Nesta entrevista ao ‘Le Monde’, o destacado analista libanês Gilbert Achcar comenta as dificuldades dos governos islâmicos que subiram ao poder no mundo árabe. Além disso, diz que a Turquia não é uma referência para esses países, pois lá o AKP turco se reconciliou com o laicismo, tornando-se a versão islâmica da democracia cristã europeia.
Christophe Ayad – Le Monde*
Personagem desta entrevista, Gilbert Achcar é
professor na School of Oriental and African Studies (SOAS) de Londres e
um dos mais respeitados analistas do mundo árabe contemporâneo. Nasceu
em 1951 e deixou o Líbano em 1983.
Ensinou na Universidade de París VIII e no Centro Marc-Bloch de Berlim. O seu compromisso com as esquerdas e movimento pró-palestina nunca o impediu de dirigir um olhar severo sobre as ditaduras nacionalistas árabes. É autor de “Le peuple veut une exploration radicale du soulèvement arabe”, editora Actes Sud.
Como qualificar o que aconteceu no mundo árabe, desde 2011?
Ensinou na Universidade de París VIII e no Centro Marc-Bloch de Berlim. O seu compromisso com as esquerdas e movimento pró-palestina nunca o impediu de dirigir um olhar severo sobre as ditaduras nacionalistas árabes. É autor de “Le peuple veut une exploration radicale du soulèvement arabe”, editora Actes Sud.
Como qualificar o que aconteceu no mundo árabe, desde 2011?
Escolhi
a palavra “levante” como título para o meu livro. Mas, na introdução
falo de um processo revolucionário a longo prazo. O que estava claro
desde o princípio é que estávamos muito no início de uma explosão, e o
que se pode prever com certeza é que será de longa duração.
Emmanuel Todd deu uma explicação demográfica do fenômeno. Você inclina-se mais para uma explicação marxista.
Emmanuel Todd deu uma explicação demográfica do fenômeno. Você inclina-se mais para uma explicação marxista.
A
fase durante a qual o mundo árabe se distinguia por uma demografia
galopante acabou há vinte anos. Comecei com a análise da situação em
vésperas da explosão, em 2010. Constata-se um bloqueio do
desenvolvimento que contrasta com o resto do mundo; inclusivamente com a
África subsariana. A expressão mais espetacular desse bloqueio é uma
taxa de desemprego recorde, particularmente entre os jovens. Além disso,
há uma modalidade específica do capitalismo na região: em diferentes
níveis, todos os Estados são rentistas. A outra caraterística é um
patrimonialismo no qual o clã dominante se apropria do Estado até ao
ponto de o transmitir de forma hereditária.
As revoluções árabes traduziram-se em liberalizações políticas, mas não em grandes mudanças sociais. Por quê?
As revoluções árabes traduziram-se em liberalizações políticas, mas não em grandes mudanças sociais. Por quê?
No
Egito e na Tunísia, só foi quebrada a ponta do icebergue; quer dizer,
os déspotas e o seu grupo próximo. Por outro lado, nesses dois países, o
“Estado profundo”, a administração, os aparelhos de segurança, não
mudaram. Neste momento, só na revolução Líbia se deu uma mudança
radical: hoje, já não há Estado; já não há exército. Nesse país, o
descalabro social foi mais profundo, porque o reduzido espaço privado
que existia era ocupado pela família Gadafi.
No Ocidente estranhou-se o triunfo dos islamitas nas eleições, quando não foram eles a lançar essas revoluções…
No Ocidente estranhou-se o triunfo dos islamitas nas eleições, quando não foram eles a lançar essas revoluções…
As
expectativas do Ocidente, esse romanticismo em volta da “primavera” e o
“jasmim”, todo esse vocabulário orientalista, baseavam-se num
desconhecimento da situação. Era evidente que os integristas iam apanhar
as castanhas do fogo porque, desde finais dos anos 70, impuseram-se
como uma força hegemónica no protesto popular. Encheram o vazio deixado
pelo fracasso do nacionalismo árabe. Por outro lado, a principal razão
pela qual os governos ocidentais apoiavam os despotismos árabes era o
receio dos integristas. Crer que essa situação iria ser varrida pelos
acontecimentos, era tomar os desejos por realidades. Com o apoio
financeiro do Golfo e o apoio televisivo da Al Jazeera, não se podia
esperar outra coisa que vitórias eleitorais integristas. O que é
chamativo é que essas vitórias não tenham sido esmagadoras. No Eipto,
desde as legislativas ao referendo sobre a Constituição, passando pelas
presidenciais, estamos a ver a velocidade a que se desmorona o voto
integrista. Na Tunísia, Ennahda consegue 40% numas eleições em que
participaram metade das pessoas inscritas. E, na Líbia, a Irmandade
Mulçumana local foi derrotada.
Surpeendem-lhe as atuais dificuldades dos islamistas no poder?
Surpeendem-lhe as atuais dificuldades dos islamistas no poder?
Em
primeiro lugar, há que dizer que o regresso aos despotismos não é algo
exequível. Há que passar pela experiência do islamismo no poder. As
correntes integristas construíram-se como forças de oposição com um
slogan simplista: o islão é a solução. É algo completamente oco, mas
funcionava num contexto de miséria e de injustiça no qual se podia
vender essa ilusão. Os islamistas são traficantes do ópio do povo. Desde
o momento em que estão no poder, isso já não é possível. São incapazes
de resolver os problemas das pessoas. Chegaram aos postos de comando em
condições que ninguém inveja e não têm nenhum programa econômico.
Pode-se confiar neles no momento de organizar escrutínios que os poderão expulsar do poder?
Pode-se confiar neles no momento de organizar escrutínios que os poderão expulsar do poder?
Esse
é o argumento clássico: uma pessoa, um voto, mas uma só vez. Salvo que
cheguem ao poder em posição de força. O povo aprendeu a “querer” sair à
rua. Jamais um dirigente, na história do Egito, foi tratado com tanto
desprezo pelo seu povo como atualmente Morsi…
Pode-se copiar o modelo turco para o mundo árabe?
Pode-se copiar o modelo turco para o mundo árabe?
Não,
na Turquia não é a Irmandade Mulçumana que dirige o país, mas uma cisão
modernista que se reconciliou com o princípio do laicismo. O AKP turco é
a versão islâmica da democracia cristã europeia. A Irmandade Mulçumana
não é isso. É uma organização integrista que milita pela Sharia e para
quem a palavra laicismo é uma injúria. No terreno econômico, não tem
nada a ver: o AKP encarna um capitalismo de pequenos industriais,
enquanto a Irmandade Mulçumana participa numa economia rentista, fundada
no lucro a curto prazo.
Pode descrever a influência do Qatar nestas revoluções?
Pode descrever a influência do Qatar nestas revoluções?
É
um enigma. Alguns dirigentes colecionam carros ou armas; o Emir do
Qatar, por seu lado, joga na política externa. Apresentou-se como
comprador da Irmandade Mulçumana da mesma forma que compraria uma equipe
de futebol. Um homem que jogou um papel fundamental nesta nova aliança
(que faz recordar a que houve entre Mohamed ben Abdel Wahab e a dinastia
dos Saud no século XVIII) é o sheik Qaradhawi, chefe espiritual dos
Irmandade Mulçumana, instalado desde há muito no Qatar, e que tem grande
influência na Al Jazeera. Tudo isso acontece num país em que o Emir não
tolera qualquer oposição.
Como explicar a complacência dos Estados Unidos para com a Irmandade Mulçumana?
Como explicar a complacência dos Estados Unidos para com a Irmandade Mulçumana?
É
algo que começou sob a administração Bush. Para os neoconservadores, o
despotismo nacionalista produziu o terrorismo e, portanto, havia que
derrubar déspotas como Saddam Hussein para poder estender a democracia.
Condoleezza Rice quis retomar a aliança com a Irmandade Mulçumana, que
se deu nos anos 50 e 60. Mas a vitória do Hamas nas eleições
palestinianas bloqueou o processo. A administração Obama, que herdou uma
situação catastrófica no Médio Oriente, mostrou uma atitude indecisa e
prudente. Quando tudo estalou, optou por tentar dar a impressão de
acompanhar o movimento. A obsessão de Washington na região é a
estabilidade e o petróleo. E a tradução desta obsessão, é a procura de
aliados que disponham de uma base popular.
Por que é que a intervenção da OTAN foi possível na Líbia e não na Síria?
Por que é que a intervenção da OTAN foi possível na Líbia e não na Síria?
A
Síria encontra-se perante um risco de caos tipo Líbia, mas num contexto
regional bastante mais perigoso. Está também o apoio da Rússia e do
Irão. Desde o começo, a OTAN disse que não queria intervir. A questão
não é “porque é que o Ocidente não intervém na Síria?”, mas “porque é
que impede a entrega de armas à rebelião?”. A razão profunda é o medo do
movimento popular na Síria. E o resultado é que a situação está a
apodrecer. O regime sírio acabará por cair, mas a que preço? A miopia
dos governos ocidentais é alucinante: com o pretexto de não reproduzir
os erros cometidos no Iraque, quer dizer, o desmantelamento do estado
baasista, fazem algo pior. Hoje, os sírios estão persuadidos de que o
Ocidente deixa que o seu país se auto-destrua para proteger Israel.
A esquerda anti-imperialista vê um complô americano nestas revoluções…
A esquerda anti-imperialista vê um complô americano nestas revoluções…
Se,
por oportunismo, as insurreições populares são apoiadas por potências
imperialistas, não justifica que apoiemos as ditaduras. A teoria do
complô americano é grotesca. Basta ver o aperto de Washington. É claro
que, depois de quarenta anos de totalitarismo, o que chega é o caos,
mas, como diria Locke, prefiro o caos ao despotismo, porque no caos
tenho uma opção.
* Tradução: António José André, do Esquerda.net
* Tradução: António José André, do Esquerda.net