domingo, 25 de maio de 2014

Algumas ideias sobre o Capital de Piketty

harveyphoto copyEsquerda - [David Harvey] Thomas Piketty escreveu um livro chamado Capital que
causou grande celeuma. Ele defende a taxação progressiva e a tributação
da riqueza global como único caminho para deter a tendência à criação
de uma forma “patrimonial” de capitalismo, marcada pelo que chama de uma
desigualdade “apavorante” de riqueza e rendimento.

Também
documenta com detalhes excruciantes, e difíceis de rebater, como a
desigualdade social de ambos, riqueza e rendimento, evoluíram nos
últimos dois séculos, com ênfase particular no papel da riqueza. Ele
aniquila a visão, amplamente aceite, de que o capitalismo de livre
mercado distribui riqueza e é o grande baluarte para a defesa das
liberdades individuais. Piketty demonstra que o capitalismo de livre
mercado, na ausência de uma grande intervenção redistributiva por parte
do Estado, produz oligarquias antidemocráticas. Essa demonstração deu
base à indignação liberal e levou o Wall Street Journal à apoplexia.


O livro tem sido frequentemente apresentado como substituto para o
século 21 do trabalho de Marx sobre o século 19, que tem o mesmo título.
Piketty nega que fosse essa a sua intenção, na verdade – o que parece
certo, uma vez que seu livro não é, de modo algum, sobre o capital. Ele
não nos conta por que razão ocorreu a catástrofe de 2008, e por que está
a demorar tanto para tanta gente se levantar, sob o fardo do desemprego
prolongado e da execução da hipoteca de milhões de casas. Ele não nos
ajuda a entender por que o crescimento é tão medíocre hoje nos EUA, em
oposição à China, e por que a Europa está travada sob uma política de
austeridade e uma economia de estagnação.


O que Piketty mostra estatisticamente (e estamos em dívida com ele e
seus colegas por isso) é que o capital tendeu, através da história, a
produzir níveis cada vez maiores de desigualdade. Isso, para muitos de
nós, não é novidade. Além disso, é exatamente a conclusão teórica de
Marx, no primeiro volume da sua versão do Capital. Piketty fracassa em
observar isso, o que não é surpresa, já que sempre clamou, diante das
acusações dos média de direita de que é um marxista disfarçado, que não
leu O Capital de Marx.


Piketty reúne uma grande quantidade de dados para sustentar a sua
argumentação. A sua descrição das diferenças entre rendimento e riqueza é
persuasiva e útil. E faz uma defesa cuidadosa da tributação sobre as
heranças, do imposto progressivo e de um imposto sobre a riqueza global
como possíveis (embora que certamente politicamente inviáveis) antídotos
contra o avanço da concentração de riqueza e poder.


Mas, por que razão ocorre essa tendência para o crescimento da
desigualdade? A partir dos seus dados (temperados com ótimas alusões
literárias a Jane Austen e Balzac), ele deriva uma lei matemática para
explicar o que acontece: o contínuo aumento da acumulação de riqueza por
parte do famoso 1% (termo popularizado graças, claro, ao movimento
Occupy) é devido ao simples facto de que a taxa de retorno sobre o
capital (r) sempre excede a taxa de crescimento do rendimento (g). Isso,
diz Piketty, é e sempre foi “a contradição central” do capital.


Mas esse tipo de regularidade estatística dificilmente alicerça uma
explicação adequada, quanto mais uma lei. Então, que forças produzem e
sustentam tal contradição? Piketty não diz. A lei é a lei e isso é tudo.
Marx obviamente teria atribuído a existência de tal lei ao
desequilíbrio de poder entre capital e trabalho. E essa explicação ainda
é válida. A queda constante da participação do trabalho no rendimento
nacional, desde os anos 1970, é decorrente do declínio do poder político
e económico, à medida que o capital mobilizava tecnologia, desemprego,
deslocalização de empresas e políticas anti-laborais (como as de
Margaret Thatcher e Ronald Reagan) para destruir qualquer oposição.


Como Alan Budd, um conselheiro económico de Margaret Thatcher,
confessou num momento de descuido: as políticas anti-inflação dos anos
1980 mostraram-se “uma maneira muito boa de aumentar o desemprego, e
aumentar o desemprego era um modo extremamente desejável para reduzir a
força das classes trabalhadoras… o que foi construído, em termos
marxistas, como uma crise do capitalismo que recriava um exército de mão
de obra de reserva, possibilitou que os capitalistas lucrassem mais do
que nunca.” A disparidade entre a remuneração média dos trabalhadores e
dos executivos-chefes era de cerca de trinta para um em 1970. Hoje está
bem acima de trezentos para um e, no caso do MacDonalds, de cerca de
1200 para um.


Mas no segundo volume do Capital de Marx (que Piketty também
não leu, como alegremente declara) Marx apontou que a tendência do
capital de rebaixar os salários iria, em algum momento, restringir a
capacidade do mercado de absorver os produtos do capital. Henry Ford
reconheceu esse dilema há muito tempo, quando determinou o salário de
cinco dólares para o dia de oito horas dos trabalhadores – para aumentar
a procura dos consumidores, disse.


Muitos pensavam que a falta de procura efetiva estava na base da
Grande Depressão da década de 1930. Isso inspirou políticas
expansionistas keynesianas depois da Segunda Guerra Mundial e resultou
em alguma redução das desigualdades de rendimento (nem tanto da
riqueza), no meio de uma forte procura que levou ao crescimento. Mas
essa solução apoiava-se no relativo empoderamento do trabalho e na
construção do “estado social” (termo de Piketty) financiado pela taxação
progressiva. “Tudo dito”, escreve ele, “durante o período de 1932-1980,
durante cerca de meio século, o imposto de rendimento federal mais
alto, nos EUA, era em média 81%.” E isso de modo algum prejudicou o
crescimento (outra parte das evidências de Piketty, que rebate os
argumentos da direita).


Ali pelo final dos anos 1960, ficou claro para vários capitalistas
que eles precisavam fazer alguma coisa a respeito do excessivo poder do
trabalho. Por isso, Keynes foi excluído do panteão dos economistas
respeitáveis, houve uma deslocação para o lado da oferta e para o
pensamento de Milton Friedman, e teve início uma cruzada para
estabilizar, se não para reduzir a tributação, desconstruir o Estado
social e disciplinar as forças do trabalho. Depois de 1980, houve uma
queda nas taxas mais altas de imposto e os ganhos do capital – uma
grande fonte de rendimento dos ultra-ricos – passaram a ser tributados
por taxas muito menores nos EUA, aumentando enormemente o fluxo de
capital do 1% do topo da pirâmide.


Contudo, o impacto no crescimento era desprezível, mostra Piketty.
Tal “efeito cascata” de benefícios dos ricos no restante da população
(outra crença favorita da direita) não funcionou. Nada disso era ditado
por leis matemáticas. Tudo era política.


Mas então a roda deu uma volta completa, e a pergunta mais importante
tornou-se: e onde está a procura? Piketty ignora essa questão. Os anos
1990 encobriram essa resposta com vasta expansão do crédito, inclusive
estendendo o financiamento hipotecário aos mercados subprime.
Mas o resultado foi uma bolha de ativos fadada a estourar, como
aconteceu em 2007-2008, levando consigo o banco de investimento Lehman
Brothers, juntamente com o sistema de crédito. Entretanto, as taxas de
lucro e a consequente concentração de riqueza privada recuperaram muito
rapidamente depois de 2009, enquanto todos os outros continuavam muito
mal. As taxas de lucro das empresas estão agora tão altas quanto sempre
estiveram nos EUA. As empresas estão sentadas sobre grande quantidade de
dinheiro e recusam-se a gastá-lo, porque as condições do mercado não
estão robustas.


A formulação da lei matemática de Piketty camufla, mais do que revela
sobre as políticas de classe que estão em jogo. Como notou Warren
Buffett, “claro que há luta de classes, e é a minha classe, a dos ricos,
que está a lutar, e estamos a vencer.” Uma medida-chave da sua vitória
são as crescentes disparidades de riqueza e rendimento do 1% do topo em
relação a todo o resto da população.


Há, contudo, uma dificuldade central no argumento de Piketty. Ele
repousa sobre uma definição equivocada de capital. Capital é um
processo, não uma coisa. É um processo de circulação no qual o dinheiro é
usado para fazer mais dinheiro, frequentemente – mas não exclusivamente
– por meio da exploração da força de trabalho. Piketty define capital
como o stock de todos os ativos em mãos de particulares,
empresas e governos que podem ser negociados no mercado – não importa se
estão a ser usados ou não. Isso inclui terra, imóveis e direito de
propriedade intelectual, assim como coleção de arte e de joias. Como
determinar o valor de todas essas coisas é um problema técnico difícil,
sem solução consensual. Para calcular uma taxa de retorno, r,
significativa, temos de ter uma forma de avaliar o capital inicial. Não
há como avaliá-lo independentemente do valor dos bens e serviços usados
para produzi-lo, ou por quanto ele pode ser vendido no mercado. Todo o
pensamento económico neoclássico (base do pensamento de Piketty) está
fundado numa tautologia. A taxa de retorno do capital depende
essencialmente da taxa de crescimento, porque o capital se valoriza na
base do que produz e não pelo que utilizou para a sua produção. O seu
valor é fortemente influenciado por condições especulativas, e pode ser
seriamente distorcido pela famosa “exuberância irracional” que Greenspan
supôs detetar como característica dos mercados imobiliário e de ações.
Se subtrairmos habitação e imóveis – para não falar do valor das
coleções de arte dos hedge funders– a partir da
definição de capital (e a razão para a sua inclusão é bastante débil),
então a explicação de Piketty para o aumento das desigualdades de
riqueza e rendimento desabaria, embora a sua descrição do estado das
desigualdades passadas e presentes ainda ficassem de pé.


Dinheiro, terra, imóveis, fábricas e equipamentos que não estão a ser
usados produtivamente não são capital. Se é alta a taxa de retorno
sobre o capital que está a ser usado é porque uma parte do capital foi
retirado de circulação e, de facto, está em greve. Restringir a oferta
de capital para novos investimentos (fenómeno que estamos a testemunhar
agora) garante uma alta taxa de retorno sobre o capital que está em
circulação. A criação dessa escassez artificial não é só o que fazem as
companhias de petróleo, para garantir a sua elevada taxa de lucro: é o
que todo o capital faz quando tem oportunidade. É o que sustenta a
tendência de a taxa de retorno sobre o capital (não importa como é
definido ou medido) exceder sempre a taxa de crescimento do rendimento.
Esta é a forma como o capital garante a sua própria reprodução, não
importa quão desconfortáveis sejam as consequências para o resto de nós.
E é assim que a classe capitalista vive.


Há muitas outras coisas valiosas nos dados coletados por Piketty.
Mas, a sua explicação de porque as tendências à desigualdade e à
oligarquia surgem está seriamente comprometida. As suas propostas de
solução para a desigualdade são ingénuas, se não utópicas. E ele
certamente não produziu um modelo de trabalho para o capital do século
21. Para isso, ainda precisamos de Marx ou de seus equivalentes para os
dias atuais.





Artigo de David Harvey, disponível em davidharvey.org.


Tradução de Inês Castilho para outraspalavras.net, revista por Carlos Santos para esquerda.net

Por um transporte coletivo humanizado

Por um transporte coletivo humanizado

 
 
 Frei Marcos Sassatelli
  







alt





Nestes dias, assistimos a uma verdadeira guerra no transporte
coletivo da Grande Goiânia. Só para se ter uma ideia da gravidade da
situação, foram depredados - conforme noticiou a imprensa - 104 ônibus
(20 só num dia).





Antes da Rede Metropolitana de Transporte Coletivo (RMTC), da
Companhia Metropolitana do Transporte Coletivo (CMCT) e das empresas
concessionárias, a responsabilidade por essa situação é do Poder
Público. É ele que tem a obrigação de cuidar, direta ou indiretamente,
do transporte coletivo para que seja um transporte humanizado e de
qualidade. O que realmente falta é a vontade política de resolver o
problema. Os motoristas e os trabalhadores, usuários do transporte
coletivo, merecem respeito. Chega de tanto descaso!





Por que será que o Poder Público tem sempre tanta dificuldade para
dialogar e negociar com o povo? Por que será que esse mesmo Poder
Público nunca quer atender (ou, pelo menos, demora demais para atender)
as justas reivindicações dos trabalhadores? O “bem viver” do povo não
deveria ser a prioridade das prioridades da ação política?





Infelizmente, na nossa sociedade capitalista neoliberal - que é
estruturalmente iníqua, iniusta e desumana - o que prevalece não é o
“bem viver” do povo, mas o lucro a qualquer preço das grandes empresas.
Os trabalhadores, que já são “legalmente” explorados em seu trabalho,
depois de uma jornada exaustiva e desgastante, são obrigados - mesmo
cansados - a enfrentar um transporte coletivo humilhante, deprimente e
insuportável.





Embora ninguém seja a favor da violência, dá para entender a revolta
do povo. A estrutura psicológica da pessoa dos trabalhadores tem um
limite. Ninguém aguenta mais! Antes que aconteçam as depredações ou a
queima de ônibus, as autoridades não deveriam dialogar com os
trabalhadores? Ninguém sabe até onde pode chegar o desespero.





O comportamento do Poder Público revela uma total desconsideração
para com os trabalhadores, motoristas, usuários do transporte coletivo e
o povo em geral.





Quando o PT ainda era Partido dos Trabalhadores - hoje não é mais
(mudou de lado) -, sempre “gritava” em defesa dos direitos dos
trabalhadores. Hoje, ele “grita” em defesa do lucro das grandes empresas
e a favor do agro-hidro negócio. Que traição vergonhosa!





Os políticos e os governantes - durante o exercício do mandato -
deveriam ser obrigados a usar o transporte coletivo. Tenho certeza que a
situação mudaria em pouco tempo. Atualmente, como não precisam do
transporte coletivo, eles não têm nenhuma pressa para resolver a questão
das paralizações e das depredações de terminais e de ônibus. O povo só
interessa enquanto é útil para o capital financeiro. Não o sendo mais,
pode ser descartado.





A desculpa do Poder Público para não atender as reivindicações dos
trabalhadores é sempre a mesma: a falta de verbas. Ora, para gastos
mirabolantes com a copa do mundo e outras obras faraônicas nunca faltam
verbas. É só uma questão de modelo de sociedade e de prioridade
política. As verbas existem.





O Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) deveria exigir que as
autoridades competentes resolvam, o mais rápido possível, a situação
caótica do transporte coletivo. Já passou da hora!





O Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários do Estado de
Goiás (Sindittransporte) e o Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores
no Transporte Coletivo Urbano de Goiânia e Região Metropolitana
(Sindicoletivo), mesmo tendo divergências quanto à maneira de conduzir o
processo, deveriam ficar unidos para garantir os direitos dos
trabalhadores.





É bom que os trabalhadores fiquem de alerta. Quando a diretoria de um
Sindicato negocia com o Poder Público ou com os empresários e faz
acordos sem realizar a assembleia da categoria, ouvindo seu parecer, é
sinal evidente que o Sindicato se tornou “pelego”. Não representa mais
os trabalhadores, mas outros interesses escusos. Assim sendo, a
assembleia dos trabalhadores deve desautorizar a diretoria do Sindicato e
tomar as devidas providências. Ela é soberana.





Mesmo com todas as dificuldades e contradições, os trabalhadores não
podem cair na armadilha dos detentores do poder econômico, que é dividir
os trabalhadores para enfraquecer a luta. No caso em questão, eles
querem colocar os trabalhadores usuários do transporte coletivo contra
os motoristas, que também são trabalhadores.





As reivindicações dos motoristas do transporte coletivo por melhores
salários e as lutas do povo por um transporte coletivo digno são justas e
merecem todo nosso apoio.





Termino com as sábias e contundentes palavras do nosso irmão, o papa
Francisco, que nos fazem refletir e são uma luz para nossa vida.





“Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para
assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a
uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Esta economia mata.
Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não
seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é
exclusão. Não se pode tolerar mais o fato de se lançar comida no lixo,
quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje,
tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o
poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes
massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho,
sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si
mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora.
Assim teve início a cultura do ‘descartável’, que aliás chega a ser
promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e
opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria
raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não
são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” (A alegria do Evangelho - EG,
53).





Frei Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia
(USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP), é professor aposentado de
Filosofia da UFG. E-mail:
mpsassatelli(0)uol.com.br

 


A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania