RupturaFER
- No dia 1º de Setembro, já os sms tinham circulado para convocar a
greve em Maputo contra os aumentos dos preços do pão, da água e da
electricidade, um representante do governo lembrou Maria Antonieta.
Em
entrevista à Rádio Moçambique, no programa "Café da manhã", a ilustre
personagem apelou aos ouvintes para, em substituição ao pão, comerem
batata doce. Ignorância e prepotência caminham, como sabemos, muitas
vezes de mãos dadas. Horas depois, a polícia e o exército do mesmo
governo chefiado pela Frelimo disparavam sobre a multidão desarmada.
Eram homens, mulheres e crianças da
periferia miserável da capital moçambicana, a manifestar a sua revolta
contra aumentos de preços de produtos essenciais que os condenariam a
passar ainda mais fome. Estradas foram cortadas, pneus e carros
incendiados, barricadas erguidas, lojas pilhadas, enquanto multidões
dirigiam-se, a pé, para o centro de Maputo.
O governo da Frelimo fez, em números
provisórios, só no primeiro dia da rebelião, dez mortos, entre os quais
crianças, mais de 200 feridos e quase 150 prisões. Durante os protestos,
um homem foi filmado no primeiro andar da sede do Partido Frelimo, na
Avenida de Angola, a atirar contra os manifestantes. Foi a reacção
violenta de um governo corrupto e ditatorial, comandado pelo Fundo
Monetário Internacional e à frente de um dos países mais pobres do
mundo. Segundo as Nações Unidas, 46,8% da população moçambicana vive
numa situação de pobreza extrema, superior à média do continente
africano e só superada por países como Afeganistão, Serra Leoa ou Guiné.
Os elevados índices de crescimento económico verificados nos últimos
anos, acima às vezes dos 5%, têm beneficiado quase que exclusivamente a
elite, burocrática e empresarial, ligada à Frelimo e as empresas
estrangeiras que exploram a mão de obra barata e as riquezas dos país.
Um protesto legítimo
"O sentimento que hoje grassa nos
bairros populares do Grande Maputo é o de uma incerteza global quanto ao
futuro e à própria subsistência e, face ao poder político, a sensação
de que as suas dificuldades se tornaram irrelevantes para os poderosos e
de que não existem canais por onde as suas necessidades e protestos
possam ser canalizadas de forma eficaz", escreveu no jornal Público o
professor Paulo Granjo, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade de Lisboa.
"Moçambique passou, com o fim da guerra
civil, de um regime socializante e paternalista para uma política
ultraliberal que trouxe o aumento do desemprego e das elites económicas,
coincidentes ou ligadas às elites políticas. Trouxe também a erosão do
controle local da população através de instituições partidário-estatais
que, se podiam cometer abusos, também podiam canalizar as necessidades e
reclamações populares", analisou o artigo.
Numa outra reportagem, também do jornal
Público, um participante da revolta, pedreiro de profissão e activista
de organizações cívicas, explicava as suas razões: "Estamos contra o
aumento do custo de vida, é um protesto legítimo. Eu vivo com menos de
50 meticais (cerca de um euro) por dia. Se a manifestação existe é
porque as pessoas não estão contentes. Dói sermos explorados
injustamente". E prosseguia: "Nós votámos neles [Frelimo], mas a Frelimo
não é aquela pessoa que está hoje na cadeira do poder. A Frelimo sempre
quis dar o melhor ao povo desde os tempos de Samora Machel. E os
actuais dirigentes não sentem pena desta gente que está cada vez a
sofrer mais?"
Tudo indica que não. Para o ministro do
Interior do governo presidido por Armando Guebuza, o mesmo que vive a
chamar o povo de "maravilhoso", a revolta teria sido uma acção de
"criminosos, aventureiros, malfeitores e bandidos". Mesmo o porta-voz da
Renamo, a principal força de oposição, sem deixar de criticar a
violência da polícia, não se absteve de também condenar as pilhagens.
Os assassinos estão fardados
De acordo com vários testemunhos, a
revolta teria começado no bairro de Benfica, uma zona periférica de
Maputo, e em pouco tempo estendeu-se à Avenida de Moçambique e à de
Acordos de Lusaka, as duas principais vias de entrada da capital, e para
a Beira, a segunda cidade mais importante do país.
Como em 5 de Fevereiro de 2008, na
rebelião contra o aumento do preço dos transportes, os "chapas",
autocarros que transportam os habitantes dos subúrbios para o trabalho,
não funcionaram. A adesão à greve – em Moçambique sinónimo de revolta
popular – convocada na véspera por sms tinha sido de quase 100%. Os
milhares de manifestantes dirigem-se, a pé, percorrendo quilómetros,
para alcançar a "cidade de "cimento", onde está o poder.
De Maputo, João Vaz de Almada, relata ao
Público: "O bruá da multidão é cada vez mais sonoro e a cadência dos
passos intensifica-se, sinal que a turba se aproxima rapidamente da
praça [Praça da Organização da Mulher Moçambicana]. Momentos antes, três
veículos carregados de polícias munidos de metralhadoras AK 47 tomam
posições ao longo da praça. A multidão chega ao local e a tensão aumenta
à medida que crescem as palavras de ordem que clamam por justiça. Os
tiros de aviso sucedem-se. O descontrolo entre os polícias é grande, e a
turba, cada vez mais vociferante, entra na Avenida Vladimir Lenine,
tomando a direcção da Baixa da cidade. Agora as ordens parecem claras:
ninguém pode passar para o cimento. Rapidamente tudo se precipita e os
disparos, exclusivamente da polícia, tomam as mais variadas direcções,
com dois deles a deixar um corpo já cadáver e outro em estado grave que
acaba por ser socorrido pela Cruz Vermelha. A turba, essa, recua,
voltando à procedência. No alcatrão jazem dezenas de chinelos que o
pânico deixou para trás."
"(...) Sob agitação e alguns tiros,
corremos para o local. "Já levaram uma criança que estava ferida",
revela um transeunte. "Isto é fogo real. Vocês têm de escrever que a
polícia está a matar o povo inocente e indefeso". Enquanto isso, outro
popular puxa-nos para o outro lado da rua, em direcção a uma criança que
jaz cadáver, coberta por uma capulana. Do seu lado esquerdo repousa a
pasta com os livros da escola. Do lado direito, uma enorme poça de
sangue testemunha a brutalidade do disparo. "Atingiram-no aqui na
cabeça", berra uma mulher indignada, enquanto levanta o improvisado
sudário. "Chamava-se Hélio tinha 11 anos e regressava da escola quando
foi atingido."
(...) A polícia volta a investir e o
povo que estava junto ao corpo de Hélio procura refúgio entre as
pequenas habitações de blocos que a falta de dinheiro não deixou
concluir. A indignação cresce. "Queremos justiça! Os assassinos estão
fardados! Isto não é bala perdida. Bala perdida não atinge cabeça."
"A luta continua"
No dia seguinte, 2 de Setembro, a
revolta continuou, convocada mais uma vez por sms. Mais repressão, mais
mortos e feridos. Novas barricadas e pneus queimados. Como gritavam mais
de 100 jovens que bloquearam a Avenida Acordos de Lusaca na véspera, a
enfrentar os tiros da polícia, "Um povo unido jamais será vencido".
A luta do povo moçambicano contra a
opressão e os desmandos do governo totalitário da Frelimo é legítima e
deve ter o apoio dos trabalhadores de todo o mundo. Ela se expressa na
rebelião desses últimos dias, mas também na greve dos estudantes do
Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Maputo contra o aumento
das propinas, realizada a 31 de Agosto, e outras manifestações de
protesto.
Violenta não é a revolta, mas a fome que
governos corruptos, lacaios do imperialismo, querem impor à população
para manter as suas regalias.
População pobre de Moçambique, estamos convosco!