sábado, 30 de junho de 2007

Asterix ajuda a entender o capitalismo

Sérgio Domingues

Comparar Obelix e Companhia, de Goscinny e Uderzo, às obras de Marx, Engels, Lênin, Rosa, Trotski, Gramsci, não tem nenhum sentido. Mas, essa pequena obra-prima em quadrinhos merece a atenção de quem luta contra o capitalismo.

      "Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legionários romanos nos campos fortificados de Babaorum, Aquarium, Laudanum, e Petibonum...".

A apresentação acima acompanha todos os álbuns de Asterix, personagem do italiano Albert Uderzo e do francês René Goscinny. A série de 31 álbuns é um dos exemplos do que há de melhor na literatura em quadrinhos.

O que a introdução não explica é que os "irredutíveis" gauleses devem sua invencibilidade a uma poção mágica. A bebida dá aos aldeões uma enorme força física e seus efeitos duram o suficiente para destruir qualquer tentativa romana de conquistar a aldeia. Esta, na verdade, simboliza o nacionalismo francês.

Cada álbum da dupla é uma obra-prima feita de belos traços e cores, humor, roteiro, ironia, conhecimento histórico e muita inteligência. Mas um deles é tudo isso e ainda pode ser usado para mostrar como as relações capitalistas podem corroer laços comunitários de convivência. Trata-se de Obelix e Companhia.

A história começa com a imagem da fortificação de Babaorum, a mais próxima da aldeia gaulesa (Prancha 1-A). As legiões romanas, famosas por sua disciplina e dedicação, estão entregues à mais terrível indisciplina e ao mais completo ócio. Só esperam a chegada das legiões que ficarão em seu lugar. As razões? A desmoralização diante das sucessivas surras tomadas dos gauleses.

      Vou fazer algumas observações a que chamarei de parênteses. Os leitores que os acharem desnecessários ou quiserem tirar suas próprias conclusões, podem seguir o texto principal sem prejuízos para a compreensão da história.

Enquanto isso, César, em Roma, está desesperado por uma saída para o impasse diante da aldeia de Asterix. Convocou senadores e patriarcas para aconselhá-lo na tarefa. Dentre estes, está Regius Velhacus, recém formado pelo "reformatório de ensino superior". Ele propõe a César derrotar os gauleses por meios não militares. Através da corrupção pelo ouro. César se interessa.

Mas, um dos presentes discorda. Diz que o melhor ainda é a boa e velha força bruta. Ao ouvir isso, César diz a ele: "Sim, Pediculus, eu me lembro! Você era um jovem tribuno corajoso, audaz, até pensava nos problemas do povo...Agora, com o ouro dos saques, veja em que você se transformou!" Depois, dirigindo-se a todos: "Sim! Vejam o que o ouro, as vilas, as orgias, as comissões na compra de armas fizeram de vocês! Gordos e decadentes!..." (Prancha 9-A)

César vira-se para Velhacus e pergunta: "Você acha que pode transformar aqueles gauleses em algo parecido com isso?", apontando para os gordos patriarcas. A resposta: "Pode crer! Eles vão lutar por outra coisa e nunca mais para defender sua aldeia!" (9-B).

      Os primeiros parênteses: há, nos Estados Unidos, quem defenda um modo mais eficiente de acabar com o regime cubano do que o embargo econômico. Bastaria estabelecer as mais amplas relações comerciais com a ilha. O efeito corrosivo da presença dos produtos capitalistas mais avançados colocaria por terra um sistema de poder que usa como pretexto a penúria a que o povo cubano foi condenado pela brutalidade norte-americana. Esta aventura de Asterix poderia dar razão à tese.

Velhacus parte para a Gália. Por acaso, encontra Obelix na floresta que separa a fortificação romana da aldeia gaulesa. Como sempre, o grande gaulês carrega um menir (1) de sua própria fabricação. Velhacus encontra o pretexto para por seu plano em ação. Compra o menir e pede para entregar mais um na fortificação romana no dia seguinte. Obelix faz mais um menir e o leva a Velhacus. Este lhe diz que vai pagar o dobro do que pagara pelo anterior. Diante do espanto de Obelix, o romano explica as razões do aumento nos seguintes termos: "... problemas de da economia, fluxo de oferta e demanda...reversão atípica das expectativas. Flutuação cambial...é complicado" (13-A).

Javali é o prato preferido na aldeia e o único item na gordurosa dieta de Obelix. Mas com o aumento das encomendas de menires, Obelix já não tem tempo para caçar. Se vê obrigado a oferecer dinheiro a um outro aldeão, Analgesix, para caçar javalis para ele.

Asterix estranha a intensa produção de menires e questiona Obelix. Este dá sua explicação nos termos em que aprendeu a pensar com Velhacus: "...Se a demanda for igual à quantidade de bens produzidos, divididos pela quantidade de moeda boa, multiplicada pela quantidade de moeda má que sai de circulação, os preços cairão" (15-B).

A vida da aldeia começa a entrar em colapso. Obelix recebe cada vez mais dinheiro de Velhacus. Passa a contratar gente para ajudá-lo na fabricação de menires. Ao mesmo tempo, outros aldeões são desviados de suas funções normais para caçar javalis. Estes são vendidos para quem não tem tempo de caçar por estar trabalhando para Obelix.

Ao sair para caçar, Asterix descobre que a floresta está apinhada de caçadores de javalis devido ao surgimento da troca de javalis por dinheiro.

As relações conjugais também não vão bem. Uma das mulheres da aldeia se insinua para Obelix, uma vez que ele comprou todo os belos tecidos do mercador que visita a aldeia regularmente. Obelix a contrata para fazer-lhe uma roupa. O marido cobra o almoço. Mas ela se nega a preparar a refeição porque está costurando para Obelix. "Como não posso contar com você, preciso arranjar um meio de ganhar dinheiro", diz ela. (23-B e 24-A).

      Mais parênteses: o enredo mostra como a forma de troca de mercadorias entre os aldeões vai se alterando. Antes eram trocas entre produtores diferentes. O peixeiro comprava do ferreiro, mas este também seria fornecedor do peixeiro, quando ele precisasse de uma nova balança ou de facas. O dinheiro está presente, mas seu caráter intermediário é mais claro. Com a especialização da aldeia na fabricação de menires, todo o resto começa a girar em sua órbita. Já não circulam produtos e serviços através do dinheiro, mas dinheiro através de produtos e serviços. Há uma passagem de O Capital, de Marx que diz: "... uma mercadoria não se torna dinheiro somente porque todas as outras nela representam seu valor, mas, ao contrário, todas as demais nela expressam seus valores, porque ela é dinheiro. Ao se atingir o resultado final, a fase intermediária desaparece sem deixar vestígios. (...) Ouro e prata já saem das entranhas da terra como encarnação direta de todo trabalho humano. Daí a magia do dinheiro."

Asterix sente que está em andamento um plano para desunir a aldeia. Prepara a reação. Estimula todos os moradores a entrar no negócio dos menires para concorrer com Obelix. A confusão aumenta. O ferreiro, o peixeiro, o quitandeiro, todos largam suas tarefas tradicionais para também fabricar menires. Ao entusiasmo geral pela nova atividade, Asterix adiciona um aumento de produtividade através do uso da mais avançada "tecnologia" local: a poção mágica. O resultado são entregas cada vez maiores ao acampamento romano.

A conseqüência é que César começa a se desesperar com a quantidade de menires que chega a Roma. Velhacus o tranqüiliza. Diz que vai estimular a compra de menires, usando um márquetim todo específico: "As pessoas compram, diz ele, A - o que é útil, B - o que é confortável, C - o que é agradável, D - o que causa inveja nos vizinhos. Está no item D o ponto básico da campanha." Propõe a massificação. Cita as qualidades que devem ser ressaltadas: "A - durabilidade, B - ineditismo e C - outras qualidades que ainda vou descobrir" (32-A).

A prancha 34-A mostra Velhacus apresentando a César os produtos que inventou para transformar a posse de menires em moda: Togas com menires bordados, relógios solares com ponteiros em forma de menir, jóias com o mesmo motivo e um estojo "faça você mesmo" com martelo e talhadeira para uso familiar.

      Parênteses: É uma idéia comum a de que o capitalismo inventa coisas desnecessárias para serem vendidas. No entanto, esta é uma discussão complexa. Qual o limite entre o que é estritamente necessário e o que passa a ser supérfluo? Muito difícil de determinar. Claro que alimento, vestuário e habitação poderiam ser considerados o nível mais básico. Mas em regiões muito quentes, a nudez total seria a regra? Não é o que se verifica. Mesmo entre indígenas em regiões tropicais, os adereços e acessórios simbólicos fazem parte da vida social. Não há uma relação direta entre necessidade e uso. Além disso, hoje já é muito comum ver tribos inteiras vestidas com roupas urbanas, mesmo que não sejam necessárias devido ao clima. Aí, já entra o fator da dominação cultural.

      Em O Capital, ao discutir quanto deve ser a soma dos meios necessários para manter a vida normal de um trabalhador, Marx diz que "a soma dos meios de subsistência deve ser (...) suficiente para manter no nível de vida normal do trabalhador". Mas, adverte que um elemento histórico e moral entra na determinação desse valor. É o caso de indígenas vestidos com camisas do Flamengo, usando relógios de pulso e consumindo bebidas e comidas estranhas à sua tradição e, teoricamente, inadequadas ao ambiente em que vivem.

Mas nem tudo dá certo. Começam a aparecer contradições. Um fabricante romano de menires inicia um movimento protecionista. O fabricante, que se chama Malentendidus, é questionado por César: "Que história é essa?" O fabricante responde: "Os menires gauleses estão colocando em risco a sobrevivência da classe empresarial". César discorda: "Mas quem fabrica são os escravos". Malentendidus: "Justamente! O trabalho duro é o único direito do escravo! Não podemos lhes tirar esse direito!" (34-B e 35-A).

A situação evolui para ações concretas. Uma barreira é colocada na entrada de Roma. Numa faixa está escrito "Menires Gauleses Go Home" (35-B).

      Parênteses: Um momento muito feliz dos autores. Primeiro, antecipam em pelo menos 15 anos (o álbum é de 1976) as contradições entre a globalização e os interesses de setores nacionais burgueses. Um famoso representante desses setores é José Bové (2), que é francês e lembra Asterix. Em segundo lugar, os escravos romanos não poderiam ter direitos, pois eram considerados coisas. Do ponto de vista formal e real, equivaliam a animais de tração. Portanto, Goscinny e Uderzo devem estar se referindo aos proletários atuais. Estes acreditam ter direitos. Mas só os têm do ponto de vista formal. Do ponto de vista real, seu único grande direito é o trabalho duro. Basta notar que em tempos de ditadura ou de ataque aos trabalhadores, direitos como o voto ou o salário-desemprego podem ser rapidamente suprimidos. Mas o direito a ser explorado continua valendo, nem que seja de modo informal e precário.

As táticas consumistas de Velhacus perdem fôlego. Menires começam encalhar nos estoques e a ser vendidos em liquidação. "Em cada compra de um escravo, dois menires de graça", diz um anúncio talhado em mármore (37-A).

César pega Velhacus pelos colarinhos, chacoalha e diz: "Foi por sua causa que quase abri falência e quase entramos em guerra civil! Nem mesmo Brutus me prejudicou tanto!" (37-B). Despacha o marqueteiro para a Gália para resolver o problema. Lá chegando, Velhacus simplesmente suspende a compra de menires.

Ao descobrir que os romanos já não querem comprar mais menires, os gauleses começam a se desentender. Uns acusando os outros de concorrência desleal. Mas Asterix lhes faz notar que os verdadeiros culpados são os romanos. Convida-os a acertar tudo com eles. A prancha 43-A mostra Os gauleses entrando numa coluna arrasadora pela fortificação de Babaorum, destruindo tudo e colocando os romanos em fuga. Inclusive, Velhacus.

A cena final é aquela que fecha todas as aventuras de Asterix. Um grande banquete, com muito vinho, os inevitáveis javalis e muita diversão. Só não há música porque o único bardo da aldeia tem uma voz horrível. Durante os banquetes, fica amordaçado e amarrado a uma árvore.

      Parênteses de encerramento: Podemos entender a vitória gaulesa sobre a estratégia de Velhacus como a impossibilidade de que relações capitalistas se estabelecessem naquele momento histórico. Ainda citando O Capital, Marx diz que "só aparece o capital quando o possuidor de meios de produção e de subsistência encontra o trabalhador livre no mercado vendendo sua força de trabalho, e esta única condição histórica determina um período da História da humanidade." Essas condições não aparecem nem em Roma, em que a força de trabalho é escrava, nem na aldeia, em que os moradores possuem seus próprios meios de produção (ou de subsistência através da caça e da coleta). Voltando ao exemplo cubano, a ilha governada por Fidel apresenta as duas condições. Força de trabalho assalariada e meios de produção controlados pelo Estado e não pelos trabalhadores.

      Mas é claro que os geniais criadores de Asterix não pretendiam qualquer exatidão histórica. O domínio do formato satírico lhes deu liberdade para fazer a crítica de aspectos da atual sociedade capitalista em plena antiguidade romana. E o fizeram de forma magistral através de um material bonito, divertido e fácil de assimilar. Que tal usá-lo em cursos de formação?


(1) Segundo o dicionário Houaiss, menir é um monumento megalítico do período neolítico, geralmente de forma alongada, altura variável (até cerca de 11 m) e fixado verticalmente no solo. Podia servir de marco astronômico. Também pode representar o totem ou outros espíritos, freqüentemente apresentando traços figurativos.Voltar ao texto.

(2) José Bové é criador de ovelhas e líder da Confederação Camponesa da França. Tornou-se conhecido em 1999 ao liderar a invasão de uma lanchonete McDonald's na França em protesto contra a globalização econômica. No final do mesmo ano, em Seattle, nos Estados Unidos, Bové participou de manifestações contra a Organização Mundial do Comércio (OMC). Participa dos Fóruns Sociais Mundiais.

Socialismo e individualidade

Chris Harman

Um argumento muito utilizado pelos defensores do capitalismo para tentar desacreditar o socialismo é o de que este destruiria a individualidade e reduziria tudo a uma conformidade sombria. E, por tabela, tentam passar a idéia de que o capitalismo proporciona para as pessoas vidas variadas e excitantes.

Nada poderia ser mais distante da verdade. O capitalismo proclama a individualidade como uma das suas virtudes mais elevadas. Fala-se de "liberdade de escolha", de se poder comprar qualquer produto desejado.

Isto é uma ilusão. A escolha que nos é oferecida é comprar os produtos semelhantes das multinacionais que dominam o mundo - McDonald ou Burguer King, Levi´s ou Wrangler, Pepsi ou Coca-cola. As ruas principais de quase todas as cidades médias são praticamente idênticas entre si, oferecendo os mesmos bens de consumo.

A maioria das pessoas usam roupas parecidas, comem comidas semelhantes, fazem compras nos mesmos lugares, dirigem carros praticamente idênticos, e vivem em casas ou apartamentos semelhantes. Este é um processo que está acontecendo no mundo todo, com o crescente controle das corporações globais. Também se baseia em quanta "liberdade de escolha" as pessoas dispõem para comprar. A individualidade está reservada para muitas poucas pessoas - a minoria que possui e dirige as enormes empresas que dominam a economia. Dos demais espera-se que trabalhem para essas empresas, realizando trabalhos monótonos em linhas de montagem ou escritórios, dos quais se exclui o máximo possível de individualidade.

De fato, o capitalismo poderia desenvolver-se, em primeiro lugar, destruindo deliberadamente a individualidade de seus trabalhadores. Quando as primeiras fábricas se desenvolveram na Inglaterra, a classe capitalista teve a intenção de “igualar” ao máximo os seus trabalhadores. Eles eram forçados a considerar o trabalho como o único objetivo de suas vidas, a sacrificar os seus pequenos prazeres pessoais ao trabalho interminável.

No capitalismo moderno este processo foi levado a cabo com maior intensidade. Nas escolas o que importa não é como uma criança aprende a desenvolver as suas capacidades individuais.

Ao invés disso, as crianças são medidas, uma contra a outra, em exames e provas cada vez mais numerosos. Esses exames sempre são prestados com base em uma única escala, como se os seres humanos não fossem diferentes de batatas, diferindo no peso.

O que é interessante é que os oponentes mais francos da uniformidade “socialistasão normalmente as mesmas pessoas que insistem para que as crianças vistam o mesmo uniforme escolar e tenham o mesmo comportamentodisciplinado”. Nas fábricas empregam-se pessoas especialmente destinadas para assegurar que as pessoas realizem seus trabalhos de modo eficaz e apóiem política da empresa.

Recursos volumosos tem sido investidos para desenvolver falsas ciências de mensuração de trabalho e relações industriais, em um esforço para destruir mais ainda a individualidade dos trabalhadores.

As coisas não são diferentes para a maioria das pessoas das classes médias. O leitor típico do “Jornal da Tarde” pode se enfurecer sobre a necessidade de proteger o indivíduo, mas é provável que o seu estilo de vida seja idêntico ao de centenas de milhares de outras pessoas, vivendo em casas suburbanas semelhantes, expressando as mesmas idéias, trabalhando em escritórios semelhantes, e indo ao trabalho em carros, ônibus ou trens quase iguais. Se a monotonia e a uniformidade caracterizam o capitalismo, como as pessoas adquiriram a idéia de que sejam características do socialismo?

Um processo de estrangulamento do desenvolvimento individual marcou os países que se reivindicavam socialistas, como a União soviética ou a China. A imagem popular do socialismo como um regime onde todos usam roupas semelhantes vem das práticas dos regimes stalinistas antidemocráticos. E isso não porque esses países tenham sido ou sejam socialistas. Eles nunca o foram.

Mas é porque os grupos burocráticos dominantes que dirigiram essas sociedades tentaram fazer o mesmo que os capitalistas fizeram no Ocidente. Quiseram desenvolver as suas economias o mais rapidamente possível, sujeitando os padrões de vida dos trabalhadores a esse imperativo, para que assim pudessem competir com o Ocidente e também entre si. A verdadeira individualidade, o desenvolvimento pleno e completo das capacidades distintas do indivíduo, será possível em um tipo de sociedade completamente diferente.

Teria que ser um mundo no qual o indivíduo e a sociedade não seriam opostos um ao outro. As pessoas não competiriam entre si, e não estariam sob a pressão de trabalhar mais e mais.

O mundo moderno cria uma enorme quantidade de riqueza, mas está perdido na competição cega entre empresas e estados rivais. Nas suas tentativas de vencer essa competição, essas empresas e estados exigem controles cada vez mais rígidos e maior exploração sobre os trabalhadores.

A verdadeira individualidade humana será possível quando os trabalhadores se unirem internacionalmente, quando utilizarem o seu poder coletivo para destruir as classes capitalistas e reorganizar a sociedade de forma que ela se baseie na satisfação das necessidades humanas, e não sobre as demandas da competição capitalista.

Primeiros passos de Sarkozy na presidência: o lobo em pele de cordeiro

Flor Beltrán - Socialismo ou Barbárie Internacional

As manifestações de descontentamento dos jovens e os chamados “à resistência” que fazem os partidos de esquerda, as associações militantes de trabalhadores e estudantes, os grupos de imigrantes, homossexuais e mulheres, têm obrigado Sarkozy a uma falsa “abertura” nomeando alguns ministro “socialistas”. Também convocou os burocratas sindicais traidores para negociar. Essa “abertura” serve para enganar e poder aplicar tranqüilamente as receitas duras do neoliberalismo. O governo anterior também tentou aplicar o contrato precário aos jovens, porém saiu derrotado.

Nessa situação o decisivo é que ninguém se confunda. Somente podemos esperar ataques desse governo. Um exemplo: diferente de Chirac, que se negou a apoiar a invasão do Iraque, contentando-se em alimentar o racismo antiárabe e a islãmofobia na França, Sarkozy foi aos EUA brindar seu apoio a Bush.

Sarkozy pretende aproveitar as férias de verão para aprovar um pacote de leis antioperarias e ultraconservadoras no Parlamento. Entre elas, uma sobre as horas extras que na prática liquida o teto de 35 horas de trabalho semanal, outra sobre o ensino superior e uma terceira sobre o tratamento de jovens “delinqüentes” e a diminuição para 16 anos da maior idade penal.

Um catálogo completo de medidas antioperárias!

A reforma das horas extras implica que não se paguem impostos e encargos sociais sobre os patrões. As negociações deverão se dar nos próximos dias sobre a remuneração das horas extras dos assalariados em tempo parcial e os efetivos. Em relação a essa lei, o governo tem vários problemas. O primeiro de caráter orçamentário, pelo custo global da medida para o Estado. O segundo e principal é que uma medida como essa obriga a abertura de um processo de negociação entre a patronal, os sindicatos e o Estado... o que poderia eventualmente abrir as portas a protestos e mobilizações. Sarkozy, mediante estas medidas fiscais, termina de fato com o teto de 35 horas semanais e abre as portas para uma extensão substancial da semana de trabalho. Além disso, está na agenda antioperária um endurecimento da legislação contra as greves, que pode afetar radicalmente esse direito dos trabalhadores.

Privatização das Universidades

A lei que outorga a autonomia das universidades se “votará no mês de Julho” declarou o primeiro ministro François Fillon declarando que esta reforma era “a mais importante” do governo. O governo retrocedeu nos pontos mais polêmicos, como a adoção do vestibular e o aumento da matrícula. A autonomia dos estabelecimentos, segundo o primeiro ministro, deve permitir que as Universidades se organizem como queiram, contratar professores, criar ou fechar cursos e estabelecer acordos de pesquisas com empresas sem ter que pedir autorização ao Estado.

O objetivo, prosseguiu o primeiro-ministro, é que as Universidades francesas encontrem a “excelência, já que antes eram as melhores do mundo”. O problema é que essa excelência a que se refere Sarkozy e Fillon na verdade é o início da abertura do processo de privatização das universidades.

Repressão para solucionar os problemas sociais

“Continuarei com a política de segurança com que estou comprometido desde 2002.” Com essa declaração, Sarkozy deixa claro que não haverá mudança de rumo, ao contrário, haverá uma aceleração com as medidas novas, como a diminuição da idade penal para 16 anos e as penas extraordinárias para os “reincidentes”. Este último é um princípio importado dos EUA que implica sanções, independente das circunstâncias e magnitude do delito. Isto permite aos EUA condenar a 25 anos de prisão os jovens negros ou latinos desempregados e à miséria os que cometam três inflações menores.

Agora, Sarko quer aplicar as mesmas medidas aos jovens imigrantes das cités (bairros pobres da periferia de Paris). Temos que relembrar que o agora presidente, enviou em maio de 2005, quando ministro do interior, tropas do Grupo de Intervenção da Polícia Nacional para agredir sindicalistas em greves dos Correios. Seis meses depois reprimiu violentamente os jovens pobres das cités chamando-os de canalhas. Agora, a tensão entre os jovens imigrantes e as “forças da ordem” seguramente vão aumentar.

O “Ministério da Identidade Nacional”, uma criação reacionária e racista

Sarkozy já criou o famoso “Ministério da Identidade Nacional”, algo que soa como a “Polícia do Pensamento” de Orwell. Essa havia sido uma velha consigna de Le Pen, máximo dirigente da extrema direita francesa.

Parece curioso que um filho de húngaros esteja tão apegado a “identidade nacional francesa”, porém, Sarkozy é um oportunista experimentado que utiliza qualquer argumento que o convenha. Sem dúvida, o mais importante é que este ministério não aponta contra “brancoides” descendentes de aristocratas nazistas que chegaram à França fugindo do “comunismo”, como os próprios pais de Sarkozy. Vai dirigido contra os desagradáveis africanos e magrebes, que foram trazidos para a França para serem explorados e cujos descendentes agora viraram problemas por causa do desemprego, miséria e racismo.

Sarkozy, quando ainda ministro, prometeu criar esse tal ministério, de imediato as associações de apoio aos imigrantes e de luta contra o racismo sustentaram que Sarkozy contribuía para consolidar preconceitos contra os estrangeiros ao sugerir que a identidade nacional francesa estaria ameaçada pela chegada de imigrantes. Somente o candidato de extrema direita, Le Pen e o conservador Philippe de Villiers, aprovaram a iniciativa. Mesmo o ex-primeiro ministro social-democrata Lionel Jospin, saiu a advertir que “impor a identidade nacional e transformá-la em objeto de uma administração é uma aspiração totalitária.”

Quando se trata de um país imperialista, como é a França, a identidade nacional não cumpre um papel progressista, como pode ser relativamente o nacionalismo antiimperialista dos países do terceiro mundo, ou a identidade de membros das comunidades indígenas, por exemplo.

Nos países imperialistas, a “identidade nacional” significa justificar a exploração e opressão dos povos dominados, idealizar sua sanguinária história de colonialismo e desculpar o mau trato racista aos imigrantes das colônias e seus descendentes.

O mais grave, é que também é uma arma da burguesia para apagar as diferenças de classes entre os mesmos “franceses descendentes de Asterix” e simultaneamente fazer com que se enfrentem entre si os trabalhadores e os pobres, segundo sua origem e cor da pele.

Preparando a resistência

As notícias do pacote de leis que prepara Sarkozy estão causando as primeiras respostas. Por exemplo, o anúncio pelo ministro Fillon de uma lei sobre a autonomia universitária motivou uma enérgica oposição entre os sindicatos do ensino superior e das principais organizações estudantis. O sindicato dos docentes lembrou que vários ministros da educação tiveram que renunciar diante das mobilizações contra leis semelhantes. Por sua vez, a UNEF, principal entidade estudantil exigiu o adiamento da votação da lei.

Entretanto, como de costume, grande parte da burocracia sindical tem iniciado uma traidora abertura de negociações, contribuindo com a manobra de Sarkozy de acalmar os ânimos e apresentar-se como aberto ao diálogo. Pensamos que não há nada a se negociar com Sarkozy, ao contrário, somente as lutas poderão deter seus intentos.

Porém, com as eleições legislativas em 10 de junho, os partidos que dizem se opor a Sarkozy, preferem se ocupar mas de pedir votos que chamar a mobilização. Isso não é surpreendente da parte dos socialistas, do PC e dos “antiglobalização”. Entretanto, que a Liga Comunista Revolucionária, seção do secretariado unificado, que tem participado das reuniões preparatórias destas mobilizações, também se oponha a convocá-la com o argumento de que terá pouca participação é uma vergonha total. O fato é que todos estão metidos até a cabeça em conseguir eleger um ou dois legisladores, enquanto Sarkozy e Fillon avançam rapidamente em seu plano de realizar o máximo de ataques aproveitando o recesso político e laboral do verão.



Uma farsa repugnante

O Conto dos “defensores da liberdade de imprensa”



Cláudio Testa - Socialismo ou Barbárie Internacional

Essas máquinas de mentir, enganar e falsificar conhecidas como “meios massivos de comunicação” (TVs, rádios, grandes diários e revistas) têm lançado nos últimos dias uma campanha mundial. De Nova Iorque a Buenos Aires, e daqui ao Japão, vomitam em distintos idiomas o mesmo livro: a “defesa da liberdade de imprensa” contra o terrível “tirano Chávez”. Temos que desmascarar esses mentirosos profissionais. Porém, ao mesmo tempo, o fato de Chávez não ter renovado a concessão da RCTV, nos dá a oportunidade de fixar uma posição ante o grave problema dos meios e como conseguir uma verdadeira liberdade de imprensa e de expressão cultural para os trabalhadores e explorados.

A tormenta foi desencadeada por uma medida tardia, porém absolutamente legal, nos marcos da Constituição e do direito burguês da Venezuela, tomada pelo governo de Chávez. Ao finalizar a concessão da Radio Caracas Televisión (RCTV) o governo decidiu não renovar. Temos que aclarar que em todos os países do mundo as freqüências de TV são do Estado, que as dão ou não em concessão, por um prazo determinado.

Por que falamos de medida tardia? Porque, na verdade, a RCTV há pelo menos 5 anos deveria ter sido fechada e seus donos e diretores presos, por terem cumprido o papel organizador e dirigente no fracassado golpe de estado de abril de 2002, que tentou instaurar uma ditadura militar ao estilo Pinochet. Nas poucas horas que durou o golpe, alentado a partir da embaixada yanqui e encabeçado pelo presidente da Fedecámaras (espécie de FIESP venezuelana), dezenas de trabalhadores e de ativistas foram assassinados, o que deixava claro a que serviria o golpe, caso se consolidasse no poder.

Essa tentativa criminosa foi derrotada pela combinação de uma importante mobilização operária e popular somada à recusa de um grande setor das forças armadas a irem ao golpe.

A RCTV e seus cupinchas não foram simples “informadores e/ou comentaristas” desses acontecimentos, ao contrário, estiveram pública e organicamente na cabeça do golpe. Em qualquer estado burguês teriam pago caro essa aventura, porém, por vários motivos, Chávez fez vista curta.

Possivelmente, Chávez esperava que RCTV e demais canais mudassem de conduta, o que concretamente não ocorreu. Não foram poucas as vezes em que exortaram militares reformados a novos golpes.

Liberdade de imprensa..... para quem ??

A não renovação da concessão da RCTV e o circo montado internacionalmente nos levam a um problema muito importante e de dimensões mundiais: que entre os 6 bilhões de habitantes do planeta, os únicos que tem realmente “liberdade de imprensa” são um punhado cada vez menor e mais concentrado de corporações que detêm o controle das cadeias de rádio, tv, jornais e revistas.

Nos EUA e América Latina são apenas 10 grandes grupos que dirigem o fundamental da TV, da imprensa e da chamada “indústria de entretenimento”. Trata-se das holdings AOL/Times Warner, Gannett Company, Inc., General Electric, The McClatchy Company/Knight–Ridder, News Corporation, The New York Times, The Washington Post, Viacom, Vivendi Universal y Walt Disney Company. Esses são os donos do circo em escala mundial.

São os que detêm os “picadores de cérebro” não só nos noticiários, mas também nas séries, novelas e “documentários” onde os yanquis são sempre bons e os árabes sempre terroristas, os latinos narcotraficantes e os governantes contrários aos EUA ditadores.

Trata-se, então, da liberdade de imprensa para essas 10 holdings e suas sucursais e sócios menores da América Latina e de outros continentes, que em outras palavras significa o direito a mentir como desejarem ou impor uma mordaça ao resto da humanidade.
Essa pretensa liberdade de imprensa que informou ao mundo que se deveria invadir o Iraque por causa das terríveis “armas de destruição massivas” que Sadam escondia debaixo da cama, ou que se silencia diante das lutas dos trabalhadores.

No caso da Venezuela, tanto RCTV, como Venevisión e Globovisión, se encontram nas mãos de algumas das aproximadamente “30 famílias” que compõem a grande burguesia pré-chavista, esses, por sua vez, associados ao capital norte-americano.

Nós, socialistas revolucionários, sempre denunciamos que as liberdades da “democracia” dos patrões ficam em grande medida no papel, porque os trabalhadores e explorados não as podem exercer com plenitude. Como ensinava Lênin, mesmo na máxima “democracia” burguesa, se os capitalistas são os donos da grande imprensa, a “liberdade de imprensa” para os trabalhadores de fato se transforma em ficção.

Porém, hoje em dia, isto se tem agravado qualitativamente. Isto porque o desenvolvimento da TV e do rádio tem acompanhado um curso de concentração monopólica do capitalismo. Hoje, um punhado de capitalistas, através da TV e do Rádio pretende ditar o que centenas de milhões devam pensar ou acreditar.

Nas últimas décadas, quanto mais se tem vociferado sobre a “liberdade de imprensa” mais se tem aplicado um processo de cerceamento à informação. O processo de monopolização de dimensões internacionais está terminado, mesmo com a imprensa burguesa, que há décadas aparecia com “independente” ou “crítica”, como o Lê Monde ou The New York Times. Hoje, o Lê Monde está nas mãos de um dos padrinhos de Sarkozy. Do grande diário burguês “independente”, “pluralista” e “progressista” só resta o mausoléu.

Pluralismo operário e popular ou monopólio do governo?
RCTV deve passar para as mãos dos trabalhadores!!!

É evidente que não podemos falar seriamente de “liberdade de imprensa” com os principais meios de comunicação, em escala nacional e mundial, nas mãos de alguns monopólios.
Por isso, o primeiro passo deve ser arrancá-los das mãos dos capitalistas mediante a expropriação e nacionalização. Porém, isto deixa sem resposta a questão mais importante: o que fazer com eles? Esse é um problema que está colocado na Venezuela após a justa medida de não renovar a concessão à RCTV.

Pensamos que a justa resposta deva ser o estabelecimento de um autêntico pluralismo operário e popular, isto é, que todas as expressões políticas, sociais e culturais da classe trabalhadora e do povo venezuelano possam expressar-se livremente e não só as oficialistas.

A falsa “liberdade de imprensa” dos multimilionários Granier-Phelps e seus sócios yanquis não pode ser substituída pelo monólogo do governo chavista. Este é um perigo real, porque o regime de Chávez, mesmo que se proclame “socialista”, está implementando uma experiência de Capitalismo de Estado, cuja sombra engorda novos setores burgueses. Por isso, Chávez tem como um de seus pilares a construção de um “partido único”, o PSUV, ao mesmo tempo em que tenta sufocar toda expressão independente e crítica, tanto no movimento operário como na esquerda.

Esta tem sido sua atitude frente a UNT (União Nacional dos Trabalhadores). E agora isto se aprofunda com a organização do PSUV, como um partido organizado verticalmente a partir do aparato de estado, ao melhor estilo peronista das primeiras décadas; seu projeto de manejo dos meios de comunicação não é muito diferente.

Acreditamos que os ativistas operários e socialistas da Venezuela devam lutar por outra alternativa: o mais amplo pluralismo operário e popular e a maior liberdade de expressão nos meios de comunicação para todas as correntes socialistas e antiimperialistas. Para isso, a administração da RCTV deve passas às mãos dos trabalhadores e não do governo!!

Chilenos denunciam destruição de glaciais por multinacionais
Os movimentos sociais do Chile estão mobilizando-se contra o projeto Pascua Lama, planejado por uma multinacional da qual George Bush pai é membro, a companhia Barrick Gold. O governo chileno já aprovou o projeto. As organizações denunciam que a destruição dos glaciais vai acabar com a fonte de água especialmente pura. Além disso, afirmam que o uso de cianureto e ácido sulfúrico no processo de extração contaminará para sempre os dois rios, de forma que nunca mais voltarão a ser aptos para consumo humano e/ou animal: "Até o último grama de ouro será enviado para fora do Chile. Para a gente do lugar, só lhes restará água envenenada e as doenças relacionadas".

As entidades pedem que essa notícia seja divulgada por todo o mundo, pois os camponeses não podem recorrer à TV por causa de uma proibição do Ministério do Interior. Dessa maneira, a única esperança para frear o projeto é obter ajuda da justiça internacional. "Não à mina aberta Pascua Lama na cordilheira andina sobre a fronteira entre Chile e Argentina. Pedimos ao governo chileno que não autorize o projeto Pascua Lama para proteger a totalidade de dois glaciais, a pureza da água dos vales de São Félix e El Tránsito, a qualidade da terra cultivável na região de Atacama e a qualidade de vida da gente afetada da região", destacam.

Na semana passada, dirigentes de organizações do Vale de Huasco se apresentaram diante da comissão de Recursos Naturais e Meio Ambiente da Câmara dos Deputados, denunciando a longa lista de irregularidades cometidas pelo governo e pela empresa no processo de avaliação ambiental e a entrega da Resolução de Qualificação Ambiental ao projeto de Barrick Gold. Eles mencionaram o perigo que constitui para um vale agrícola a existência de empresas mineiras irresponsáveis trabalhando na fronteira transportando bens e pessoas entre Argentina e Chile sem nenhum tipo de controle, provocando perdas para os agricultores.

Segundo o documento apresentado, a delegação denuncia que "não se consideraram informe e estudos da mesma DGA, nem as declarações da empresa onde se constatam os danos que têm provocado os trabalhos de exploração do projeto mineiro Pascua lama nos glaciais do setor". Eles exigem que se forme uma Comissão investigadora da Câmara sobre estas e outras irregularidades. Solicitam a paralisação das resoluções até que haja um pronunciamento da Câmara dando conta das investigações realizadas diante da comunidade.

Além disso, querem "impulsionar uma legislação que proíba a mineração química a céu aberto, especialmente em zonas de glaciais de diferente tipo, zonas de acumulação de neve, lagoas, nascente de rios e cabeceira de bacias, por ameaçar a quantidade e qualidade das águas em tempos de crise hídrica a nível mundial". As organizações reclamam a revisão e a anulação do Tratado Mineiro entre Chile e Argentina pelas contradições que esse possui em relação à soberania, ao meio ambiente e à vida das comunidades ameaçadas pelos projetos binacionais.

Fonte:Adital

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Viagem ao "muro" europeu


Sophie Boukhari

Algumas pessoas reúnem-se diante de um altar improvisado: uma caixa de televisão de papelão, coberta por um papel brilhante, sobre a qual há uma cruz e ramos de flores colhidas. Um pouco distante, algumas pedras dispostas sobre o chão indicam a direção de Meca. Em Oujda, cidade fronteiriça do nordeste do Marrocos, num lugar afastado dentro do campus universitário, os migrantes subsaarianos encontram-se retidos e têm grande necessidade de rezar, para continuar a crer em seu destino. Eles declaram que estão “nas mãos de Deus”.

No interior desse campo de retenção informal, 300 a 400 pessoas sobrevivem graças ao auxílio de associações locais, dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), à solidariedade de mulheres da região e à mísera renda obtida pela mendicância, por pequenos “bicos” e por tráficos diversos. Dormem sob lonas de plástico amarradas em árvores finas e nos muros do campus. Mal vestidas e desnutridas, estão expostas às repressões policiais e à lei das “máfias” que regem o local.

Os ocupantes são, na sua grande maioria, originários da Nigéria, Camarões, Senegal, Mali, Costa do Marfim e Republica Democrática do Congo (RDC). Alguns sobreviventes de Darfur desembocam no local de vez em quando. Com idade entre 18 a 30 anos, eles vivem agrupados por comunidades: francófonas de um lado, anglófonas de outro. A maioria tem um nível de educação que ultrapassa o ensino secundário e uma profissão. Em sua vida anterior, eram artesãos, operários, funcionários, agricultores, médicos ou engenheiros.

Para esses africanos que partiram “em busca da vida” na Europa, a região de Oujda representou, por muito tempo, uma última etapa antes de passar para “o outro lado da Terra”, menos violento e muito mais rico. A maioria partia atravessando o estreito de Gibraltar. Depois, passaram a buscar a entrada pelos enclaves espanhóis de Ceuta e de Melilla, estabelecidos como forma de sobrevivência singular na época de colonização, quando os fluxos de população trans-mediterrânea eram feitos no sentido Norte-Sul.

Tudo mudou após a reunião do Conselho Europeu em Sevilha, em junho de 2002. Conduzidos pelo então primeiro-ministro espanhol José Maria Aznar, diversos países do Velho Continente ameaçaram bloquear os auxílios financeiros aos países africandos de “saída” e de “trânsito” que não os ajudassem a combater os clandestinos. Objetivo: criar um cordão sanitário em torno da União Européia, encarregando os países vizinhos de reter os migrantes e os que pedem asilo, e de lidar com a violação dos direitos da pessoa referentes a essas situações.

Acordo Europa-Marrocos: migrantes encurralados

Diretamente visado, o Marrocos registra as conseqüências dessa nova determinação. Ele tem muito a perder, já que é o primeiro beneficiário (recebe em torno de 20%), dos fundos europeus destinados aos países mediterrâneos (MEDA). No total, a União Européia concede ao reinado marroquino 150 milhões de euros de auxílio por ano, sem contar os empréstimos.

Em novembro de 2003, Rabat promulgou a lei 02-03 sobre os migrantes irregulares. Inspirado no direito francês, o texto privilegia a dimensão repressiva, por mais que busque proteger os refugiados políticos, as mulheres grávidas e os menores de idade. No plano operacional, Rabat opta pela criação de uma diretoria, dentro do ministério do Interior, encarregada da migração e da vigilância das fronteiras e composta por milhares de homens.

A partir de 2004, a União Européia e seu aliado marroquino obstruem a rota de Gibraltar. Em seguida aos assaltos sangrentos do outono de 2005, os enclaves espanhóis são igualmente transformados em fortalezas praticamente invencíveis e as florestas ao redor são rastreadas pelas forças marroquinas. Assim, as rotas da migração desviam em direção ao Sul. Às “pateras”, barcos com 20 a 40 pessoas que visavam as margens andaluzes do Mediterrâneo, sucedem os “cayucos” de mais de 100 lugares. Esses partem em direção às Ilhas Canárias, a partir das praias do Saara Ocidental.

A partir de 2006, milhares de migrantes tentam realizar a viagem partindo de Nouadhibou (Mauritânia), de Dacar ou de Saint-Louis (Senegal). A travessia é mais longa e perigosa – um passageiro dentre seis morreria afogado, segundo as autoridades espanholas, no ano seguinte. Mas é menos custosa: 500 euros, aproximadamente, contra 1000 a 1300 euros via Laâyoune (Saara Ocidental).

Na saga de Alphonse, "a humilhação da pele negra"

Porém, a rota marroquina não foi abandonada. Ela, aliás, retomou sua força em 2007, após uma pausa ligada ao drama de Ceuta e de Melilla. É o que explica, em Oudja, Jelloul Arraj do Grupo de Auxílio aos Migrantes, criado por duas associações locais. Há alguns meses, novos migrantes vindos da Argélia chegam, a cada noite, à cidade. Eles misturam-se com os outros, que foram brutalmente interrompidos, em seu trajeto rumo à Europa. “A cada semana, há uma ou duas repressões”, testemunha Arraj. Os migrantes são inspecionados no mar, içados após um naufrágio ou simplesmente sofrem uma repressão policial, em Oujda e no resto do reino marroquino. Ninguém é poupado: nem as mulheres grávidas, nem as crianças, nem os refugiados ou os que pedem asilo. Em plena madrugada, todos são conduzidos para a fronteira argelina, situada a 13 quilômetros.

A maioria logo volta para o lado marroquino. No trajeto, esses migrantes são despojados do que têm pelos militares (argelinos e marroquinos), por bandos de larápios dos bairros pobres de Oujda ou por gangues de ladrões nigerianos. Inúmeros casos de estupro foram constatados pelas ONGs. As gangues praticam ainda seqüestros de pessoas, com pedido de resgate para a família que permanece no país de origem.

Além disso, em Oujda, há os migrantes “mais antigos”, os que estão retidos em Marrocos há anos e esperam. Como Alphonse, 34 anos, que deixou a República Democrática do Congo em outubro de 2002. Ele conta: “eu estava no último ano de agronomia em Kinshasa e militava contra [o presidente Joseph] Kabila. Meus amigos foram presos. Soube então que era procurado. Atravessei o rio, em direção a Brazzaville [capital do Congo]. Não voltei mais para minha casa: nem para me despedir da minha filhinha, nem para pegar minhas coisas. Na época, a idéia de ir para a Espanha nem passava pela minha cabeça”.

Há três anos, Alphonse espera. Após algumas aventuras que o conduziram de um “projeto” para outro, da Nigéria à Argélia, acabou se fixando em Oujda, por mais que continue indo, às vezes, para a floresta, a fim de tentar a passagem pelos enclaves — ou ainda para a Argélia, para trabalhar. Ele contou que vivenciou mais de 30 repressões policiais, duas delas após ter conseguido entrar em Melilla: “Te arrancam tudo — celular, dinheiro. Te colocam num caminhão que segue até o Sul durante 12 horas. Depois te jogam assim, no meio do deserto. É a humilhação da pele negra”. Hoje, Alphonse ajuda estudantes marroquinos que assistem a um curso científico; ele corrige, digitaliza e edita suas dissertações de fim de ano.

Entre a repressão da polícia e a máfia dos acampamentos

Alphonse continua a militar: via internet, a favor de uma outra RDC, e também pelos direitos dos migrantes, no Marrocos. “Aqui, vivemos no terror. Eu mesmo me tornei insone. Espero sempre uma repressão da polícia. Nos roubam tudo, nos esmurram, colocam 800 de nós num mesmo quarto, onde não conseguimos respirar. Tudo o que peço é o direito de ter direitos”.

Muito popular no local da universidade, Gustave estabeleceu seu “escritório” num cibercafé. Desempenha um papel intermediário para as OGNs, que não conseguem mais assegurar a distribuição de auxílio humanitário aos migrantes. “Luto para que todo mundo receba ajuda de maneira igualitária. Há, entre nós, líderes negativos, que visam os bolsos dos outros. Ontem, fui esbofeteado por um deles, mas isso não significa que eu vá desistir”, afirmou Gustave.

No início dessa primavera, a atmosfera do campus está mais do que tensa. Ao se aproximar a temporada das migrações (abril-setembro), os negócios são retomados. Dois chefões (“chairmen”) nigerianos se enfrentam para controlar o local. “Há alguns anos, os líderes eram intelectuais. Tivemos um professor de economia, um pediatra. Eles geriam o acampamento com sabedoria. Mas, com o passar dos anos, mais as pessoas perdem a esperança e mais o regime endurece. Agora, os que se impõem são os mais violentos”, testemunhou um agente humanitário. Uma pequena minoria de homens rege o esquema organizado, faz chantagens com os mais fracos e aterroriza os rebeldes. Eles servem também estão ligados aos bandos de ladrões que pilham a zona fronteiriça. Compreende-se assim por que alguns migrantes preferem evitar o campus e se esconder nos arredores, nas fazendas abandonadas e nos abrigos improvisados dentro dos bosques.

É o caso de Ali, um jovem gambiano de 24 anos. Exprimindo-se num inglês perfeito, Ali declarou: “Vim para cá para poder descansar. Estou exausto e repenso o que fiz. Deixei meu país em 15 de julho de 2005. Até 2004, tudo ia bem. Meu tio pagava meus estudos de economia na universidade de Banjul. Depois, ele morreu e como ninguém podia me ajudar, fui obrigado a abandonar a faculdade. Trabalhei um pouco numa empresa de transferência de câmbio, mas após dois meses o escritório fechou. Com o dinheiro que havia ganhado, fiz um curso de informática, pois adoro estudar. Gostaria de continuar. Um amigo me disse que poderia fazer isso na Europa. Eu só tinha que partir com ele”.

Uma bala de borracha no joelho: Ali não ameaça mais as cercas

Ali juntou 500 euros que possibilitaram sua ida a Marrocos, via Senegal, Mali e Argélia. Eis o seu relato: “Participei do ataque em massa às cercas de arame que isolam Melilla no outono de 2005. Recebi uma bala de borracha no joelho. Os espanhóis me capturaram e me mandaram para o Marrocos. Fui arrastado para Oujda antes de poder passar novamente para o lado argelino, para Maghnia. Tive que permanecer imóvel por causa do meu joelho. Como falava bem o árabe, os argelinos me ajudaram. Pessoas da Sunna me levaram e me abrigaram em Argel, onde permaneci durante três meses. Mas essas pessoas são vigiadas pela polícia. Um dia, fui preso e depois libertado. O homem da Sunna me deu 100 euros e mandou que eu partisse. Retornei pelas florestas do Marrocos. Junto com quatro outros homens. Voltei a atacar as cercas de arame de Melilla. Dois conseguiram atravessar, mas eu fui pego e mais uma vez levado para a fronteira argelina, próximo a Oujda em dezembro de 2006. Com meu joelho estourado, já não posso atacar as cercas de arame. Preciso arranjar dinheiro para tentar atravessar de outra maneira. Não vejo lugar para mim na África”.

“Não podemos voltar para nossa casa de mãos vazias, depois de terem roubado todo nosso dinheiro. Permanecerei aqui até encontrar uma solução”, afirmou um dos companheiros de Seydou, um jovem camaronês de 22 anos.

Se a rota de Oujda tem novamente uma certa procura, é porque surgiram novos esquemas organizados de travessia. Para os migrantes, tudo é uma questão de meios. Para atravessar, é necessário ter em primeiro lugar o dinheiro; em segundo, sorte. O ataque às cercas de arame que isolam os enclaves espanhóis, por mais que esteja fadado ao fracasso, é a única via de acesso para os pobres. Para aqueles que dispõem de mil euros, a nova rota de Rif (das costas do nordeste do Marrocos até a zona da Almeria na Espanha) pode valer a pena, caso se encontre uma pessoa honesta para conduzir a travessia e um mar calmo.

Pelo mesmo preço, é possível também tentar entrar em Ceuta e Melilla, escondendo-se num carro ou num caminhão. “Esses enclaves são redutos do contrabando: droga, cigarros etc. O tráfico de migrantes é apenas um dentre outros”, lembra outro agente humanitário. Em Melilla, os migrantes asiáticos que vieram pela África e pelo Marrocos são, hoje, mais numerosos do que os subsaarianos. Eles pagam muito caro ao partir, até dez mil dólares por pessoa, e têm esquemas de passagem bem estruturados.

Sob a repressão surge uma comunidade informal

Mas é nas cidades da costa atlântica que a maioria das pessoas em trânsito em Oujda vão tentar a sorte. Segundo Javier Gabaldón, coordenador dos Médicos Sem Fronteiras no Marrocos, é possível observar duas grandes tendências, desde os acontecimentos de Ceuta e de Melilla. A primeira é um “acomodamento” dos migrantes. A segunda é o aumento da intensidade da violência da qual eles são vítimas, inclusive a violência por parte de si mesmos. Cerca de 30% dos casos de violência são imputados aos traficantes africanos, contra 35% referentes às forças de segurança marroquinas e 31% aos delinqüentes marroquinos. “Constatamos, também, um crescimento muito preocupante dos casos de violência sexual, na ocasião das repressões policiais”, acrescentou Gabaldón.

Hoje, em torno de 80% de 10 mil migrantes africanos no Marrocos estão agrupados em Rabat e um número menor em Casablanca. A capital do reinado marroquino se tornou o “grande centro” dos esquemas organizados e uma etapa obrigatória antes de Laâyoune e da viagem para as Ilhas Canárias. Lá, os africanos vivem em apartamentos alugados pelo dobro do preço de mercado e sofrem agressão se não pagarem. Cada comunidade tem o seu espaço predileto, seu chefe, sua lei e suas redes de relação. “Os novos mantêm a vida dos mais velhos. Quando se chega a um alojamento, é preciso pagar uma “taxa de gueto” de 50 euros”, explica Gwenaëlle de Jacquelot, da Caritas, ONG católica que administra um abrigo para migrantes. Como os clandestinos não têm acesso ao emprego, eles desenvolvem uma economia informal de sobrevivência.

“Tudo é muito estruturado, e a organização se acentua cada vez mais”, explica Pierre Tainturier, dos Médicos do Mundo. Os “chairmen” embolsam rendas expressivas. Eles gerem seus grupos e as transações de seus “protegidos” com os “connection men“ — homens-chaves que dispõem de todos os contatos necessários para organizar a travessia, inclusive dentro da polícia ou do exército.

Os outros migrantes viram-se como podem para financiar sua estada provisória e acumular o necessário para poder partir. Alguns recebem dinheiro da família que permaneceu no país de origem. Outros mendigam ou comercializam legumes e roupas como vendedores ambulantes. Além disso, há os tráficos: dinheiro falso, prostíbulos, documentos falsos.

"É preciso correr atrás de um homem, que pede teu corpo em troca

Nesse sistema cada vez mais opressor, a vida é um inferno para os mais vulneráveis. A começar pelas mulheres, quase todas condenadas a se vender para poder contar com um teto ou um quarto de dez dirhams (um euro).

Françoise, uma congolesa de 29 anos, que chegou em Rabat em 2004, explica a situação: “Abandonamos nosso país, porque não dava mais. Mas não queríamos essa vida. O tempo todo, somos caçados, jogados em Oujda e violentados. É preciso sempre correr atrás de um homem que te pede o teu corpo em troca. Depois, ele te deixa grávida ou doente (AIDS). Só Deus sabe quando deixaremos essa miséria”.

A percurso de Françoise é uma via-crucis tragicamente banal para uma mulher migrante. Eis sua experiência: “Deixei a República Democrática do Congo em 2001, por causa da situação política. Tinha 21 anos. Meu pai era um militar de Mobutu. Quando Kabila tomou o poder, ele foi enviado para o Norte, para Kisangani. Um dia, os rebeldes atacaram seu acampamento militar e pediram as armas. Meu pai passou para o lado deles. Kabila se vingou. Mandou seus homens para nossa casa em Kinshasa. Minha mãe foi estuprada na minha frente e minha tia, morta. Eu tive um ataque e fiquei com um lado do corpo paralisado. Vizinhos me levaram para o hospital, onde passei pelo menos um ano. Ao deixá-lo, soube que minha família tinha partido para Brazzaville. Minha mãe tinha me deixado dinheiro, com um amigo. Peguei a quantia e fui em busca dela”.

Françoise nunca mais reencontrou sua família. Procurou até em Camarões, onde foi conduzida ao Norte, pelos esquemas organizados. “Eu não conhecia ninguém e era obrigada a continuar. No Níger, um senhor nos amontoou num jipe. Havia malineses, nigerianos e somente duas mulheres, uma delas com uma criança. Seguimos viagem, mas o chofer nos abandonou no meio do deserto. Ao longe, avistávamos as luzes de Djanet, na Argélia”.

"Um camaronês se afogou na minha frente. Os pescadores me salvaram"

“Homens nem brancos nem negros vieram. Levaram tudo o que tínhamos e me estupraram, assim como as outras mulheres. Comecei a vomitar sangue e a respirar com dificuldade. Mas era preciso continuar. Fomos a pé até Djanet, onde os ’irmãos’ me deixaram num hospital”. Ali, Françoise encontrou uma argelina que cuidou dela: “Ela morava em Argel e me fez acompanhá-la até lá. Eu cuidava da sua casa e a ajudava em seu salão de cabeleireiro. Ela me pagava e me tratava bem. Passei um ano assim e, então, decidi ir pro Marrocos. Na época, em 2004, o país era mais seguro para pessoas sem documento. Na Argélia, quando há uma repressão, você tem que fugir por milhares de quilômetros”.

“Em 2005, os homens foram atacar as cercas de arame que isolam Ceuta. Eu não podia acompanhá-los. Com um grupo, optamos por contornar o enclave de madrugada, pelo mar. Guias marroquinos te dão câmarascde ar, nas quais você se engancha, e nadam puxando três pessoas ligadas por cordas. Mas, o meu guia não agüentou o frio e me largou. Fiquei cinco horas na água absurdamente gelada. Um jovem camaronês se afogou na minha frente. Finalmente, quando amanhecia, pescadores vieram nos salvar ”.

Depois de ainda ter de passar alguns meses sendo perseguida na floresta, Françoise finalmente conseguiu seguir seu grupo em Rabat. “Nós andamos durante 20 dias, nos escondendo. Cheguei aqui em 24 de fevereiro de 2005”. Hoje, Françoise se vira sozinha, evita os homens e as “máfias”. Ela mora num canto da cozinha de uma mulher marroquina que lhe cobra 150 DH por mês (14 euros). Para viver, conta com as associações, igrejas e com o pouco de dinheiro que lhe proporciona sua habilidade de cabeleireira clandestina.

Possível saída: "Tirar a África da crise em que ela afunda"

Françoise também é uma das pessoas que pedem asilo e são reconhecidas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Desde a abertura de seu escritório em Rabat, no início de 2005, o ACNUR registrou, em média, cem pedidos de asilo por mês, essencialmente de pessoas oriundas da República Democrática do Congo e da Costa do Marfim. Até agora, concedeu o estatuto de refugiado a menos de 400 pessoas, o que revela uma taxa de reconhecimento de 17%.

Contudo, o fato de Françoise ter escapado das repressões policiais deve-se mais a sua discrição do que ao estatuto teoricamente protetor. O Marrocos – que apresenta graves déficits sociais – não quer nem ouvir falar de instaurar um direito de asilo sobre o seu território, como lhe pedem o ACNUR e a União Européia. Resultado: os refugiados não têm direito nem à “carteira de permanência de estrangeiro”, nem à permissão de trabalho que lhes permitiria reconstruir suas vidas no país, caso não conseguissem atingir a Europa. E pior, são regularmente pegos em repressões policiais e arrastados para a fronteira argelina, apesar da lei 02-03 e da Convenção de Genebra, que supostamente os protegeriam.

Para Mohamed Kachani, está mais do que na hora de acabar com a obsessão de segurança e considerar a problemática das migrações na sua globalidade. É necessário “agir no nível das causas fundamentas”, defende ele. Para isso, o primeiro imperativo seria se comprometer, seriamente, em tirar a África da crise na qual ela afunda.

Fonte:DiploBr

Tradução: Leonardo Teixeira da Rocha
leorocha2003@yahoo.com.br


O etanol e a invasão estrangeira

Altamiro Borges*

A revista empresarial Exame, no seu anuário do agronegócio publicado neste
mês, confirma: o capital estrangeiro está invadindo as terras brasileiras. O
etanol é o motivo desta gula. Apresentado como fonte alternativa de energia,
num mundo em que o combustível fóssil, o petróleo, dá sinais de fadiga e
agrava perigosamente o aquecimento global, este derivado do álcool é a nova
coqueluche das multinacionais e dos especuladores. Já o Brasil, por suas
enormes vantagens comparativas – abundância e qualidade das terras, preço
relativamente baixo das propriedades, mão-de-obra barata e capacidade
tecnológica – surge como uma “janela de oportunidades”, para citar um termo
da moda, para os saqueadores capitalistas.

“Num ritmo febril, têm sido anunciadas quase a cada semana novas parcerias,
operações de compra e organização de fundos de investimento destinados a
colocar dinheiro na produção de álcool no país. De acordo com a consultoria
Datagro, os estrangeiros investiram 2,2 bilhões de dólares no setor desde
2000”, festeja a revista. “Da lista das dez maiores empresas do setor no
Brasil, quatro já possuem participação de capital estrangeiro: Cosan,
Bonfim, LDC Bioenergia e Guarani. Uma quinta companhia, a Santa Elisa, fez
recentemente parceria com a americana Global Foods para constituir a
Companhia Nacional de Açúcar e Álcool, cujo plano é investir R$ 2 bilhões na
construção de quatro usinas em Goiás e Minas Gerais.”

“LÍDER DO MERCADO MUNDIAL”

Ainda segundo a revista empresarial, “é fácil entender o motivo de tanto
interesse de grupos estrangeiros. Maior produtor mundial de cana-de-açúcar,
o Brasil disputa a liderança do mercado de etanol com os EUA, que faz álcool
combustível do milho. A meta dos americanos, reafirmada pelo presidente
George W. Bush durante recente visita ao Brasil, é reduzir o consumo de
combustíveis fósseis em 20% até 2017. Isso significa que, nos próximos dez
anos, somente nos Estados Unidos a demanda por etanol pode atingir 132
bilhões de litros por ano. É mais de três vezes a atual produção mundial de
etanol”.

Da produção mundial de 40 bilhões de litros, o Brasil é responsável por uma
fatia de cerca de 16 bilhões, mas tem reais possibilidades de aumentar a sua
participação. O país é de longe o fabricante mais eficiente, com um custo de
produção de US$ 0,22 por litro de etanol, diante de 0,30 dos EUA e de 0,53
da União Européia. Além disso, comemora a revista, “tem área suficiente para
multiplicar as plantações e atender ao esperado aumento da demanda. Segundo
a Datagro, a quantidade de cana moída no país deverá aumentar de 473 milhões
de toneladas na próxima safra para 700 milhões em 2014. Isso vai exigir
investimentos em 114 novas usinas – hoje o Brasil tem 357 unidades em
operação e outras 43 em construção”.

A GULA DOS ESPECULADORES

Como um típico folheto publicitário, a revista da Editora Abril enaltece os
especuladores que descobriram este filão. “O melhor exemplo é o
megainvestidor húngaro George Soros, dono de uma fortuna estimada em US$ 8,5
bilhões. Ele se tornou um dos sócios da Adecoagro, que comprou a Usina Monte
Alegre, em Minas Gerais, e está construindo uma nova usina em Mato Grosso do
Sul. Outro investidor que decidiu apostar no etanol brasileiro é o
bilionário indiano Vinod Khosla, um capitalista de risco que fez fortuna nos
EUA com suas tacadas certeiras [inclusive bancando o Google]. Khosla é sócio
da Brazil Renewable Energy Company (Brenco), empresa lançada em março por
Henri Phillipe Reichstul, ex-presidente da Petrobras”. Outro sócio da Brenco
é o australiano James Wolfensohon, ex-presidente do Banco Mundial.

Os especuladores, num mundo dominado pela ditadura do capital financeiro,
são os maiores interessados nesta nova fonte de riqueza – e até se
travestem, na maior caradura, de ecologistas. Entre os fundos de
investimentos que já abocanharam terras brasileiras, a Exame cita a
estadunidense Kidd&Company, que detém o controle da usina Coopernavi e
participa da empresa Infinity Bio-Energy em conjunto com a corretora Merrill
Lynch. A Infinity já é dona de quatro usinas no país e, no ano passado,
arrecadou US$ 300 milhões nos mercados financeiros exclusivamente para
investir no setor sucroalcooleiro nacional. “Não foi difícil convencer os
estrangeiros a investir no etanol do Brasil, pois eles já tinham a percepção
das vantagens comparativas do país”, explica Sérgio Thompson Flores,
principal executivo da Infinity.

SOROS, GATES E OUTROS “ECOLOGISTAS”

Já a poderosa Cargill, com faturamento R$ 10,9 bilhões no país e forte
domínio no setor dos transgênicos, adquiriu em junho passado o controle
acionário da Cevasa, no interior paulista. Outro gigante da área, a Bunge,
tentou abocanhar a Usina Vale do Rosário, a terceira maior produtora de
açúcar e álcool do país – mas as negociações empacaram. Já o grupo Pacific
Ethanol, que tem como sócio o bilionário Bill Gates, dono da Microsoft,
contratou a consultoria KPMG para coordenar sua expansão no Brasil. “Há sete
anos, eu tinha um único cliente em operações de fusões e aquisições
interessado no etanol brasileiro. Hoje, 80% de minha carteira é formada por
interessados nesse setor”, revela André Castelo Branco, sócio da KPMG.

Mas não são apenas as multinacionais estadunidenses que estão de olho nas
terras brasileiras. Há também fortes corporações européias e japonesas.
Ainda segundo a revista Exame, um “investidor de risco”, nome fantasia dado
aos especuladores, é o grupo francês Louis Dreyfus, que já controla as
usinas Luciânia, em Minas Gerais, e Cresciumal e São Carlos, no interior
paulista, e que comprou, em fevereiro último, quatro usinas do grupo
pernambucano Tavares de Melo. Já o grupo Tereos, também de origem francesa,
tem 6,3% de participação na Cosan, 47,5% da Franco Brasileira de Açúcar e
100% da Açúcar Guarani.

“TERRAS E MÃO-DE-OBRA BARATAS”

O anuário do agronegócio da revista Exame só corrobora outras informações
que têm pipocado na mídia. A mesma publicação já havia antecipado em abril
passado “a nova onda de investidores estrangeiros em terras brasileiras”.
Dava conta que o fazendeiro australiano Robert Newel tinha investido US$ 4,5
milhões na compra de 11.350 hectares no município de Rosário, no oeste da
Bahia, e que o multibilionário fundo de pensão da Califórnia (EUA), o
Calpers, era dono de 23 mil hectares de terras nos estados do Paraná e de
Santa Catarina. “Além do aceso à terra e mão-de-obra muito mais baratas,
venho do continente mais seco do mundo e posso dizer que Rosário é um
verdadeiro paraíso para a agricultura”, explicou Newel.

Segundo o artigo, esta seria a segunda onda de investimentos externos no
campo brasileiro. “No primeiro movimento, ocorrido no início desta década,
alguns fazendeiros, sobretudo norte-americanos, começaram a investir no
país, atraídos pelo baixo custo da mão-de-obra e das propriedades. Um
hectare de terra nos EUA chega a custar mais do que o triplo. O novo fluxo
de capital estrangeiro alimenta-se de fenômenos mais recentes [como a
produção de combustíveis renováveis]. Além das vantagens naturais como o
clima e abundância de água, o Brasil dispõe hoje da maior área para
incrementar a produção no campo. Estima-se que existam cerca de 90 milhões
de hectares ainda inexplorados e prontos para a atividade agrícola.”

PROPAGANDA NA INTERNET

A tendência é que a gula dos investidores estrangeiros aumente muito mais. A
advogada Isabel Franco, do escritório Demarest&Almeida, que presta
assessoria aos ricaços, garante: “É dinheiro grosso chegando por ai”.
Anderson Galvão, da consultoria Céleres, concorda: “Eles estão muito
interessados e dinheiro é o que não falta”. Sua empresa foi contratada por
quatro fundos estrangeiros que já dispõem de cerca de US$ 400 milhões para a
aquisição de fazendas no Brasil. Toda esta euforia decorre da “exuberância
irracional” do sistema capitalista. Enquanto o planeta padece na miséria, os
rentistas já investiram nos primeiros cinco meses do ano 2,18 trilhões de
dólares (4,25 trilhões de reais) em fusões e aquisições de empresas no
mundo.

A produção de etanol no Brasil se torna um negócio altamente lucrativo para
estes capitais especulativos, inclusive para os predatórios fundos private
equity, especializados na compra de propriedades. O boom é tão violento que
já existem sites na Internet fazendo propaganda do agronegócio no país. Eles
oferecem pacotes de viagens para os interessados em visitar fazendas no
país. O endereço de um desses serviços, o da consultoria AgBrazil, contém na
primeira página a mensagem: “Welcome to a world of opportunities” (bem-vindo
a um mundo de oportunidades). Segundo Plilip Warnken, dono da AgBrazil,
sediada em Columbia, no Missouri (EUA), “as oportunidades do agronegócio
brasileiro superam a imaginação”.

NEGÓCIOS DOS RICOS E FAMOSOS

Reportagem do jornal O Globo, do início de junho, revela que o etanol
“entrou na agenda de negócios dos ricos e famosos”. Figurões do esporte, do
mercado financeiro e até ex-membros do governo já entraram em campo. Entre
outros, ela cita dois ex-presidentes do Banco Central na gestão de FHC,
Gustavo Franco e Armínio Fraga, e dois ex-ministros do governo Lula, Luis
Fernando Furlan e Roberto Rodrigues. Logo que deixou o Ministério da
Agricultura, Rodrigues se uniu a Jeb Bush, irmão do presidente dos EUA, ao
presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Alberto Moreno, e ao
ex-primeiro-ministro do Japão, Junichiro Koizumi, para montar uma
consultoria com o objetivo de divulgar o etanol pelo mundo.

A reportagem também dá destaque ao ex-presidente da Petrobras, Henri
Phillipe Reichstul, líder de um megafundo de investimentos que teria US$ 2
bilhões destinados ao etanol. Outra figura de peso é o todo-poderoso da
Ambev, Jorge Paulo Lemann, segundo homem mais rico do Brasil. Ainda circulam
rumores de que Naji Nahas – símbolo da especulação nacional – estuda
projetos nesta área. “Este é o mercado do futuro”, afirma o presidente da
Ethanol Trading, Roberto Giannetti da Fonseca, ex-secretário-executivo da
Câmara de Comércio Exterior (Camex) no governo FHC. O lucro fácil também já
atraiu o banqueiro Daniel Dantas, dono do Opportunity, que comprou
recentemente cem mil hectares da terra no Pará.

EXPLOSÃO DO PREÇO DO HECTARE

Desde a criminosa onda de privatizações do governo FHC, o país não assistia
a um volume tão grande de investimentos estrangeiros diretos. Somente nos
três primeiros meses de 2007, o Banco Central registrou o ingresso de US$
6,5 bilhões – aumento de 66% em relação ao mesmo período do ano passado. O
maior responsável por este aumento recorde foi o etanol. A gula por terras
nativas é tanta que já se observa uma violenta alta dos preços no campo. “Na
corrida para não ficar de fora desse mercado, quem quiser adquirir uma usina
brasileira deve se dispor a pagar, hoje, mais que o dobro do valor médio
registrado em 2005. Mesmo com a disparada dos valores, não faltam
interessados em abrir o cofre”, aconselha a Exame.

Reportagem do jornal O Globo do início de junho atesta que “o crescimento
dos projetos envolvendo o plantio de cana-de-açúcar e a produção do etanol
fez explodirem os preços das terras no país”. Em abril passado, o valor do
hectare atingiu o seu pico histórico. Na Zona da Mata de Alagoas, o preço
subiu 84%; em Araraquara, interior paulista, o hectare se valorizou em 70% e
a cana já está ocupando o espaço antes reservado aos grãos e às pastagens.
“Há dois anos atrás, só se falava em soja. Agora, a vedete é o etanol. Esta
inflação está estritamente ligada ao etanol”, confirma a engenheira agrônoma
Jacqueline Dettman. A cana já ocupa 3,4 milhões de hectares em São Paulo, o
equivalente a 52% do plantio do produto no país.

O REAL PERIGO DA DESNACIONALIZAÇÃO

Na sua obsessão pelo crescimento, o governo Lula parece não medir as
conseqüências da célere invasão estrangeira. Há várias linhas de crédito,
inclusive do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES),
para bancar as poderosas multinacionais e os barões do agronegócio nativos.
Segundo o deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS), presidente da Subcomissão de
Política Agrícola da Câmara, há estudos para repassar verbas do Fundo de
Amparo ao Trabalhador (FAT), criado para subsidiar o seguro-desemprego e
outros programas sociais, para refinanciar as dívidas dos produtores rurais
– calculadas em R$ 4 bilhões. O objetivo seria exatamente o de alavancar a
construção de usinas e a produção do etanol.

Há certo consenso de que a produção de biocombustíveis é uma necessidade
imperiosa na atualidade. Diante dos sinais de fadiga do petróleo e dos
efeitos destrutivos deste combustível fóssil, até as entidades
ambientalistas menos ortodoxas concordam que é urgente investir em fontes
alternativas de energia. Por outro lado, o Brasil, por suas inúmeras
vantagens comparativas, surge com todas as condições de explorar de maneira
sustentável esta nova matriz energética. Mas as possibilidades do etanol não
devem embriagar os setores mais críticos da sociedade. Há muitos riscos
neste campo. A atual febre do etanol indica que ou o Brasil adota mecanismos
para proteger a sua economia ou o processo de desnacionalização,
concentração de terras e precarização do trabalho será inevitável!

* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da
revista Debate Sindical e autor do livro “Venezuela: Originalidade e
ousadia” (Editora Anita Garibaldi, 3ª edição).