A Colômbia esteve recentemente em grande
evidência nos noticiários nacionais em função de novo posicionamento
das FARC que, em comunicado, disseram que não dariam prosseguimento às
suas atividades de seqüestros, ao mesmo tempo em que libertariam novos
reféns. Como sempre, quando se trata de questões afeitas aos nossos
vizinhos latino-americanos, especialmente se envolvem as entidades tidas
a priori como ‘terroristas, o teor das análises varia entre a
superficialidade e a apelação. Quando muito, a apresentação de uma
biografia de algum dos personagens envolvidos nos ‘seqüestros’ ou
‘atentados’, principalmente se vier a corroborar os dogmas tão caros - e
manjados - à nossa imprensa.
O fato é, no entanto, que, na medida em que nos dispomos a nos
aprofundar, um tanto que seja, na realidade latino-americana, são
incontáveis e surpreendentes as descobertas que se podem fazer face
às caricaturas às quais estamos expostos. A Colômbia talvez seja um
caso extremado desse quadro, em função da notoriedade das suas
guerrilhas e do potencial de visibilidade que trazem as notícias e
artigos nos quais são citadas. Pietro Alarcon, colombiano e professor de Direito na PUC-SP,
concedeu-nos uma entrevista sobre a conjuntura atual do país, da qual
se apreende um cenário político, econômico e social complexo e, ao mesmo
tempo, dramático.
De acordo com estatísticas oficiais, o país de cerca de 46
milhões de habitantes abriga hoje 29 milhões de pobres e por volta de 9
milhões de habitantes na pobreza absoluta; 3,4 milhões de pessoas são
refugiadas internas, o que, por si só, dá a dimensão da crise
humanitária vivida pelo país. A participação da população civil em
conflitos armados, planejando ações contra as entidades de classe,
sindicatos e outros órgãos comunitários, ocorre, por sua vez, em
flagrante desrespeito às normas do Direito Internacional Humanitário.
A opção pela militarização para a solução de conflitos, o autoritarismo do Estado em sua relação com a sociedade e um forte e incondicional alinhamento com os EUA persistem, pois, sob o comando do atual presidente Juan
Manuel Santos – de forma menos visível, mais camuflada, mas com a mesma
lógica existente à época de Uribe. Uma situação que em nada contribui
para um processo de paz. Assim como para ele não colabora a negação,
pelo Estado, da existência de presos políticos na Colômbia – forte
contradição face à admissão da existência do conflito armado.
Leia a seguir a entrevista completa.
Correio da Cidadania: O que pensa da atual conjuntura
política, econômica e social na Colômbia? O que se pode dizer do absurdo
número de assassinatos políticos, como nas últimas eleições, e também
do incrível número de mortes de sindicalistas, líderes comunitários,
camponeses, além de outras brutalidades contra indígenas, mulheres, agricultores?
Pietro Alarcón: A verdade é que existe, como é
lógico, uma variedade de aspectos que podem ser abordados, de cunho
político, econômico, social, militar e jurídico.
Acho possível estabelecer uma espécie de marco geral de análise de
uma sociedade na qual se verifica um confronto de projetos sobre a saída
ao conflito social e armado, uma constante nos últimos 50 anos. Por um
lado, segmentos do Estado, nos quais há civis e militares, propõem e
executam uma ação dirigida à imposição da saída militar, que não inclui
modificações do regime político ou transformações sociais significativas
do modelo econômico.
Por outro lado, há os setores convencidos da necessidade da saída
pela via do diálogo, da negociação, da necessidade de criar mecanismos
de distensão que possibilitem caminhos de paz acompanhados de uma
discussão ampla sobre os problemas históricos que ocasionaram a
violência na perspectiva de um novo cenário, de efetivação de direitos,
de abertura democrática.
Neste marco geral é possível continuar a enxergar alguns elementos pontuais que revelam as idas e vindas da situação.
Correio da Cidadania: E quais elementos você destacaria em todo esse arranjo sócio-político?
Pietro Alarcón: Vou colocar alguns dados que acho
importantes, especialmente após os resultados eleitorais de 2010, que
refletem a continuidade de um processo que vem de 2002, quando da
primeira eleição de Uribe. Nessas eleições de 2010, Santos obteve mais
de 9 milhões de votos.
Correio da Cidadania: Esse é um número significativo para
quem representava a continuidade de Uribe, diante de permanente caos
interno. Como você explica essa votação elevada?
Pietro Alarcón: Essa votação se explica por vários
fatores, que vão desde uma adesão ideológica e fisiológica ao governo da
chamada “Unidade Nacional”, o slogan do governo de Santos, passando
pelo uso da máquina eleitoral e do poder da mídia. Mídia que polarizou a
eleição entre Santos e o candidato Antanas Mockus com o objetivo de
esconder a oposição que dá ênfase à necessidade de uma mudança
estrutural no país, especialmente o Pólo Democrático Alternativo (PDA).
Explica-se ainda pelo assistencialismo no governo de Uribe através de
programas como Famílias em ação. E temos que considerar também a
disseminação em algumas regiões do receio pelo terror paramilitar,
através da intimidação dos chamados guarda-bosques.
Correio da Cidadania: Há diferenças entre o governo de Uribe e o de Santos?
Pietro Alarcón: Eu acho que, para caracterizar o
governo de Santos, temos que ver um pouco o governo de Uribe. Porque eu
acho que temos de lembrar disso? Porque o governo Uribe propôs três
questões: a chamada segurança democrática, a coesão social e a
recuperação da confiança internacional para atrair investimentos. É fato
que os dois primeiros implicam a militarização do país e a criação de
forças de denúncia e ação policial com aval do Estado e particularmente
das forças armadas. O problema é que esses denunciantes são recrutados
da própria sociedade, em troca dos mais variados favores estatais. O que
contribui para uma fragmentação social que não permite ou conduz à
trilha do diálogo, mas da confrontação. Há uma obra de Lon Fuller,
traduzida por um querido amigo e professor, a dos denunciantes invejosos, que sempre me lembra esta situação.
Outro elemento é a criminalização do protesto social e o cerceamento
das liberdades públicas, oficialmente ou extra-oficialmente, ou seja,
utilizando mecanismos que o governo considera legítimos ou, em outras
oportunidades, mecanismos completamente à margem de qualquer Estado de
Direito. O governo, em reiteradas oportunidades, agiu por fora da
estrita legalidade para grampear telefones e ameaçou setores da
sociedade civil, cometendo crimes de responsabilidade ao colocar em
risco a vida de lideranças políticas e sociais. Questões pelas quais
Uribe tem sido chamado a explicações pelo Congresso.
E a última proposta tem como objetivo a liberação dos acordos no
modelo TLC – Tratados de Livre Comércio. Com Santos, no governo
intitulado de Unidade Nacional, isso que menciono permanece.
Acho que, agora com maior nitidez, se observa o fortalecimento de um
projeto político que continua gravitando entre o autoritarismo na
condução do debate com os setores sociais organizados, militarismo e
alinhamento internacional às opções dos Estados Unidos.
Para exemplificar, continua em andamento o processo para tentar
incorporar a população civil ao conflito, em clara violação às normas do
Direito Internacional Humanitário.
Correio da Cidadania: Em que consiste essa história de incorporar a população civil ao conflito?
Pietro Alarcón: As normas do Direito Internacional
Humanitário são de origem convencional, ou seja, são definidas com base
nos costumes, e se originam da necessidade de restringir, por razões
humanitárias, o direito das partes do conflito armado em utilizar meios
de guerra. São normas para proteger a população civil. São as Convenções
de Genebra e elas proíbem os maus tratos, as torturas, os tratamentos
degradantes da população civil. Essas normas determinam que as forças
armadas têm de distinguir civis de combatentes, ou seja, os objetivos
militares da população inerme e indefesa.
Então, por exemplo, na Colômbia temos um problema de ausência de
efetividade dessas normas e o seu não reconhecimento. Por exemplo, as
Forças Armadas deram a conhecer há alguns dias um plano chamado Plano Espada de Honra, feito
especialmente para que os civis se assumam como defensores do Estado. A
idéia é que estas pessoas participem do conflito reproduzindo
materiais, planejando ações contra as entidades de classe, sindicatos e
outros órgãos de participação comunitária e popular, que continuam a ser
acusados de cúmplices da insurgência armada. É muita intolerância e,
sobretudo, muita irresponsabilidade. Isso não somente fragmenta, mas
desgarra a sociedade colombiana.
Correio da Cidadania: Assim, nota-se inequívoca continuidade face ao governo de Uribe?
Pietro Alarcón: Sim, e posso colocar outra questão,
muito grave e delicada. Talvez no Brasil e em outros países não tenha
tido a repercussão que merece. Mas o Judiciário, encabeçado na Colômbia
pela Corte Suprema e a Corte Constitucional, tem sido um baluarte no
sentido de manter o que resta do Estado de Direito.
A Corte Suprema emitiu ordens de detenção contra os membros do
partido de governo ligados à parapolítica, quer dizer, contra membros do
governo que realizam e estão comprometidos com práticas paramilitares.
Uma juíza que proferiu ordem de detenção contra um general envolvido no
desaparecimento de pessoas na tomada do Palácio da Justiça pelo M-19, um
movimento insurgente da década de 80 (se não me engano, essa tomada foi
em 1989 ou 1990), teve que sair do país, e hoje está protegida por
medidas cautelares proferidas pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH).
E Santos propõe hoje uma tal “reforma na justiça”, que, se explicada
em detalhe concede, na verdade, o domínio da administração da
magistratura ao Executivo, em claro detrimento da separação de funções.
Tecnicamente é isso. E politicamente, os juízes têm dito algo que para
todos parece muito claro, de modo que a Corte assim o expressou num
comunicado à opinião pública. O comunicado diz que não é possível que a
reforma na justiça, algo tão sério, seja motivo de revanchismos, de
retaliações perante o cumprimento dos deveres constitucionais.
No fundo, do que se trata é de uma tentativa de fortalecer o
Executivo em detrimento do aparelho jurisdicional, que cumpriu um papel à
altura nesta última etapa da vida nacional.
Correio da Cidadania: Santos tem condições de aprovar essa reforma?
Pietro Alarcón: Depende, logicamente, de alianças
etc. O bloco que apóia Santos tem 66 senadores. Ao todo, são 102
senadores e o Pólo Democrático Alternativo tem oito. Mas o Congresso
como um todo, incluindo a Câmara, conta com 268 parlamentares, sendo 166
deputados.
Correio da Cidadania: Mas, apesar dessa votação de 2010 que
você mencionou há pouco, houve muita abstenção e o voto não é
obrigatório...
Pietro Alarcón: Não, não é. Uma questão importante é
que, nas últimas eleições, houve um nível de abstenção superior a 55%. A
imensa maioria de abstencionistas são pessoas desinteressadas, com a
idéia de que nada vai mudar com o voto. Isso é explicável pela ciência
política, é próprio de um histórico regime político de democracia
restringida, que produz, a médio e longo prazo, uma cidadania precária
ou, como alguns opinam, de baixíssima intensidade. Isso tem
conseqüências muito negativas, começando pela renúncia das pessoas à
participação política e, depois, exigências de cumprimento dos deveres
do Estado. Uma espiral muito perigosa para a democracia.
E vale a pena anotar que também incomoda muito essa filosofia que
substitui o caráter de cidadão pelo de consumidor, que é uma das
questões mais evidentes nos últimos tempos.
Correio da Cidadania: Sobre a conjuntura social, o que poderia ser dito do atual momento do país?
Pietro Alarcón: Eu gostaria de contar coisas
positivas. Alguém poderia pensar que a Colômbia está caindo aos pedaços e
a verdade é que, se você a visita, não se percebem muitas destas
questões mais políticas. A Colômbia tem uma grande biodiversidade e
especialmente um povo generoso, muito trabalhador.
Contudo, socialmente, há um quadro bastante expressivo de piora das
condições de vida e efetivação dos direitos. Por exemplo, a partir de
2008, os indicadores estampam que a pobreza atingiu 47,8% da população, e
que a pobreza extrema é padecida por 17,8%. Se adicionarmos o
cerceamento do investimento no social, especialmente para favorecer o
investimento militar e prosseguir na guerra e no desequilíbrio na
redistribuição da renda, a questão é ainda mais grave.
A Colômbia tem em torno de 46 milhões de pessoas. Ou seja, estamos
falando de mais ou menos 29 milhões de pobres e umas 9 milhões de
pessoas na pobreza absoluta. Também, veja-se, de cada 100 trabalhadores,
58 estão no chamado emprego informal, sem carteira assinada ou
prestações laborais. Isso com um desemprego de 13%, 14%.
E existem alguns, creio, anacronismos. Por exemplo, quando hoje se
fala em pós-neoliberalismo, no meio da crise mais evidente do grande
capital, na Colômbia se privatiza a saúde e se continua com as
tentativas de privatização de todo o sistema educacional. Em outras
palavras, o modelo na Colômbia continua a ser ligado ao esquema de
Estado mínimo.
Correio da Cidadania: Em matéria de direitos humanos, como você analisa esse quadro?
Pietro Alarcón: Eu acho que neste item temos uma
grande quantidade de questões, que vou tentar resumir, ou pelo menos
apresentar de forma organizada.
E para isso teríamos que começar por uma constatação muito triste,
complexa, mas muito verdadeira. Talvez o mais determinante na história
republicana do país seja o fato de que se gerou uma camada social
incrustada na institucionalidade e objetivamente no poder através de
métodos de violência. Criou-se ao longo do tempo uma oligarquia com uma
tendência a fechar a participação democrática e que, ainda que os
direitos humanos evoluam em termos de gerações ou dimensões e o Estado
de Direito evolua e se transforme, ampliando as liberdades públicas e
consagrando os direitos sociais, sempre foi bastante refratária a tais
evoluções e mudanças. E, essencialmente, utiliza a violência como
mecanismo de contenção da pressão social por uma saída de tal situação.
O tema dos direitos humanos na Colômbia já é reiterado tanto na
Organização das Nações Unidas quanto na Corte de São José, que, como
lembrado, cuida da aplicação das normas da Convenção Americana de
Direitos Humanos, assim como é um assunto já bastante abordado por
entidades internacionais muito respeitáveis, como a Anistia
Internacional, por exemplo.
A Corte Interamericana de São José, no ano de 2010, condenou o Estado
colombiano pela morte do senador Manuel Cepeda, da organização União Patriótica,
a organização ou movimento político que surgiu na época dos primeiros
acordos de paz entre a guerrilha das FARCs e o governo. Importante
lembrar que essa organização foi vítima de um sistemático extermínio.
Eu, nos meus anos de trabalho com direitos humanos, jamais me deparei
com algo tão aberrante, o aniquilamente sistemático, primeiro seletivo e
logo praticamente em massa de membros de uma organização. O governo
anterior de Uribe se negou a aceitar essa decisão ou o fez da boca pra
fora. Não houve gesto do governo de reconhecer que ocorreu essa punição
da CIDH.
Outro assunto extremamente grave foi o dos “falsos positivos”, ainda
sendo investigados. Grupos de pessoas assassinadas pelo Exército que
supostamente eram membros das guerrilhas, logo reclamadas por seus
familiares, que ainda hoje brigam para que se reconheça que não eram
guerrilheiros, mas pessoas enganadas na busca por trabalho em várias
regiões do país e que apareceram assassinadas. Isso é muito grave, um
delito contra a humanidade.
O terceiro ponto, que atesta que na Colômbia há uma crise humanitária
de dimensões maiúsculas, é que, segundo dados do próprio Registro Único
de População Deslocada da Presidência da República, o número de
refugiados internos na Colômbia está ao redor de 3,4 milhões. Mas se
observarmos outro dado, fornecido pelo Codhes, que é a Consultoria de
Direitos Humanos, a cifra é maior, chega a 4,9 milhões de refugiados
internos. Independentemente de serem 3, 4 ou 5 milhões, a verdade é que
isso significa que na Colômbia estamos diante de uma das maiores crises
humanitárias do planeta.
As normas do Direito Internacional humanitário têm se perdido no meio
do fogo cruzado e recrudescimento do conflito armado. A Corte
Constitucional da Colômbia já apontou, numa decisão paradigmática, que,
para ser considerado refugiado interno, basta comprovar duas questões: a
migração e que esta seja forçada, isto é, por causa do conflito. O
Estado colombiano tem se colocado de forma negativa diante da decisão,
afirmando que, com esses critérios, o deslocamento virou um negócio e,
por isso, nega muitas vezes o status de refugiado interno e não entrega
recursos aos refugiados.
Correio da Cidadania: Como já reforçado aqui, é internacionalmente conhecido
que o Estado é o grande violador dos direitos humanos, mas como você vê
a questão do seqüestro? As Farcs, em vários comunicados, dizem que não
dariam prosseguimento às suas atividades de seqüestros, ao mesmo tempo
em que libertariam novos reféns.
Pietro Alarcón: Sim, as FARCs emitiram dois
comunicados do seu novo comandante, que têm criado bastante expectativa
no país e na comunidade internacional.
O seqüestro, a detenção de pessoas, e estamos falando de anos, em
alguns casos, de pessoas detidas na selva, é uma questão que não pode
ser posta de lado quando se fala de direitos humanos. Na Colômbia, a
deterioração da guerra, sua prolongação, originou métodos de extrema
crueldade.
Eu acho que, se a guerrilha, como ator político, armado, se posiciona
de frente ao país, tem que efetivar essa intenção. Ou seja, e nisso
concordo plenamente com outros colegas, ninguém em nome de um processo
revolucionário, de transformação de estruturas de um regime, pode
realizar atos degradantes, que coloquem em risco a população civil.
Tem de haver consciência disso e as FARC precisam efetivar o que foi
afirmado nos comunicados, no sentido de libertar todos os reféns que
tenham em seu poder. Eu, sinceramente, não considero que seja benéfico a
um processo de saída negociada ao conflito, de aclimatação a um cenário
de paz, prosseguir nesse caminho. Por isso temos de valorizar
positivamente a iniciativa. Acho que o debate na Colômbia, especialmente
se um dos interlocutores são as guerrilhas, é com idéias, propostas,
perspectivas que permitam oxigenar o país.
Entretanto, pelo outro lado, é preciso que exista também disposição
ao diálogo e facilitação a essa saída humanitária. Observe-se que as
FARC fizeram uma proposta concreta e adicionaram o pedido de permissão a
uma visita humanitária aos cárceres da Colômbia, com o objetivo de
constatar a situação dos presos políticos. Juan Manuel Santos responde
que na Colômbia não há presos políticos.
Ora, uma quantidade enorme de ONGs ligadas aos direitos humanos e o
próprio governo sabem que na Colômbia é claro que há presos políticos.
Pessoas detidas pela sua militância política e social. E não são duas ou
três. Dizer que não há presos políticos já começa a entorpecer o que
poderia ser uma excelente forma de começar um diálogo para a paz,
especialmente quando a Cruz Vermelha, o Escritório do Alto Comissariado
dos Direitos Humanos da ONU reconhecem a existência de pessoas detidas
com esse caráter.
Não há lógica em dizer que há conflito armado na Colômbia, mas não
reconhecer que há presos políticos como conseqüência do conflito.
O Estado tem que concentrar seus esforços em criar condições para a
paz e a libertação dos seqüestrados e, logo, atacar as causas da guerra.
A paz tem de ser uma política de Estado e estes espaços devem ser
aproveitados para afirmar tal política. O governo deve responder, por
exemplo, com uma ação efetiva para definitivamente frear o
paramilitarismo.
Correio da Cidadania: A que você se refere quando menciona atacar as causas da guerra?
Pietro Alarcón: Para isso, todos os setores armados
têm de parar com suas ações militares, que castigam a população civil e
os membros do movimento social organizado. Tem de haver um cessar fogo,
uma trégua ou algo desse tipo, porque está demonstrado, especialmente no
processo durante o governo de Andrés Pastrana, que é muito difícil que
se facilitem as negociações sob fogo cruzado. Ou seja, temos que começar
por efetivar o direito à vida e à segurança. Temos que reduzir ao
mínimo a violência como mecanismo de solução de conflitos. Que se
desmontem, de vez e por fim, os grupos paramilitares que tiram as vidas
de sindicalistas.
Não apontei antes, mas, na Colômbia, no ano de 2011, foram
assassinados 29 sindicalistas, segundo as estatísticas das Centrais
Unitárias de Trabalhadores da Colômbia. Oras, mais de 60%, diz a
entidade, dos sindicalistas assassinados no mundo são colombianos. Isso é
um escândalo, algo sem nome.
Continuemos reconstruindo as relações no campo, destinando recursos
para a infra-estrutura e a produção no campo, tendo um plano concreto de
ações de âmbito nacional; continuemos - mas, paralelamente, o Estado
também - comprometidos com a garantia e efetivação de liberdades
elementares como a de divergir, de manifestação do pensamento, o direito
à conformação dos partidos, com independência do seu posicionamento
perante o Estado, o que quer dizer liberdade de criticar, de aspirar, de
sonhar com algo diferente. Promovamos reformas sociais significativas.
Eu penso que privatizar a saúde do jeito que foi feito é um crime e um
atentado contra o direito à vida. Entre vida e saúde há uma
interligação, uma conexão própria pelo fato de ser um direito
fundamental. Violenta-se a proteção da confiança, a proibição de
retrocesso, com o plano de privatização também da educação.
A Colômbia, como qualquer Estado que cuide do seu processo
civilizatório, tem de pensar nessa geração que está a se formar no país.
Correio da Cidadania: Qual a sua avaliação sobre as FARCs
atualmente? Qual o significado político e social de sua atuação nos dias
de hoje?
Pietro Alarcón: Isso tem várias arestas.
Sociologicamente, a luta armada na Colômbia é um fator histórico e
político, faz parte da realidade e atravessa vários períodos. A leitura
científica do processo permite distinguir dois grandes períodos. O
primeiro podemos chamar de resistência e defesa camponesa; o segundo, de
combate militar pelas transformações econômico-sociais.
Agora há uma discussão importante, no seio dos mais diversos setores,
que não é apenas uma questão teórica ou acadêmica. O regime político
determinou a origem do conflito e esse movimento armado se desenvolveu
desde a década dos 50 como uma forma de luta, mas sem que existisse o
que os clássicos da política denominam situação revolucionária. Ou
seja, as guerrilhas praticam uma forma de luta, mas não é
necessariamente a ação armada uma via para a transformação social no
contexto atual da Colômbia. E isso é o que está em debate hoje no país.
Eu acho que temos que conduzir a insurgência à paz, e também temos de
trazer o Estado à paz. Isso somente será possível com um movimento
organizado a partir do social, ganhando consciência, unidade
programática, planejamento, para atingir uma nova realidade, com
democracia e justiça social, com tolerância, com pleno respeito às
liberdades públicas e aos direitos sociais. Daí, que se coloque a
questão de um diálogo de paz, no qual os setores armados têm de fazer
concessões mútuas.
O Estado não consegue vencer a insurgência, apesar dos golpes que
esta sofreu. A “segurança democrática” de Uribe, de acabar com as
guerrilhas, não teve o sucesso que esperava o governo. Tampouco as
guerrilhas têm condições de avançar a um novo nível de luta que elas
colocavam como algo possível ou real.
Nesse impasse, a Colômbia não pode continuar se sangrando. Não
podemos abandonar a luta pela paz no meu país. E Santos tem que
reconhecer que as FARC são um ator político, coisa que se recusa a
fazer. As FARC têm de cumprir seus comunicados e o Estado, se
comprometer com mudanças sociais e econômicas. A Colômbia merece essa
chance.
Correio da Cidadania: Nessa conjuntura que você expõe, quanto
à atual condição geopolítica da Colômbia, como encara a inserção do
país no continente latino-americano, em especial, no que diz respeito ao
entrosamento com os demais países da América Latina, vis-à-vis o seu
relacionamento com os EUA?
Pietro Alarcón: A Colômbia tem uma posição
geográfica que a torna altamente importante para os projetos de unidade,
de integração, de estabilização da região. Mas precisamente por isso é
também um Estado submetido a uma pressão histórica para que seu
território seja utilizado com objetivos de projeção político-militar.
Não podemos esquecer que a separação do Panamá, em 1903, foi um golpe
dos Estados Unidos com o objetivo de posteriormente financiar a
construção do Canal do Panamá.
Agora, no atual contexto, no qual conseguimos visualizar projetos de
unidade em curso, como a Unasul, o Mercosul, existe, me parece, uma
rejeição às intervenções militares e às saídas de força.
Simultaneamente, uma reclamação mais incisiva por um comércio
multilateral, em tempos em que o sistema econômico internacional
evidencia crises cada vez mais freqüentes. A tática dos Estados Unidos,
dos TLCs, constitui uma afirmação da sua condição de hegemonia e não
permite uma possibilidade de negociação com novas economias com as quais
seria possível, pelo menos conjunturalmente, obter vantagens
comparativas.
Sobre essas duas bases, a militar e a econômica, afirma-se a
estrutura hegemônica de poder, que menciona Pinheiro Guimarães em seus 500 Anos de Periferia.
Os Estados da América Latina tem que puxar a Colômbia para a paz, para a
condição que lhe permita a manutenção do seu território como cenário de
paz, interna e externa.
Esse entrosamento ao qual você se refere é o entrosamento que tem de
ser conquistado, mas para o qual a política externa colombiana não
demonstra afinidade. Observa-se que a Colômbia votou nas Nações Unidas
contra a consolidação do Estado Palestino, votou a favor da agressão à
Líbia e pode votar, e é previsível, a favor de uma intervenção militar
na Síria. Esse não pode ser o caminho para a paz e a segurança da ordem
internacional.
A Colômbia, com TLC assinado, incrementa a condição de hegemonia
econômica, quando do que se trata é de eliminar as dependências para
poder caminhar economicamente sobre bases sólidas, autonomia monetária,
de exploração de recursos naturais com eficiência e equilíbrio, em
termos estratégicos.
Aprovando o TLC com Estados Unidos, a Colômbia não somente ocasiona
um problema para os médios e pequenos produtores do país, que vêem seus
produtos sendo jogados a uma concorrência desleal, como também restringe
a possibilidade de um comércio subcontinental em condições mais
favoráveis aos projetos de crescimento com redistribuição de riqueza.
Outro aspecto é o financeiro. Se a América Latina resiste a ser vítima da ciranda financeira do binômio dólar-euro,
enquanto a Colômbia se atrela em termos financeiros às condições desse
binômio, cria-se, obviamente, uma dificuldade para a possibilidade de
negociar empréstimos com outros Estados, como os asiáticos, por exemplo.
Veja-se que Argentina e Equador, como lembrava um autor dos Estados
Unidos numa palestra recente, que não têm acesso a esse binômio,
encontraram um respiro em empréstimos com a China. A China emprestou, em
2010, mais dinheiro para a América Latina que o FMI e o BID juntos.
Isso é sintomático.
O que pretendo dizer é que existem chances de unidade, a comunidade
internacional tem que gerar uma diplomacia ativa e propositiva com
relação à Colômbia, colocando o tema da paz, da unidade e da quebra de
uma histórica dependência econômica com relação aos Estados dominantes
dessa tradicional arquitetura de poder da sociedade internacional.
Correio da Cidadania: Em função dos fatos mais recentes, como
encara a cobertura que a Colômbia tem recebido da mídia internamente ao
país, no Brasil e também em outros países da América Latina?
Pietro Alarcón: A informação, e não somente sobre a
Colômbia, mas, em geral, sobre os processos do restante da América
Latina, no Brasil tradicionalmente tem sido muito precária.
Por exemplo, no caso da Colômbia, pouco se aborda o tema da crise
humanitária, do número significativo de refugiados colombianos no mundo.
Tampouco há maior cobertura sobre o movimento político ou social.
Dá-se muita ênfase ao tema FARC, que é uma parte da situação, é um ator
armado, determinante, é claro, mas o movimento social colombiano é muito
mais vasto.
O jornal colombiano El Tiempo é propriedade da família do presidente e, logicamente, tem um peso enorme na informação difundida no conjunto do continente.
Correio da Cidadania: E a população colombiana, como percebe hoje o país em que vive?
Pietro Alarcón: Eu responderia à pergunta em várias
dimensões. A primeira é que, depois de uma fase na qual parecia perdida a
capacidade de assombro do povo colombiano, ou seja, de reagir diante da
cotidianidade da guerra, as pessoas ganharam em sentido crítico, tanto
diante dos atores armados, quanto na compreensão de seu papel no
contexto. Logicamente, esse tipo de análise tem de considerar elementos
como a maneira que os meios de comunicação retratam a situação do país.
Existe uma camada de colombianos que se convenceu de que a saída militar
era uma alternativa, com fundamento nas bases militares e em um
espetáculo midiático de muita efetividade.
Existe outra camada beneficiada por programas assistenciais, que no
começo dizia ter votado nos candidatos da oficialidade e que serviram de
apoio social ao chamado uribismo - a corrente política de
maior ligação aos interesses externos. Nessa corrente está o próprio
Juan Manuel Santos que, como se sabe, foi ministro de Defesa de Uribe.
Contudo, amplos segmentos da opinião pública sabem que a guerra tem
somente um horizonte: mais guerra. Esses segmentos constituem a base
social da esperança na paz na Colômbia, por ser um segmento atuante, que
opina, se mobiliza.
O movimento social colombiano é de uma diversidade rara no mundo,
embora exista um problema de ausência de garantias fundamentais para a
ação política. Por exemplo, aponto um dado que também considero
significativo. Na Colômbia, hoje, confluem vários esforços, além do Pólo
Democrático Alternativo, que é a primeira força de oposição. Há uma
experiência muito enriquecedora de movimentos indígenas, como a Minga. Outra experiência é a dos Colombianos e Colombianas Pela Paz.
Existe um processo recente que nasce, sob o título de Marcha Patriótica. A
idéia é que todos estes movimentos possam chegar a uma agenda comum, de
convergência para uma ampla mobilização pela paz democrática e a
justiça social, valores e fins de uma ordem justa.
Correio da Cidadania: O que pensa do fato de a Colômbia não ter convidado Cuba para a Cúpula das Américas, a reunião de abril da OEA?
Pietro Alarcón: Para mim o fato não era esperado,
pelo aspecto tático em matéria diplomática. Faço uma análise desde a
perspectiva do próprio governo colombiano. Não faz ou não fazia parte da
filosofia do governo de Santos ter Cuba longe. O de Santos é um governo
que faz questão de se mostrar habilidoso em termos de condução
diplomática, especialmente diante de processos políticos diferenciados. É
um gesto deselegante, além de um retrocesso para a construção de laços
de diálogo e mais um retrocesso da política externa do governo
colombiano.
No plano internacional, a Colômbia fica muito mal porque, enquanto a
ONU, todos os anos, se pronuncia contra o bloqueio e somente há dois
votos no seu seio que ainda o justificam, o governo de Santos deixa o
país na contramão da história, que já não suporta mais esse tipo de
atitudes no gerenciamento das relações internacionais.
Qualquer analista sério fica com a percepção de que a Colômbia é um
Estado associado aos Estados Unidos, em termos políticos, jurídicos e
diplomáticos. Logicamente, como estudioso do Direito e das relações
internacionais, devemos outorgar a isso um significado no cenário de
contradições do continente, das pressões e das ingerências, da
fragmentação e da cooptação como táticas da potência que hoje tem uma
duvidosa hegemonia.
Mas, como cidadão e como pessoa, acho uma atitude, no mínimo, ridícula para esta época, com todo respeito.
Correio da Cidadania: Quais os países da América Latina você
enxerga como posicionados, atualmente, de forma mais progressista no
espectro político?
Pietro Alarcón: Eu entendo que temos a obrigação de
ser muito objetivos quanto às mudanças do sistema internacional, da
estrutura hegemônica de poder, das mutações aceleradas do sistema
econômico, do esgotamento de fórmulas de reprodução do capital, mas
também de como este se recompõe, tanto econômica como militarmente.
Nesse cenário, considero de extremo valor a posição que possa ter o
Brasil como baluarte de um debate sobre o conteúdo concreto da unidade.
Trata-se de um país de diplomacia diferenciada, analítica e com maior
alcance, do ponto de vista histórico e geral, e do meu ponto de vista,
que as diplomacias de outros Estados do continente.
Nesse campo eu acho que tem de prosseguir o debate que conduza, na
prática, à priorização de alianças estratégicas no continente, com
fundamento no papel que cada Estado pode desempenhar a partir de um
compromisso com a transformação das estruturas econômicas e com uma
dimensão da democracia muito mais avançada, que supere a mera
participação no processo eleitoral e fortaleça a participação cidadã.
Assim, as possibilidades que temos de construir cidadania social, de
efetivar direitos, depende da vontade de gerar mudanças com a
participação popular. Isso é o que define o avanço ou retrocesso dos
governos.
Há algo que gostaria de apontar. Observa-se como na América Latina há
um fenômeno bem interessante, que tem sido analisado muito mais por
juristas europeus que latino-americanos, o chamado Novo
Constitucionalismo. Há novas constituições em países como Venezuela,
Equador e Bolívia. Novas regras do jogo para os diversos atores.
Eu sou dos que acreditam que tais documentos contribuem, e muito,
porque são ferramentas para a ação política, social, ferramentas de
inclusão, de participação. Na Bolívia a Constituição tem um papel
fundamental para o reconhecimento da pluralidade étnica.
Eu não estou expondo que novas Constituições resolvam os problemas. O
que expresso é que todos estes movimentos e processos são desconhecidos
pela comunidade jurídica e política e que tais documentos são ponto de
confluência de um poder constituinte renovado e ponto de início de novos
processos. Isso ainda não tem sido analisado suficientemente.
Ainda temos de nos aproximar muito mais para poder gerar espaços de
coordenação de atividades em vários campos do conhecimento, da ciência,
da cultura, da economia e da política, e sempre em perspectiva
transformadora, questionando e atacando as desigualdades, a concentração
do poder econômico, a precariedade da cidadania e da democracia.
Correio da Cidadania: E a Venezuela? A Venezuela foi o país
que levou adiante o modelo político mais alternativo e combativo na
região, ainda que prenhe de polêmicas, limites e contradições. Qual o
futuro desse país, não só no que diz respeito às possibilidades internas
de sustentação política da alternativa bolivariana, mas quanto às
perspectivas de prosseguir como modelo de inspiração para as demais
nações latino-americanas?
Pietro Alarcón: Acredito e sempre fiz questão de
destacar que é um processo singular. É o processo da Venezuela, que tem
características precisas, especialmente porque nesse país houve, e
esperamos que isso se mantenha, uma correlação de forças favorável aos
trabalhadores, que gerou a contundente vitória eleitoral de Hugo Chávez
no seu primeiro mandato. Essa peculiaridade, com o esgotamento das
forças que tradicionalmente ocupavam o Estado, não tem se repetido em
outros processos.
Manter essa correlação de forças implica aprofundar a democracia
participativa e empreender um plano de efetivação de direitos sociais,
inédito na Venezuela e acredito que na América do Sul em geral.
Provavelmente, há muitos erros, como em todo processo humano. Um
projeto político transformador não está isento de erros, e ele se
fortalece quando autocriticamente se corrige. Eu vejo, por exemplo, à
distância, a necessidade de um processo mais afirmativo da democracia,
mais inspirado na base popular, mais apoiado nos setores populares.
Reitero que não falo de eleições, mas de um processo no qual o povo
assuma um papel protagônico. Um processo além da questão eleitoral.
Agora, deve se reafirmar, e acho que qualquer análise apontaria tal
direção, que o processo se mantém como patriótico, progressista,
anti-monopolista e de afirmação da sua soberania. Isso é, por enquanto, o
essencial.
Correio da Cidadania: Finalmente, o que significa lutar pelos direitos humanos na Colômbia de hoje?
Pietro Alarcón: Na Colômbia, e acho que em qualquer
parte do planeta, lutar pelos direitos humanos é dar sentido à vida, é
dar testemunho de que estamos vivos. De outro jeito, as coisas deixam de
fazer sentido. É denunciar a agressão, a discriminação, mas é também
ser propositivo e profundamente ético e responsável no nosso compromisso
como seres humanos.
Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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