armados, prontos pra escravizar e maltratar vidas e tornar o país brasileiro, outrora rico, um país “miserável”, cheio de horror e ódio floreado com poesias portuguesas e estéticas cristãs.
Sejamos sensatos para assumir que todo o Brasil é um grande roubo de terra indígena. O Brasil é o maior furto geográfico da América Latina. Nós somos os intrusos. 
Nunca deixaremos de ser intrusos, enquanto ferirmos a terra. A exploração da terra foi por nós confundida com a subjugação da terra. Para reverter o nosso caráter opressor, nós, intrusos, precisamos nos unir aos índios. E isto não significa se tornar um deles. É muito mais: É reconhecê-los dentro de nós, porque nos colocamos dentro deles. É ver que isto não impede de sermos parte do outro universo que não o indígena, assim como não impede que os índios façam parte de seu modus vivendi natural. É preciso trocarmos a intrusão pelo princípio de coabitação. Eles devem nos ser sagrados porque nos receberam com inocência em suas terras sagradas. A bondade indígena não foi uma arma para a destrutiva atividade do homem branco, ao contrário, foi um trampolim. Não deveríamos ter saído às ruas em favor apenas dos Guarani-Kaiowá, mas por todos os indígenas. Ao lado disso poderíamos e podemos reescrever a história a partir da ação e da disposição de criticar a já existente história mal feita, como afirmava Brecht, escrita pelos vencedores.
E por falar história, não poderia deixar de fora que o problema da demolição do Museu do Índio, localizado na região norte do Rio de Janeiro, não é nada que deva nos causar tanto frisson. A memória nacional do índio nem mesmo alçou o fôlego necessário para existir. Isso é o que deveria ter sido, originariamente, inadmissível. Se um museu chega a ganhar a possibilidade de ser demolido por motivos pouco sustentados, isso é o resultado de como vem seguindo a miséria do reconhecimento histórico nacional do índio. Portanto, a notícia da demolição, que parece ser início de um problema, é apenas um de seus vastos desdobramentos.
Por fim, o que precisa ficar claro são as seguintes propostas, ainda parcas: 1. Amolar a crítica nacional do público que não está necessariamente vinculado às instâncias superiores de decisão; 2. Refletir, a partir de uma dada conjuntura as diversas outras conjunturas históricas e anteriores, de modo a se pensar melhor o aspecto global do problema, ou seja, não se aprisionar ao discurso da polêmica pela polêmica de um dado caso, mas se calcar no sentido histórico e político dele. 3. Reconstruir a memória do índio em nossa nação, desde o modo como a pensamos nos livros escolares ao modo como se vê a preservação da cultura nativa por instituições.
O processo da aplicabilidade de tais propostas, e agora me inspiro no pensamento de Marx, começa de baixo para cima, ou seja, da ação para o ideal. A rede social tem sido e deve ser, com mais força e criticidade, uma das importantes ferramentas para realizarmos isso. As instituições ideais, as leis ideais, as decisões éticas ideais devem se curvar ao que em um espaço virtual estivemos discutindo, ativa ou passivamente, e deve também atinar para a força de um povo que quer reconstruir, no real e no virtual, uma identidade merecida para essa terra por nós chamada, não por acaso, Brasil.

*Ana Monique Moura é mestre em filosofia pela UFPB, e autora do livro “Entre Kant, Filosofias & Arte”, Sal da Terra, 2012.

POA coloca milhares na rua contra o aumento abusivo das passagens dos transportes coletivos...


Mensagem de um ativista social


Prezado Juremir,
Sou um dos teus leitores assíduos e venho declarar minha satisfação em acompanhar teu trabalho jornalístico – ainda não tive oportunidade de acessar teus livros.
Bom, certamente não escrevo para babar ovo, mas sei o quanto é importante – para renovar as esperanças progressistas - que um ser qualquer venha reconhecer a qualidade do nosso trabalho.
Sou um desses ativistas de Porto Alegre – facilmente taxável de vagabundo, desocupado, baderneiro. Este estigma cabe a mim, mesmo sendo estudante e trabalhador da saúde, já que dedico meus tempos livres a fazer arruaça, quando deveria estar promovendo a paz familiar e a obediência dedicada à televisão.
Fui um dos manifestantes brutalmente espancado no 04 de outubro de 2012 pela Tropa de Choque da BM e mais brutalmente ainda pela Guarda Municipal de Porto Alegre. O motivo é claro: junto com algumas centenas de jovens (e não tão jovens) componho um grupo de desviados da moralidade e da opinião conservadora desta sociedade de discurso único.
Na última quarta-feira, após um dia de trabalho decidi novamente ir vagabundear no paço municipal e promover algazarra gratuitamente, contra o aumento da passagem de ônibus. Os meios retrataram com “assombrosa” solidariedade a violência praticada por manifestantes contra Secretário Buzato, atingido por tinta vermelha. Falou-se que os manifestantes teriam matado os servidores municipais caso tivessem conseguido entrar na Prefeitura. Falou-se muito em investigar, identificar e responsabilizar os meliantes. No entanto, os servidores da GM e da BM que usaram de violência extrema contra manifestantes completamente desarmados, deixando alguns litros de sangue derramados pelo centro da capital no outubro passado não foram identificados, e muito menos responsabilizados de nada. Tive minha cabeça aberta por uma bordoada (quando, com as mãos ao alto, pedia calma aos servidores da Guarda que me perseguiam). Fiquei 30 min sangrando com a cabeça aberta porque a SAMU foi proibida de atender pela Brigada Militar. Tudo isto foi dito inúmeras vezes em depoimentos ao Ministério Público, à Corregedoria da Guarda Municipal, à Ouvidoria de Segurança Pública do RS, à Brigada Militar. Disse mil vezes que poderia reconhecer o guarda. Nada foi feito. Como eu, dezenas de manifestantes foram violentados por este fascismo, já naturalizado, das forças repressoras do Estado Brasileiro. E que importância têm os Meios nesta maldita naturalização da violência do Estado e da criminalização do ativismo político.
Agora, deixando de lado este sarcasmo indignado, venho apelar a ti, que és uma rara voz crítica entre um mar de comunicadores fascistas da mídia. Necessitamos fazer uma grande aliança progressista para retomar a decência em Porto Alegre. Não faltam evidências para entender que nos aproximamos de um estado de brutalidade – acentuado pela proximidade da Copa 2014. Nem o patrimônio ambiental da cidade está a salvo do fascismo disfarçado de modernidade.
É preciso trazer à superfície a essência dos conceitos de democracia, participação, cidadania, justiça social e qualidade de vida. Está tudo fora de lugar, tudo subvertido pelo consumismo que faz pensar que shopping e carro são essenciais, enquanto árvores e espaços públicos de qualidade são besteiras. É preciso reconstruir a ideia de democracia, fora dessa sínica trama eleitoreira, que tira o sentido e a vida do ato político. É urgente.
Vozes fortes da hierarquia da Brigada e da Prefeitura trabalham intensamente para naturalizar a barbárie, o estado de exceção que se avizinha com a Copa. E para isto tem contado com o apoio incondicional dos Meios. Sei o quanto nadas contra essa maré. Meu apelo é para que não descanses enquanto formador de outros jornalistas, enquanto voz ativa e com espaço para tensionar. Se não fortificarmos as bases da democracia corremos o risco de voltar ao impensável. 1964 não está tão longe, tendo em conta que grande parte das novas gerações sequer sabe o que foi, e muitos dos que sabem foram induzidos ao erro e acham que foi positivo.
Como professor de Sociologia e servidor da Saúde Pública te coloco este apelo por solidariedade ao ativismo de agora, o real, o que ainda move milhares às ruas, mas que é massacrado pelos Meios para vetar qualquer identificação por parte da população a quem queremos comunicar. A pauta de hoje é justa e vem ganhando apoio da população e dos rodoviários. O último ato contra o aumento da passagem teve mais de 1500 pessoas, que corajosamente marcharam ao palácio da polícia para mostrar que não temos medo e continuaremos nas ruas. Tua voz é importante agora e sempre.
Um grande abraço.
German Alvarez