Coação policial, processos na Justiça e até acusação de
espionagem vinculada ao ETA não impedem que milhares protestem em frente
ao Congresso da Espanha contra a proposta de orçamento do governo, que
vai aumentar em 34% os gastos destinados ao pagamento da dívida. A
reportagem é de Naira Hofmeister e Guilherme Kolling, direto de Madri.
Naira Hofmeister e Guilherme Kolling, de Madrid no
CARTA MAIOR
Madri - “A voz do povo/ Não é
ilegal!” As palavras de ordem do protesto dos Indignados da Espanha
neste sábado contra a proposta de orçamento do governo para 2013
deixaram evidente o desconforto dos manifestantes com a intimidação que
vem sofrendo do poder público.
Nessa semana uma denúncia
publicada no jornal El Mundo deu conta de que a polícia investiga a
ligação do movimento popular que pede uma nova Constituição com o ETA,
grupo separatista do País Basco que cometeu diversos atentados nas
últimas décadas.
Foi o auge de uma ofensiva para criminalizar
esses coletivos que lutam pela mudança no sistema político espanhol - a
polícia pratica regularmente a identificação de integrantes em reuniões e
protestos, partindo do pressuposto de que estariam cometendo um delito,
reprime com violência manifestantes e o governo abre processos
judiciais contra lideranças.
A delegada da administração de
Madri, Cristina Cifuentes, chegou a declarar que as ações populares
previstas para essa semana eram ilegais - anteriormente, comparou a
convocação do “Ocupa o Congresso” à tentativa de golpe militar do início
dos anos 80.
Mesmo assim, milhares voltaram às ruas na semana em
que o Parlamento Nacional começou a discutir o projeto do orçamento de
2013 enviado ao Legislativo. “Cifuentes! Cifuentes!/ Não somos
delinquentes!”, provocavam os ativistas, que exibiam faixas com dizeres
como “A ditadura não estava morta?”
O conteúdo principal da
marcha deste sábado que percorreu a avenida Gran Vía, no Centro de
Madri, e que terminou com mais uma concentração em frente ao Congresso,
foi questionar os números propostos pela gestão do conservador Mariano
Rajoy para 2013.
Nas contas públicas apresentadas ao Parlamento, o
gasto destinado ao pagamento da dívida aumentará em 34%. O débito da
Espanha poderá alcançar 90,5% do PIB do país no ano que vem, tendo em
vista que o passivo aumentará com o resgate para salvar os bancos.
Enquanto
isso, os valores destinados para a saúde terão uma redução de 22,6%,
conforme calculou o jornal El País. Oficialmente, o governo considera
que serão apenas 3,1% a menos nesse item, porém o diário espanhol afirma
que nesse cálculo estão incluídas despesas com a seguridade social e
obrigações de exercícios anteriores.
A educação perderá 14% de
sua verba, enquanto que a cultura terá que se virar com uma redução de
19% em relação a 2012. “O projeto de orçamento para 2013 referenda as
irracionalidades e injustiças na organização e distribuição de recursos
públicos e reafirma que a maioria da população pagará a dívida, cuja
origem é 80% privada e foi transformada em pública mediante o resgate
aos bancos”, critica o manifesto que convocou a população para rodear o
Congresso mais vez - a primeira foi dia 25 de setembro.
Além de
criticar a previsão orçamentária para o próximo ano, a intenção do ato
foi demonstrar que os cidadãos não estão satisfeitos com a representação
política atual, inclusive os parlamentares eleitos nas urnas que,
segundo o texto, realizam um “simulacro de debate democrático”, já que
não escutam as queixas que chegam das ruas diariamente.
O
movimento popular que defende a abertura um processo constituinte
organizou diversos atos públicos ao longo da semana. O primeiro
aconteceu na terça-feira, 23, em frente ao Parlamento em Madri para
marcar a entrada em pauta do projeto do orçamento. O lema foi “Não
devemos!, não pagamos!”. Dois dias depois ocorreram ações
descentralizadas para questionar os princípios que regem as contas
públicas - uma das atividades foi em frente a sede do Bankia. E, neste
sábado, houve ações em todo o país.
Uma pesquisa do instituto
Metroscopia divulgada no início de outubro, mostrou que 77% dos
espanhóis apoiam a pressão aos deputados, enquanto 93%, estão de acordo
com mudanças na Constituição.
Mesmo assim, o texto orçamentário
proposto pelo governo do PP deve ser aprovado no Legislativo com poucas
mudanças, tendo em vista que o partido de Mariano Rajoy tem maioria na
casa.
Método de luta provoca racha entre constitucionalistas
Os
dois principais coletivos que defendem a discussão pública e
democrática de uma nova Carta Magna na Espanha participaram das
manifestações contra a proposta de gastos do governo central para 2013.
Entretanto, o conteúdo dos protestos gerou uma ruptura entre os
principais grupos: a Coordenadora 25-S e a Plataforma Em Pé.
A
primeira, que responde oficialmente pela organização das ações de
questionamento do poder estabelecido (o nome é referência ao 25 de
setembro, data do primeiro protesto em frente ao Parlamento), pediu aos
participantes que levassem suas “emendas” ao projeto do orçamento.
“Vamos
'empapelar' o Congresso”, era a chamada da Coordenadora 25-S, que se
concretizou em centenas de cartazes afixados na grades de isolamento
instaladas pela polícia em torno do quarteirão onde fica a casa
legislativa, em pleno centro turístico de Madri.
A Plataforma Em
Pé, que foi a pioneira em pedir uma “democracia real” e cujo manifesto
de “fundação” pode ser considerado o marco teórico para as ações que
hoje são levadas a cabo pela Coordenadora 25-S, discorda que a melhor
maneira de mostrar a insatisfação pública seja tentar “reformar o
orçamento”, o que significaria, de alguma maneira, aceitar o sistema
atual.
Segundo um manifesto do coletivo publicado na internet
junto com uma imagem de uma criança mostrando o dedo médio para a
câmera, a única saída possível é a revolução, que deveria iniciar com a
destituição do Parlamento. “A ideia original do 'Ocupa o Congresso' não
era obter apenas manifestações estéreis de espírito reformista”, ataca o
texto.
Embora discordasse do conteúdo, a Plataforma Em Pé
referendou e participou dos protestos – e seguirá secundando todas as
“ações contra o poder que nos submete cada dia mais a perdas de direitos
e liberdades”.
Talvez por isso os protestos na rua desta semana
tiveram menos gente do que os de setembro – a repressão policial e as
distintas convocações para atos ao longo de uma semana são outros
fatores que podem ter concorrido para a adesão menor de participantes.
Suicídio de homem que perdeu a casa eleva cobrança a banqueiros
O
suicídio de um morador da cidade de Granada diante do iminente despejo
por falta de pagamento da hipoteca de sua residência elevou o tom da
cobrança a políticos e banqueiros no protesto popular deste sábado no
Centro de Madri. Em diversos momentos, a massa cantava em uníssono que
“não é suicídio, isso é homicídio”, em referência ao caso trágico que
ocorreu na sexta-feira.
“Culpados”, “Assassinos!” e “Guilhotina!”
foram alguns dos dizeres dos manifestantes ao passar pela sede ou até
mesmo por caixas eletrônicos de Deutsch Bank, Caja Madrid e Banco de
Espanha, durante a marcha que percorreu a Gran Vía, antes de chegar ao
Congresso. “Mãos ao alto! Isso é um assalto”, foi outro lema entoado
pelos ativistas ao visualizar instituições bancárias.
Sobrou
também para o presidente do governo espanhol, Mariano Rajoy, a quem o
público pedia a demissão imediata. O ato por uma nova Constituição e
contra o chamado “Orçamento da Dívida” terminou com um minuto de
silêncio em frente ao Congresso e a apresentação da Orquestra Solfônica,
uma brincadeira com o nome da praça - a Puerta del Sol - onde surgiu o
movimento dos Indignados, em 2011.