quarta-feira, 25 de junho de 2008

Ameaça à segurança nacional?



“A dissolução do MST significaria colocá-lo na clandestinidade e declará-lo um movimento ilegal, mesmo que ele não tenha uma legalidade jurídica”, afirma o professor Aldo Fornazieri, doutor em Ciência Política e Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), em entrevista à CartaCapital. A declaração do cientista político diz respeito ao relatório aprovado pelo Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, no final de 2007, pedindo a “dissolução” do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.

O relatório é resultado da investigação das ações do MST realizada pelos promotores Luciano de Faria Brasil e Fábio Roque Sbardelotto. No documento, o MST é considerado ameaça à sociedade e à própria segurança nacional. Chamado de “movimento político-militar”, o golpe de 1964 teria “pacificado o campo”, de acordo com o relatório.

O documento despertou a atenção depois que serviu de base para a apresentação de uma ação civil pública, por promotores do Ministério Público do RS, pedindo a desocupação de dois acampamentos do MST, próximos à Fazenda Coqueiros, na região norte do estado, na terça-feira (17/06). A ação resultou no despejo de centenas de famílias de trabalhadores sem-terra pela Brigada Militar do RS. Em nota, o MST classificou a decisão do Ministério Público do Rio Grande do Sul como uma “afronta” e “grave violação” dos direitos constitucionais.

“Nem na ditadura militar, proibiu-se que um movimento social negociasse com o poder público em torno de reivindicações. Nunca vi isso”, declarou Fornazieri diante da idéia do Ministério Público do RS de proibir qualquer órgão do Estado a negociar com o movimento. Segue abaixo a entrevista que o professor concedeu à CartaCapital.

CartaCapital: O Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul aprovou relatório que pede a “dissolução” do MST. Como o senhor caracteriza essa ação?
Aldo Fornazieri: Isso é uma deliberação equivocada, pois o MST não existe juridicamente. É um movimento social legítimo como qualquer outro e se articula em torno de uma questão histórica pendente na sociedade brasileira que é a questão da reforma agrária. Ao inibir sua existência, o Conselho Superior comete um atentado à Constituição, na medida em que essa garante a liberdade de organização e expressão, desde que não haja agressão ao Estado Democrático de Direito. O histórico de criminalização dos movimentos sociais no Brasil vinha sendo superado nas últimas décadas do século XX e no início do XXI.

CC: O que indica essa deliberação?
AF: Indica a retomada desse processo. A dissolução do MST significaria, mesmo que ele não tenha uma legalidade jurídica, colocá-lo na clandestinidade e declará-lo um movimento ilegal. Significa adotar uma atitude de exclusão que só leva ao radicalismo. Isso é perigoso para a democracia brasileira. Ela deve comportar uma pluralidade de movimentos sociais, os quais, pela sua própria natureza, não precisam ser legalizados. Uma democracia sólida não deve temer os movimentos sociais. A essência da discussão é garantir a legalidade democrática contra eventuais violações por parte do MST e, ao mesmo tempo, garantir as liberdades constitucionais no sentido de conceber que os movimentos sociais são legítimos e não podem ser clandestinizados.

CC: O relatório diz que o MST não constitui um movimento social, mas um movimento político.
AF: É um movimento social, mas, sem dúvida nenhuma, tem um grau de ideologização muito grande. Todo movimento social tem contornos políticos, o que não anula o fato da luta em torno de uma questão social específica que, no caso, é o problema da terra no Brasil, a questão da reforma agrária.

CC: O senhor se lembra de algum tipo de medida parecida com essa desde o fim da ditadura?
AF: Francamente, eu não me lembro de uma iniciativa deste nível para dissolver um movimento social ou o próprio MST.

CC: Esse relatório já serviu de base para oito ações judiciais contra sem-terra, entre elas a proibição de marchas. Isso é legítimo?
AF: Isso é um atentado evidente à Constituição brasileira. Marchas e manifestações são legítimas. Não se pode inibir a liberdade de organização, manifestação e pressão desde que não haja um atentado contra o Estado. Reivindicar terras e reforma agrária é um ato político permitido.

CC: A autorização do despejo e o deslocamento dos acampamentos também estão entre essas ações.
AF: Se o acampamento está situado numa propriedade privada ou numa área pública é legal. Não dá para confundir a ação legal da Justiça com essa deliberação equivocada. O fato de um juiz determinar a desocupação de um acampamento estabelecido numa propriedade privada produtiva é absolutamente legal. Porém, de um fato ilegal do movimento não se pode derivar a tentativa da sua criminalização. Esse é o equívoco desse processo todo.

CC: De acordo com matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo, do dia 24, a idéia do Ministério Público é proibir qualquer órgão do Estado de negociar contratos e convênios, com o movimento.
AF: O Ministério Público não tem esse poder. É legítimo que os movimentos sociais negociem com o poder público. Na democracia brasileira ou de qualquer país, é legítimo que os movimentos e o poder público sentem para negociar acordos, contratos ou convênios. Se isso ocorrer nos parâmetros legais, não há problema. O atendimento de determinadas reivindicações dos movimentos existia até na época da ditadura militar. Nunca vi isso.

CC: No documento, o MST é considerado um movimento anti-capitalista e esquerdista. Isso seria perseguição ideológica?
AF: No livro “Capitalismo e Liberdade” de Milton Friedman, um dos maiores liberais da história política mundial, ele diz que para a democracia e o liberalismo serem efetivamente democráticos e liberais, devem permitir a existência de movimentos que preguem o fim do capitalismo. Pode-se considerar essa postulação ideológica equivocada, mas se for dada nos parâmetros da existência das leis, não há problema, embora do meu ponto de vista possa ser equivocado.

CC: No relatório, o golpe de 1964 é chamado de “movimento poíltico-militar”. O que o senhor acha disso?
AF: É direito se fazer essa designação, porém, do ponto de vista da historiografia política do País, há um consenso em classificar o que aconteceu em 1964 de golpe militar. Eles cometem o mesmo equívoco que atribuem ao MST, ou seja, o de assumir uma posição ideológica. O golpe foi uma clara violação da Constituição vigente em 1964. O Conselho resvala para um perigoso posicionamento ideológico, seja porque está referendando o que aconteceu em 64, seja porque agora fere a Constituição, visando combater o MST.

CC: De acordo com o relatório, as análises feitas pelo “sistema de inteligência”, do Ministério Público do RS, permitem supor que o MST esteja em “plena fase executiva de um arrojado plano estratégico” com o suporte de verbas públicas do governo federal, recursos de fontes internacionais e até das Farc. O senhor concorda que exista esse “plano arrojado”?
AF: Até agora nenhum órgão de inteligência do País evidenciou a tentativa de controle dos territórios. Se de fato estivesse fazendo isso ou se articulando com as Farc, a lei deveria ser acionada para coibir eventuais atos de violência política ou ideológica, mantendo sempre os parâmetros da lei existente. De qualquer forma, os órgãos de inteligência têm que ficar atento a isso.

CC: Como o governo gaúcho tem tratado o MST?
AF: Ao que tudo indica, há uma forte ação na tentativa de contenção do movimento no RS, pela polícia militar. A coisa descamba para o confronto. Há um nível de confrontação bastante significativo, seja entre o MST e determinados ruralistas ou entre o MST e a própria polícia militar.


(Crédito da foto da capa: Luciney Martins)