segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Geração sem futuro



Revoltas no Chile, em Israel e em Londres são uma resposta da juventude ao quadro de devastação social legado por décadas de neoliberalismo. Pela primeira vez em um século, na Europa, as novas gerações têm um nível de vida inferior ao de seus pais

por Ignacio Ramonet no LEMONDE-BRASIL
“O mundo só será salvo, caso tenha
salvação, pelos insubmissos”
André Gide
 (Protesto contra a austeridade econômica em frente ao Parlamento grego)

Primeiro foram os árabes, depois os gregos, logo os espanhóis e os portugueses, seguidos pelos chilenos e israelenses. E, em agosto, com muito barulho e fúria, os britânicos. Jovens do mundo todo espalham uma epidemia de indignação, semelhante à que percorreu o planeta – da Califórnia a Tóquio, passando por Paris, Berlim, Madri e Praga – nos anos de 1967 e 1968 e mudou os costumes da sociedade ocidental. Naquela época, tempos prósperos, a juventude pedia para ocupar o próprio espaço com mais liberdade.
Hoje é diferente. O mundo está pior e as esperanças esmoreceram. Pela primeira vez em um século, na Europa, as novas gerações têm um nível de vida inferior ao de seus pais. O processo globalizador neoliberal brutaliza os povos, humilha os cidadãos e despoja os jovens de futuro. E a crise financeira, com suas “soluções” de austeridade contra a classe média e os mais humildes, piora o mal-estar geral. Os Estados democráticos estão renegando os próprios valores. Em tais circunstâncias, a submissão e o acatamento da ordem são absurdos.
Por outro lado, as explosões de indignação e protesto resultam normais em função da conjuntura, e vão multiplicar-se. A violência está crescendo, apesar dos levantes terem diferente formato em Tel Aviv, Santiago do Chile ou Londres. A impetuosa explosão inglesa se diferencia dos outros protestos juvenis – em geral pacíficos, embora com enfrentamentos pontuais em Atenas, Santiago e outras capitais – pelo grau de violência utilizado.
Outra diferença essencial: os amotinados ingleses, talvez pelo pertencimento de classe, não verbalizaram seu descontentamento. Nem colocaram seu furor a serviço de uma causa política ou da denúncia da desigualdade concreta. Nessa guerrilha urbana, nem sequer saquearam os bancos com ira sistemática. Deram a (lamentável) impressão de que a raiva pela condição de despossuídos e frustrados tinha como único foco as vitrines repletas de maravilhas do mundo do consumo. De qualquer forma, como tantos outros “indignados”, esses esquecidos pelo sistema – que já não pode oferecer-lhes um lugar na sociedade, um futuro – expressavam o desespero.
Um aspecto particular do neoliberalismo que incomoda muito, do Chile a Israel, é a privatização dos serviços públicos, pois significa um roubo manifesto do patrimônio da população. Para os que não possuem nada, deveria existir a escola pública, o hospital público, o transporte público, gratuitos ou subvencionados pela coletividade. Quando esses direitos básicos e inalienáveis são privatizados, não se configura apenas o roubo dos bens da cidadania (pois foram custeados com impostos), mas também a destituição do único patrimônio das camadas mais pobres. Trata-se de uma dupla injustiça, e uma das raízes da onda de ira atual.
Com relação à fúria dos manifestantes, uma testemunha dos levantes de Tottenham declarou: “O sistema não cessa de favorecer os ricos e massacrar os pobres. Há cortes nos serviços públicos, as pessoas morrem nas salas de espera dos hospitais depois de terem esperado um médico horas a fio”.1
No Chile, há três meses, milhares de estudantes apoiados por uma parte importante da sociedade reivindicam a estatização da educação, privatizada durante a ditadura neoliberal do general Pinochet (1973-1990). Exigem, ademais, que o direito a uma educação pública de qualidade seja garantido pela Constituição. E explicam que, como está, “a educação já não é um mecanismo de mobilidade social. Ao contrário: é um sistema que reproduz as desigualdades sociais”.2 Para que os pobres continuem sendo pobres...
Em Tel Aviv, no dia 6 de agosto, com o grito de ordem “O povo quer justiça social!”, cerca de 300 mil pessoas se manifestaram em apoio ao movimento dos jovens “indignados” que pedem mudanças nas políticas públicas do governo neoliberal de Benyamin Netanyahou.3 Um estudante declarou: “Quando o salário de alguém que trabalha não dá nem para cobrir os gastos com alimentação, é porque o sistema não funciona. E isso não é um problema individual, é um problema do governo, e coletivo”.4
O suicídio social

Desde a década de 1980 e da influente economia de Ronald Reagan, o modelo adotado pelo governo desses países – em especial o dos Estados europeus hoje debilitados pela crise da dívida – é o mesmo: redução drástica dos gastos públicos, cortes particularmente brutais no orçamento social. Um dos resultados dessa política foi o crescimento vertiginoso do desemprego entre os jovens (na União Europeia, 21%, e na Espanha, 42,8%). Esses números indicam a impossibilidade de toda uma geração entrar na vida ativa. Trata-se de um suicídio social.
Em vez de reagir, os governos, assustados pelas quedas recentes das bolsas de valores, insistem em satisfazer as necessidades dos mercados e dos bancos a qualquer custo, quando o que deveriam fazer, e de uma vez só, era desarmar os mercados,5 obrigá-los a uma regulamentação mais rígida. Até quando aceitaremos que a especulação financeira imponha seus critérios para as políticas públicas e a representação política? Que sentido tem essa democracia? Para que serve o voto dos cidadãos se, finalmente, quem manda são os mercados?
No próprio seio do modelo capitalista existem alternativas realistas, defendidas e respaldadas por especialistas reconhecidos internacionalmente. É possível citar, de cara, dois exemplos concretos. Primeiro: o Banco Central Europeu (BCE) poderia se converter em Banco Central de verdade e emprestar dinheiro (com condições definidas) aos Estados da Zona do Euro para que estes financiem seus gastos. Hoje, essa atuação está proibida ao BCE, o que obriga os Estados a recorrer aos juros astronômicos dos mercados. Essa medida acabaria com a crise da dívida. Segundo: parar de prometer e exigir, de fato, a Taxa sobre Transações Financeiras (TTF). Com o módico imposto de 0,1% sobre o intercâmbio de ações e o mercado de capitais, a União Europeia poderia obter, por ano, entre 30 e 50 bilhões de euros, o suficiente para financiar com folga os serviços públicos, restaurar o Estado de Bem-Estar Social e oferecer um futuro mais esperançoso às novas gerações.
Ou seja, as soluções técnicas existem. Mas onde está a vontade política?
Ignacio Ramonet
é jornalista, sociólogo e diretor da versão espanhola de Le Monde Diplomatique.


Ilustração: Pascal Rossignol/ Reuters

Libération, Paris, 15 ago. 2011.
Le Monde, Paris, 12 ago. 2011.
3  De acordo com pesquisa de opinião, as reivindicações dos “indignados” israelenses contam com 88% de aprovação dos cidadãos (Libération, op. cit.).
Le Monde, Paris, 16 ago. 2011.
5          Ignacio Ramonet, “Desarmar a los mercados” [Desarmar os mercados], Le Monde diplomatiqueem espanhol. Dezembro de 1997.

Palestina, Bahrein e a hipocrisia americana


Por Juan Cole no SUL21

Hipocrisia deslavada é algo que com frequência destrói a reputação, seja de uma pessoa ou de um país.
O presidente Barack Obama parece ter achado que poderia ir à ONU ostentar tanto a liberação da Líbia e mais um adiamento dos direitos palestinos, e que essas posturas o fariam popular no sul global. Na verdade, ele pareceu apenas inconsistente, hipócrita e pensando nos próprios interesses.
Os Estados Unidos não estiveram na vanguarda das mudanças que varreram o Oriente Médio nos últimos meses, e seu instinto enquanto Superpoder é apoiar o status quo. Assim, o governo Obama não encontrou nada para dizer sobre a Tunísia até que a população já tivesse conseguido expulsar seu presidente. O presidente Obama parece ter sentado no muro sobre o que fazer com o Egito após 25 de janeiro, mas seu instinto certamente não foi o de apoiar os revolucionários contra o governo. Apenas uma semana antes que tudo estivesse acabado é que Obama se juntou ao coro daqueles dizendo que Mubarak deveria sair.
Foram Arábia Saudita, França e Grã-Bretanha que decidiram que Muammar Qaddafi tinha que sair do poder. Obama relutantemente se uniu a eles.
No ínterim, os EUA têm feito pouco a não ser soltar uns resmungos a respeito do esmagamento do movimento popular por reforma no Bahrein. Ali, geopolítica triunfou sobre preocupações com direitos humanos. A monarquia sunita no Bahrein arrenda aos EUA a base naval que serve de quartel general para a Quinta Frota.
Agora, descobre-se que o governo Obama quer até mais ou menos recompensar o governo do Bahrein pela repressão, retomando as vendas de armas. É como uma viúva há uma semana que decide sair por aí dançando.
Mas a maior hipocrisia em Washington foi reservada para os palestinos, que labutam sob uma repressiva ocupação militar na Cisjordânia e estão cercados e bloqueados em Gaza. Se há alguma diferença, eles são mais despojados do que os povos de Egito e Tunísia eram há alguns meses.
Mas a resposta do governo Obama à proposta dos palestinos para tornarem-se membros das Nações Unidas tem sido trabalhar para preveni-la, lidar duramente com Mahmoud “Abu Mazen” Abbas e torcer os braços de países como Nigéria e Gabão para que votem contra a proposta.
O argumento de Obama, que simplesmente ecoa o do governo do Likud em Israel, é que, ao ir à ONU, a Autoridade Palestina está evitando o processo de paz. Mas essa é uma proposição ridícula. Não existe processo de paz. Obama fracassou em estabelecer um. Assim, os palestinos estão corretos ao pegarem um atalho para desviar dos EUA na região, já que a política americana em relação a seu povo tem sido, desde os tempos de Harry Truman, sacrificá-los no altar da política interna americana (Truman observou que ele tinha constituintes judeus, mas nenhum palestino). Os lobbies pró-Israel nos EUA são tão poderosos e bem sucedidos que 81 congressistas passaram parte de seu recesso de agosto em Israel!
Os palestinos estão sem estado. Não têm cidadania em nada. É por isso que Benjamin Netanyahu pôde dar curto-circuito no processo de Oslo, e é por isso que Israel pôde renegar à seu bel prazer todos os compromissos que havia firmado com os palestinos. É por isso que terras palestinas podem ser usurpadas à vontade por intrusos israelenses na Cisjordânia.
Obama fez discursos interessantes sobre a Primavera Árabe, sobre a vontade dos povos e o idealismo e ativismo dos jovens. Ele fez isso mesmo em relação a países como Egito, onde a ditadura de Mubarak serviu tão fielmente aos interesses americanos.
Mas aparentemente ele acha que os palestinos de Gaza, que não são permitidos pelos israelenses sequer a exportar os bens que produzem, merecem apenas ainda mais ocupação via bloqueio, até o dia em que o governo israelense de extrema-direita decidir unilateralmente revogar suas políticas punitivas contra os palestinos, que ficaram sem estado devido à campanha sionista de limpeza étnica de 1947-1948 (40% da população de Gaza, suas famílias expulsas de casa por israelenses, ainda vive em campos de refugiados).
Obama faz bons discursos e consegue invocar altos ideais, mas quando, no Bahrein e na Palestina, Washington adota massiva hipocrisia, mina completamente a boa vontade que poderia de outra forma ter ganho por pelo menos não ter ficado no caminho das mudanças na Tunísia e no Egito, e por ter intervindo para prevenir um massacre de Qaddafi na Líbia.
Vitórias em política externa são raras. Obama desperdiçou as suas ao se rebaixar às forças direitistas em Manama e Tel Aviv. Esse é o tipo de mudança em que a juventude árabe jamais será capaz de acreditar.

Juan Cole é professor de História na Universidade de Michigan, há mais de três décadas estuda as relações entre o Ocidente e o mundo muçulmano. Comentarista em diversos canais de tevê, é autor, entre outros, de Engaging the Muslim World (2009).