sexta-feira, 20 de julho de 2012

A greve do ensino público e as engenharias

Engenheiros deslocados da realidade de seu país, avessos às lutas dos trabalhadores e preocupados com seu próprio umbigo. Esses são os profissionais que queremos formar nas universidades públicas brasileiras?

Por Felipe Addor*, para o Canal Ibase

Afinal, em que mundo vivem os cursos de engenharia das universidades públicas brasileiras?
Na minha primeira greve como professor, tive a oportunidade de ver de outra perspectiva o mundo em que vivemos no ensino de engenharia em uma universidade pública. O que se vê é um retrato da formação que nossos estudantes recebem.
Após alguns dias acompanhando o vigor do movimento, resolvo aderir à greve. A essa altura, mais de 40 universidades públicas já estavam em greve. Reuniões, assembleias, mobilizações, passeatas, movimentação virtual; todos na luta por uma universidade pública, gratuita e de qualidade. Enquanto isso, no Reino da Tecnologia, a movimentação é quase nula. Ninguém sabe, ninguém fala, ninguém vê. Estacionamentos lotados, salas de aula cheias, restaurantes com as tradicionais filas.
Afinal, em que mundo vivem os cursos de engenharia das universidades públicas brasileiras? (Foto: Guilerme Souza/Flickr)
Resolvi fazer uma última aula de debate sobre a greve. Nas trocas de ideias e argumentos, três questões subjetivas se destacam. Primeiro, a completa alienação sobre a situação. Para eles, que viviam naquela redoma tecnológica, nada estava ocorrendo; ou, pelo menos, nada que lhes dissesse respeito. “Professor, essa greve não vai dar em nada, quase ninguém está participando, só tem meia dúzia de professores”. Independente da posição dos professores das engenharias, é impressionante a capacidade de isolar seus alunos do mundo externo, do mundo real.
Segundo, a aversão às lutas dos trabalhadores. Embora essa palavra não tivesse saído em nenhum momento da boca dos estudantes, a clara impressão é que, na cabeça deles, grevistas são baderneiros, comunistas, preguiçosos; isto é, gente que não está a fim de trabalhar e que busca, por meio da greve, conquistar ainda melhores salários, mordomias; “esses professores querem que não haja avaliação para que subam na carreira e pedem melhores salários” (numa clara interpretação distorcida da proposta de novo formato de avaliação levada ao governo pelo Andes). Ou seja, estamos formando profissionais com a visão do patrão, do capital, em oposição ao trabalhador.
Terceiro, e mais pesado, é o enorme individualismo presente. Na verdade, é um individualismo burro, pois é imediatista. Preocupados com seus estágios, suas promessas de efetivação, suas possíveis oportunidades de concurso, suas viagens de férias, seus intercâmbios para a Europa, os alunos sequer consideram como algo relevante para suas vidas a luta por uma universidade pública decente, estruturada, de qualidade. É recorrente o argumento: os alunos são os únicos prejudicados, são as grandes vítimas das greves. Mentira, pois são os que mais se beneficiarão, no longo prazo, dos seus frutos. Não é preciso destacar que os avanços na estrutura e qualidade do ensino público superior (assim como as principais conquistas de lutas das classes trabalhadoras no mundo) são resultados unicamente das lutas travadas anteriormente (resumo das reivindicações e resultados das greves desde 1980: http://www.sedufsm.org.br/index.php?secao=greve).
O mais triste dessa última constatação é a consciência de que essa percepção individualista e imediatista é apenas o reflexo do raciocínio, da postura, dos ensinamentos da maioria dos professores dos cursos de engenharia em uma universidade pública. A corrente de vitimização dos alunos enquanto maiores prejudicados com a greve rompeu-se quando uma aluna disse: “eu defendo a greve, pois eu quero que, daqui a vinte anos, meu filho possa ter a oportunidade que eu tive de estudar de graça num dos melhores cursos universitários do Brasil”. O silêncio que se seguiu escancarava como aquela reflexão simples, ainda individualista, mas numa perspectiva inteligente, de longo prazo, foi um choque na estrutura de pensamento daqueles jovens e promissores engenheiros.
Engenheiros deslocados da realidade de seu país, avessos às lutas dos trabalhadores e preocupados com seu próprio umbigo. Esses são os profissionais que queremos formar nas universidades públicas brasileiras?

*Felipe Addor é professor do Departamento de Engenharia Industrial da UFRJ (Centro de Tecnologia), onde se formou em Engenharia de Produção. É fundador e pesquisador do Núcleo de Solidariedade Técnica da UFRJ (SOLTEC/UFRJ).

Aos 33 anos do triunfo da Revolução Popular Sandinista



Ricardo Zúniga García
Colaborador de Adital. Educador nicaraguense. Analista político
Adital
Tradução: ADITAL



As gestas da Revolução Sandinista evocam, inevitavelmente, a história bíblica de Davi e Golias: o surgimento de um processo de transformação social original, em um pequeno país periférico da América Central, com uma longa história de intervenções militares, saqueios e humilhações por parte dos governos imperialistas dos Estados Unidos, que, nos anos 30 do século passado, após tramar o assassinato a traição do líder nacionalista e anti-imperialista Augusto C. Sandino, instauraram e respaldaram uma ditadura militar dinástica, que foi servil a seus interesses até seu derrocamento pela massiva insurreição popular encabeçada pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (Fsln), em julho de 1979.

A Nicarágua, em certo sentido, tem vivido processos singulares. Sofreu a ditadura militar pró imperialista mais prolongada da América Latina; padeceu o bombardeio da aviação norte-americana à população civil de Ocotal, em 1927 (9 anos antes do bombardeio nazista a Guernica, Espanha); organizou com Sandino a primeira guerra de guerrilhas do continente que conseguiu expulsar aos invasores norte-americanos, em 1933. A partir de 1979, viveu um intenso processo de mudanças, propondo-se desenvolver simultaneamente os seguintes eixos:
- recuperar a soberania nacional;
- fortalecer o poder popular no marco do pluralismo político e do desenvolvimento de uma economia mista;
- e impulsionar uma política internacional de não alinhamento, anti-imperialista e de promoção da unidade da América Latina em torno a sua autodeterminação.
Para um país pequeno, considerado pelos EUA como seu quintal exclusivo, recuperar a soberania nacional era um difícil exercício, que passava pela consolidação da unidade nacional e pela diversificação das dependências, para obter recursos para sua reconstrução.
Esse processo foi tecido na Nicarágua, que, em meio à guerra, à fuga de capitais, a crises econômicas, aos desastres climáticos característicos do Caribe, consegue realizar entre suas principais conquistas:
- reduzir o analfabetismo e ampliar o acesso à educação;
- organizar um sistema de saúde gratuito que atende à maioria da população;
- iniciar um processo de reforma agrária;
- resgatar as experiências de luta contra as intervenções imperialistas, encarnadas principalmente em Benjamín Zeledón e Sandino, fortalecendo um sentido de dignidade nacional;
- e iniciar um processo de reconstrução nacional que foi freado pela guerra de agressão.

Outra importante conquista, frequentemente esquecida, é a total dissolução dos corpos repressivos da ditadura somozista, constituindo novas instituições: exército e polícia efetivamente nacionais. Essa conquista se expressa, por exemplo, em uma polícia efetiva no combate ao narcotráfico, com uma segurança pública muito superior aos países vizinhos do Norte e da América Central; e em um exército com sentido de serviço à nação, provado em situações de desastres e do qual não se pode esperar um golpe de Estado, como o vivido em Honduras, em 2009.
Uma das chaves que explicam o triunfo sandinista e sua capacidade de resistência a uma cruel guerra de agressão financiada pela administração Reagan é nutrir-se de valores culturais que tinham força no coração do povo. Por exemplo, a vertente do cristianismo libertador, que se bem, organicamente, é minoritário, tem expressão em muitas práticas de partilha solidária exercidas nas comunidades rurais e em grupos cristãos: como festas religiosas nas quais, em nome de Deus, de Maria ou de algum santo, entregam comida entre os mais necessitados ou organizam iniciativas para atender emergências entre os mais pobres da comunidade. Porém, a principal força dessa visão cristã no seio do povo pode ser identificada na indignação ética ante os crimes da ditadura, que foi gerando uma corrente cada dia mais caudalosa de vontades que colaboraram com a causa de enfrentar a ditadura e que, ante a agressão desta, principalmente aos jovens, decidiam incorporar-se à luta dirigida nacionalmente pela Fsln.
Como já é conhecido, o avanço do povo nicaraguense em revolução provocou, por um lado, uma guerra constante e criminosa por parte das forças mais conservadoras dos Estados Unidos, organizando, financiando, assessorando e respaldando com sofisticados recursos tecnológicos a terrível "guerra de baixa intensidade”, que produziu centenas de mortos, mutilados e enfermos crônicos, além da destruição de muitas cooperativas de produção agropecuária, de escolas, de centros de saúde e, inclusive, de um dos terminais portuários por onde era feito o abastecimento de petróleo. Essa situação obrigou a concentrar todos os recursos na defesa militar; a reduzir os serviços de saúde, educação e os recursos para o abastecimento básico; a impor um estilo militar, reduzindo os espaços de debate e de educação popular; a inviabilizar o desenvolvimento econômico do país devido ao bloqueio econômico por parte dos EUA e a destruição causada na base produtiva do país.

Por outro lado, a consistente defesa do povo nicaraguense gerou um amplo movimento de solidariedade internacional em vários países da América Latina, da Europa, do Canadá e de Estados Unidos. Tal movimento de solidariedade ajudou também a dinamizar a discussão política nos países onde esta se gerava. E provocou encontros de diferentes setores da esquerda que não se juntavam e, inclusive, eram adversários em seus países de origem.
Em 1990, em meio a uma gravíssima crise econômica, do desgaste político gerado pela guerra, dos erros políticos internos, produziu-se a derrota eleitoral da Fsln. Os erros, como sabemos, foram destacados desmedidamente pela grande imprensa; foram apresentados como uma grande débâcle moral casos de corrupção dificilmente controláveis em uma situação de transição, falta de saídas e ante a avassaladora imposição de políticas e práticas neoliberais que impeliam ao individualismo, à fragmentação e estimulavam a corrupção. Criticou-se até a saciedade a chamada "piñata sandinista”(*); porém, não se informou como, na orgia neoliberal, todas as empresas estatais rentáveis do povo nicaraguense foram entregues a empresários privados, em sua maioria estrangeiros, por menos de 10% de seu valor real. Exemplo emblemático é o Hotel Montelimar, entregue a uma cadeia turística espanhola (Meliá) por 4 milhões de dólares, a ser pagos a largo prazo, quando o Estado nicaraguense havia investido em suas instalações mais de 40 milhões de dólares.
Voltando à singularidade dos processos vividos na Nicarágua, queremos ressaltar que sendo a última revolução latino-americana armada triunfante do século XX, foi a, primeira a entregar o governo, em 1990, aceitando os resultados eleitorais adversos. Porém, além disso, a Frente Sandinista é a primeira força política que regressa ao governo (em 2007; desta vez pela via eleitoral), apesar da permanente desqualificação de sucessivos governos dos EUA; e, imediatamente, ingressa a Alba (Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América), fortalecendo com sua experiência de luta essa aliança e sendo fortalecida e apoiada por ela.

Um dos elementos constantes e duradouros da política da Fsln tem sido sua consequente posição anti-imperialista, expressa, entre outros casos, na exigência do retorno à ordem constitucional em Honduras, em 2009, e o reclamo de que os governos dos EUA cumpram de alguma forma a sentença do Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas (Haia, Holanda) que, em 1987, declarou aos Estados Unidos como Estado agressor contra a Nicarágua; mandou parar a agressão; e a pagar a indenização de 17 bilhões de dólares ao Estado nicaraguense pelos danos provocados. Apesar de que o governo dos EUA não aceitou a jurisdição da Corte, o peso moral de dita sentença sentou um precedente e não pode ser ignorado.
A Frente Sandinista, em meio de complexas alianças políticas, retornou ao poder em 2007. A grande imprensa internacional a acusa de ter perdido o rumo e não representar uma boa opção para o povo nicaraguense. No entanto, o povo nicaraguense referendou seu mandato em 2011, outorgando-lhe mais de 60% da votação para presidente e deputados. O presidente Daniel Ortega e sua equipe tem sido artífice de uma hábil política de alianças internas que têm permitido o crescimento do apoio popular à Fsln e o fortalecimento do projeto de país.

Por outro lado, diz-se que a Fsln, após a derrota eleitoral de 1990, renunciou a seus princípios. No entanto, a ênfase de suas políticas atuais está em melhorar e ampliar os serviços de saúde e educação; programas sociais de crédito para os pequenos e médios produtores. Programa Fome Zero e de geração de empregos.
Afirma-se também que está dentro da lógica capitalista. Porém, pode-se ter iniciativas econômicas fora das regras do jogo capitalista? Trata-se, nessa fase, de ir abrindo espaços para iniciativas de economia solidária e fortalecendo o papel do Estado na orientação geral da economia, na aplicação das leis trabalhistas e em políticas redistributivas dos lucros produtivos. Trata-se de buscar caminhos para enfrentar as manobras dos capitais especulativos, o que não é fácil de realizar.
Um eixo que define o atual processo sandinista é sua permanência, atuação e crescimento na Alba, na dinâmica de afirmar caminhos de autodeterminação, de prevalência dos direitos e interesses das maiorias empobrecidas; de criar espaços efetivos de vida digna para a presente e as futuras gerações, não somente no âmbito de um pequeno país como a Nicarágua, mas em uma perspectiva regional, que torne viável o cuidado ecológico e o desenvolvimento de uma economia solidária consequente com a satisfação das necessidades das grandes maiorias.

Outro elemento significativo é a promoção da liderança das mulheres e dos jovens, convidando-os a organizar-se efetivamente na Frente; comprometendo-os na organização popular e em trabalhos voluntários de serviço social; propondo, por exemplo, anteprojetos de lei que garantam a paridade de gênero na apresentação de candidaturas a cargos eletivos.
Atualmente, há um esforço político significativo em marcha para fomentar formas de democracia direta, a organização do poder cidadão e a ampliação da representação da população nos Conselhos Municipais. Tudo isso é um desafio que exige muita reflexão a partir da prática e ser aprofundado, para realizar um efetivo exercício de democracia direta.

O destacado pensador, fundador do Fórum Social Mundial, François Houtart, expressa claramente: "a Alba é o único projeto, não somente na América Latina, mas no mundo, onde se verifica um passo realmente pós-capitalista, onde se prevê orientar a economia não em função da competitividade, como no mundo capitalista, mas em função da complementaridade e da solidariedade. E isso é totalmente novo; é totalmente anticapitalista. E conta com a participação dos movimentos sociais...” (...); "…o projeto é associar a expressão organizada dos povos a essa construção; tudo isso é realmente um projeto totalmente pós-capitalista. Isto é, um projeto socialista”.
Para terminar, nossa homenagem aos milhares de lutadoras/res e combatentes heroicos que, na Nicarágua e na América Central, lutaram e deram suas vidas em defesa e pela permanência do projeto latino-americano e anti-imperialista de Sandino e de Carlos Fonseca; aos lutadores que em toda América Central trabalham cotidianamente na construção de uma sociedade fraterna.
 
[(*) "piñata sandinista”: Nos aniversários de criança, um boneco de barro recheado com bombons é pendurado; as crianças batem nele para que se rompa e os bombons caiam; então, cada um procura pegar o maior número de bombons... Daí a analogia com o que dizem que aconteceu após a derrota sandinista, em 1990.].