domingo, 30 de setembro de 2012

“Fui usada para espalhar o medo”, afirma a ex-pantera negra Angela Davis

 



     
 
Em entrevista, Davis analisa o período em que foi presa e julgada nos Estados Unidos em um processo eminentemente político que teve grande repercussão internacional
 
 
Luciano Monteagudo,
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
 
 
   
   Angela Davis, quando militava no Panteras Negras - Foto: Reprodução
40 anos depois das graves acusações que a levaram a ser julgada e presa nos Estados Unidos, em processo eminentemente político que teve grande repercussão internacional, Angela Davis analisa nesta entrevista aquela etapa difícil de sua vida. Ao referir-se à atual situação dos negros nos EUA, Angela diz que “as coisas são piores, hoje, com um negro na Casa Branca”.
“Acho que meus princípios não mudaram em todos esses anos. Nem meu compromisso político.” É o que diz Angela Davis, uma das mais famosas ativistas políticas dos anos 1960 e 1970, figura icônica, não só pelo discurso fortemente revolucionário e pela destacada militância nos “Panteras Negras”, mas também pelo penteado ‘afro’ que fez moda em todo o planeta entre as mulheres negras e brancas.
Hoje, com 68 anos, intelectual e professora universitária, formada na Universidade de Frankfurt onde estudou sob orientação de Herbert Marcuse, Angela Davis participou do Festival Internacional de Cinema de Toronto [Toronto International Film Festival], no dia 15 de setembro, para apoiar o lançamento do documentário Free Angela & All Political Prisoners [Liberdade para Angela & Todos os Prisioneiros Políticos].
Dirigida por Shola Lynch, o filme narra os padecimentos de Davis há 42 anos, quando foi envolvida pelo FBI no sequestro e morte do juiz Harold Haley, do condado de Marin, na California. Angela acabou por ser absolvida, apesar da pressão que fez contra ela o governador da California, Ronald Reagan, o qual, em 1969, conseguira expulsá-la da Universidade da California (UCLA) pela declarada militância de Davis no Partido Comunista.
Foragida da Justiça, na qual evidentemente não confiava, Angela Davis chegou a integrar, aos 24 anos, a lista dos 10 foragidos mais procurados do FBI, até afinal ser localizada e presa, em outubro de 1970. Cresceu então uma campanha internacional por sua libertação, que contou com a solidariedade até de John Lennon e Yoko Ono, que compuseram a canção “Angela” para seu LP Some Time in New York City (1972) , e dos Rolling Stones, que gravaram um single, “Sweet Black Angel”, incluído em seguida no álbum Exile on Main Street (1972).
“Nunca procurei esse grau de exposição pública e foi muito difícil de aceitar, naquela época” – lembra Miss Davis em entrevista exclusiva ao jornal Página/12, numa suíte do Soho Metrotel de Toronto. “Minha aproximação original foi estritamente política, e nem nos meus sonhos mais loucos pensei que seria empurrada nessa direção. Mas, ao mesmo tempo, fui consciente de que era algo com que teria de aprender a conviver. Portanto, decidi tratar de usar aquilo tudo, nem tanto em meu nome, mas em nome de tanta gente que não tinha voz naquele momento.”
 
A senhora refere-se a seus companheiros de militância nos Panteras Negras?
Exatamente. Porque a campanha nacional pela minha libertação começou sob a bandeira de “Libertem Angela Davis”, mas decidi que teria de ser “Libertem Angela Davis e todos os presos políticos” – a frase que Shola Lynch escolheu para título do seu documentário.
 
No filme, a senhora diz que a tripla pena de morte que os promotores pediram, no seu caso, não se dirigia pessoalmente à senhora, mas a toda a construção que a senhora encarnava. Pode falar um pouco mais sobre isso?
Logo percebi que todo aquela fúria contra mim excedia minha pessoa e a minha situação pessoal. Em primeiro lugar, porque não conseguiriam me executar três vezes. Percebi também do que se tratava ali. Estavam decididos a matar um inimigo imaginário que estava sendo construído. E eu era a encarnação perfeita do inimigo que eles começavam a construir: negra, mulher e comunista. Quando o FBI começou a me perseguir, aproveitaram prender centenas de mulheres negras e jovens como eu. Aproveitaram a situação para tentar espalhar o medo em toda a comunidade negra nos EUA.
 
Desde então, o que mudou?
Acho que muitas coisas mudaram. E penso que mudaram, em grande medida, por causa da luta que fizemos. Quando cheguei à universidade, eram raríssimas as negras em cursos superiores nos EUA. Hoje, são milhões, embora ainda haja enorme desproporção entre negros e brancos nos cursos superiores. Hoje o que me angustia muito é que, naquele tempo, quando lutávamos pela libertação de todos os presos políticos em especial e contra a instituição carceral em geral, surpreendeu-nos muito a quantidade de gente presa nos EUA. Mas hoje, esse número é muitas vezes maior. Hoje, em meu país, há 2,5 milhões de pessoas encarceradas. Um, de cada 37 adultos vive no sistema penitenciário. É porcentagem altíssima. Os EUA somos o país de maior população encarcerada no mundo.
 
E a que a senhora atribui isso?
Há a miséria, sem dúvida. A maioria dos homens negros jovens nos EUA estão hoje desempregados. Há aí o problema político, mas há também o racismo. É verdade que os livros escolares já não manifestam abertamente o racismo, como antes, e que já não há segregação racial oficial, mas em muitos sentidos a situação é hoje pior que antes, há meio século.
 

   
   Angela Davis, atualmente - Foto: Reprodução
Apesar do presidente afroamericano, Barack Obama?
Sim, é triste dizer, mas as coisas são piores com um presidente afroamericano na Casa Branca. Essa é a ironia. Porque há meio século era impensável que um negro chegasse, algum dia à presidência dos EUA. Hoje, é possível. Mas também é preciso dizer que ninguém, na Casa Branca, hoje, está preocupado com o fato de que há um milhão de negros nas prisões norte-americanas. E isso tem relação direta com o desmantelamento completo do sistema de bem-estar social e com a desindustrialização pela qual os EUA estão passando, e a consequente perda de postos de trabalho. Antes, a população negra tinha onde trabalhar, na indústria siderúrgica, na indústria automobilística, em tantas outras indústrias que já deixaram os EUA e mudaram-se para outros países onde a mão de obra é muito mais barata. Eu nasci e fui criada em Birmingham, Alabama, e ali a indústria siderúrgica era era a principal fonte de trabalho. Ainda é, mas com muito menos postos de trabalho que antes. E se se soma a isso a falta de assistência social, a falta de educação, a falta de sistema eficiente de assistência pública à saúde, as prisões viram uma espécie de solução ao avesso, para todos os problemas sociais que não recebem qualquer atenção política.
 
Já que falamos de prisões... Por que, na sua avaliação, Obama não cumpriu a promessa de fechar a prisão de Guantánamo?
Deveria tê-la fechado no primeiro momento. Deveria ter sido seu primeiro ato oficial. Em vários sentidos, a chamada “guerra ao terrorismo” atropelou Obama. Mas também é verdade que a principal razão pela qual Obama não fechou Guantánamo foi que não saímos às ruas para exigir que fechasse. Em várias instâncias, os eleitores que elegeram Obama não se mantiveram mobilizados e em alerta. Teria sido preciso criar um movimento para fechar Guantánamo, um movimento que pressionasse, até Guantánamo ser fechada. Também para criar melhor sistema de saúde pública, de educação etc. São coisas que ainda temos de fazer.
 
Para as próximas eleições?
Claro. Já. Imediatamente. Temos de sair e ocupar os espaços, construir para nós uma dimensão do que é necessário e possível fazer.

[Eleições Municipais] A desconstrução política

 





Frei Betto

Escritor e assessor de movimentos sociais

Adital

A atual campanha eleitoral às prefeituras tem muito de temperamental. No início, candidatos majoritários prometiam evitar baixarias e se pautar pelos compromissos elencados nos programas partidários. Seria uma campanha de "alto nível” disseram alguns, até porque representam partidos que convergem no apoio ao governo Dilma.
Assim, nos primeiros debates no rádio e na TV cada candidato se esforçava para convencer o eleitor de que, caso mereça ser eleito, a nova administração municipal (ainda que de um candidato à reeleição) será melhor que a anterior. Haverá avanços no atendimento à saúde, na qualidade da escola pública, no transporte coletivo, na coleta de lixo etc. Gerenciar bem a cidade é o que importa.
Então surgiram as pesquisas – o fantasma estatístico que, como espada de Dâmocles, paira sobre a cabeça de cada concorrente ao pleito. A pesquisa indica a chance de vitória de cada aspirante a futuro prefeito. Uma outra pesquisa aponta ao candidato como o público reage a seus programas no rádio e na TV.
Ora, o público televisivo-internáutico do Brasil não merece aplausos em matéria de preferência. Gosta de baixaria real (Big Brother) ou virtual (novelas). Nada que faça pensar e ter opções próprias. E programa de governo faz pensar e exige um mínimo de discernimento crítico.
O que dá ibope é a relação conflituosa entre Carminha e Nina, e não entre a máfia da especulação imobiliária e os sem-teto e os que vivem de aluguel.
Assim, candidatos com índices insuficientes de preferência eleitoral, e também aqueles que, à frente no páreo, se sentem ameaçados pelos concorrentes tendem, na reta final da campanha, a esquecer as promessas administrativas e partir para a agressão verbal. Qual mágicos de um circo de terror, tiram da cartola todas as acusações, mazelas e maracutaias que possam afetar os adversários.
O mais curioso é que, na falta de reforma política (sempre prometida e adiada), os eleitores assistem à uma esdrúxula panaceia. Aliados de ontem são inimigos de hoje nas eleições municipais. Ontem, beijos; hoje, tapas.
Ocorre que, com raras exceções, acusadores e acusados na esfera municipal são, ainda hoje, aliados na esfera federal. O que revela uma política cada vez mais despolitizada, desideologizada, atrelada à mera fome de poder.
Como não há almoço de graça nem barraco sem roupa suja a ser lavada, os efeitos dessa nefasta maneira de fazer política serão sentidos nas próximas eleições para governadores e presidente da República, em 2014.
As fissuras no edifício da base aliada do governo federal já começam a aparecer. PT e PSB andam se estranhando. O PMDB, por enquanto, fica que nem bala de coco em boca de banguela. Mas pode, em breve, querer se livrar da síndrome de linha auxiliar e, como glutão de votos, ocupar a posição central de principal protagonista.
Toda a questão de fundo dessa conjuntura reside na cultura (a)política que respiramos nesse clima de neoliberalismo. Nenhum candidato questiona o sistema em que vivemos. Já não se fala em aproveitar o período eleitoral para "conscientizar e organizar a classe trabalhadora”. Tudo se resume, como nas eleições presidenciais nos EUA, a criar impactos emotivos para tirar o eleitor do marasmo e do desencanto. E os recursos mais utilizados são o "retrato de família” (vejam como sou feliz com minha esposa e filhos) e o medo: do desemprego, da crise financeira, do terrorismo, da perda de direitos civis.
Estamos todos sendo progressivamente domesticados pela mídia controlada pelo grande capital, de modo a trocar liberdade por segurança, opinião própria por consenso, espírito crítico por venerável anuência à palavra do líder. Corremos o risco de ter, no futuro, uma sociedade de invertebrados políticos.

Golpista paraguaio sabota TV Pública

 



Por Altamiro Borges
A mídia brasileira, que tanto bravateia sobre liberdade de expressão, nada tem falado sobre a regressão autoritária vivida atualmente no Paraguai. Ela apoiou, aberta ou dissimuladamente, o “golpe constitucional” na nação vizinha e, por isso, faz silêncio. Nos últimos dias, 28 profissionais da TV Pública do Paraguai foram demitidos numa autêntica operação macartista de caça as bruxas. O jornal Página 12, da Argentina, publicou recentemente uma reportagem que evidencia a gravidade da situação.

Assinada pela jornalista Mercedes López, a reportagem relata que o governo deposto de Fernando Lugo começou a trabalhar um projeto de tevê pública em meados de 2010. O canal foi ao ar pela primeira vez em dezembro do ano passado, mas seis meses depois foi vitima da conspiração das elites paraguaias. “O golpe de Estado nos surpreende quando a televisão estava consolidando a sua aliança com movimentos sociais e setores acadêmicos, estudantis e culturais”, explica o cineasta Marcelo Martinessi, ex-diretor da emissora.
Demissões e mentiras esfarrapadas
Diante das ameaças de fechamento da TV Pública, Martinessi renunciou ao cargo. O governo autoritário se comprometeu a manter o canal no ar e garantiu que não haveria represálias. A emissora se transformou no polo de resistência dos setores democráticos, com manifestações diárias em frente à sua sede. No programa “Microfone Aberto”, lideranças populares criticavam os golpistas e exigiam a volta de Fernando Lugo. O espaço democrático, porém, durou pouco tempo.

“As autoridades da Secretaria de Informação começaram a buscar uma maneira de desarticular a equipe de trabalho do ‘Microfone Aberto’. Foram demitidos 28 trabalhadores. A maioria teve participação ativa na semana de resistência. Argumentaram que não há orçamento, mas é uma desculpa para justificar a depuração ideológica que está havendo”, relata a jornalista. Em meados de agosto, Cristian Turrini assumiu a direção da TV Pública. Ele foi presidente da empresa de telecomunicações Calypso Wireless, nos EUA.

Vitória do latifúndio midiático
Turrini garante que é apenas um gestor. “Não pertenço a nenhum partido, há cinco meses voltei ao Paraguai depois de morar 22 anos nos EUA e eles precisavam de um administrador”. Ele justifica as demissões alegando falta de dinheiro. “Não há recursos, os contratos venceram há três meses”. Martinessi contesta esta versão. “O governo Lugo destinou US$ 2,5 milhões à TV Pública. Pelo decreto 9097 de junho [pouco antes do golpe], este montante seria destinado à rede de repetidoras. Não se sabe por que alegam falta de recursos”.  
Os programas mais críticos exibidos pela emissora, como o “Entre nós” e “Patrimônio Cultural”, já foram retirados do ar. Aos poucos a TV Pública vai sendo asfixiada, para a alegria da mídia privada que apoiou o golpe. Os jornais ABC Color e La Nación e o canal Tele Futuro, que fizeram de tudo para desestabilizar o governo de Fernando Lugo, agora dão total apoio ao golpista Federico Franco. “A concentração da mídia no Paraguai é, talvez, tão injusta quanto à da terra”, conclui a repórter do jornal Página 12.

sábado, 29 de setembro de 2012

O absoluto é Deus, e o coabsoluto são os pobres. Entrevista especial com Jon Sobrino

  

Do sitio IHU
"Fazer teologia é ajudar, a partir do pensar, para que Deus seja mais real na história e que os pobres – no caso, a fome – deixem de sê-lo", afirmar o teólogo jesuíta.

Já são 40 anos de Teologia da Libertação e permanece a dúvida em relação às razões pelas quais ela é tão criticada, perseguida, difamada pelos poderes do mundo, inclusive pela hierarquia da Igreja. Pois quem ajuda nessa compreensão é o renomado teólogo jesuíta salvadorenho, de origem espanhola, Jon Sobrino, que aceitou conceder a entrevista a seguir para a IHU On-Line, por e-mail, afirmando que para responder a essa pergunta não é necessário nenhum estudo sofisticado, nem de discernimento diante de Deus. Tal perseguição ocorre “ou por má vontade ou por ignorância”, pelo fato de que aquela teologia “foi vista como uma ameaça”. E explica: “certamente, ameaça ao capitalismo, e daí a reação de Rockefeller em 1969 e dos assessores de Reagan, em 1980. E ameaça à segurança nacional, e daí as reações dos generais na década de 1980. Também no interior da Igreja, por ignorância, por medo de perder o poder ou por obstinação de não querer reconhecer a verdade com que se respondiam às críticas”.
Sobrino pensa que, no Concílio Vaticano II, “a Igreja sentiu o impulso de humanizar o mundo e de se humanizar juntamente com ele, sem se envergonhar diante do mundo moderno e de usar o moderno para tornar mais crível o Deus cristão”. E o teólogo acredita que, o que se chamou de Teologia da Libertação, “pode aportar a ambas as coisas: racionalizar a fé em um mundo de injustiça e oferecer uma imagem mais limpa de Deus, não manchada com a imundície das divindades que dão morte aos pobres”.
 
 
Jon Sobrino é professor da Universidade Centro-Americana - UCA -, de San Salvador. Doutor em Teologia pela Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt (Alemanha) e diretor da Revista Latinoamericana de Teologia e do informativo Cartas a las Iglesias.
Ele é autor de, entre muitos outros livros, Cristologia a partir da América Latina: esboço a partir do seguimento do Jesus histórico (Petrópolis: Vozes, 1983). Ele estará na Unisinos participando do Congresso Continental de Teologia, com a conferência inaugural do evento, intitulada “Um novo Congresso e um Congresso novo”.
 
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Para o senhor, qual o significado de celebrar os 50 anos do início do Concílio Vaticano II e os 40 anos da publicação do livro de Gustavo Gutiérrez  – Teologia da Libertação? Que perspectivas podem se abrir a partir do Congresso Continental de Teologia?
Jon Sobrino – Naqueles anos, de 1966 a 1974, estive em Frankfurt estudando Teologia. Tive notícias do Concílio, mas parciais. Por Medellín e o livro de Gustavo Gutiérrez, só cheguei a me interessar em 1974, com a minha chegada a El Salvador. Com isso quero dizer que, diferentemente de muitos da minha geração, eu fui um ignorante do que estava acontecendo e obviamente não fui nenhum apaixonado. Depois, tudo mudou. Mais do que acontecimento, penso que foi a realidade salvadorenha dos pobres e os companheiros que se entregavam a eles que me levaram a valorizar os acontecimentos que haviam ocorrido e a ler os textos de bispos e de teólogos que os acompanhavam. Esse esclarecimento talvez ajude a compreender as respostas que vou dar a seguir. Perguntam-me qual é o significado de celebrar, e penso que, se levarmos a sério a pergunta, cada um terá uma resposta própria.
Dos acontecimentos mencionados, eu continuo celebrando que foram rupturas profundas e humanizadoras na história da Igreja. Fizeram-nos respirar. Pensando no Concílio, “o impossível se fez possível”. Pensando em Medellín, Gustavo Gutiérrez e depois em Dom Romero, a Igreja decidiu se voltar ao pobre e a Jesus. E deu “ultimidade” à justiça e à esperança de que fosse possível “que o rico não triunfe sobre o pobre, nem o verdugo sobre a vítima”. Nessa tarefa, assomava-se com clareza o Deus de Jesus. E se eu me centro mais em Medellín do que no Concílio é porque eu o conheço melhor.

Outro cristianismo é possível
Isso produziu alegria e esperança de que, como se diz hoje, não sei se com demasiada facilidade, outra Igreja, outra fé, outro cristianismo “é possível”, e o era porque “era real”. Hoje celebramos o despertar “do sonho de séculos de cruel desumanidade”, como nos pedia Montesinos, a decisão de trabalhar pelos pobres e sua libertação, e a lançar a sorte com eles. Celebramos a difícil conversão e o novo que foi aparecendo: liturgias, catequese, música popular, poesias, nova teologia, a de Gustavo, um compromisso desconhecido e uma luta contra os ídolos. E, sobretudo, a entrega da vida de centenas e milhares de fiéis cristãos. De bispos e sacerdotes. Na vida e na morte se pareceram com Jesus. Os feitos são evidentes. Dom Pedro Casaldáliga escreveu “São Romero da América, pastor e mártir nosso”, embora várias cúrias romanas não sabem o que fazer com esse mártires, tantos e tão numerosos são eles. As normativas às que devem ser fiéis não são pensadas para aceitar o evidente.
Hoje, no continente, mudaram algumas coisas, persistem a pobreza, as estruturas de injustiça e de opressão, e aumenta a crueldade das migrações.
Mudaram mais as coisas na Igreja. De Puebla em diante, deslizou-se por uma ladeira sem que Aparecida tenha impedido isso significativamente. Há coisas boas e inovadoramente boas, mas já não é o de antes. Havia honradez institucional, abundante, ao menos o suficiente, com o real, denúncia vigorosa e analisada contra o horror dos pobres, utopia pela qual trabalhar e lutar, cartas pastorais que lembravam Bartolomé de las Casas e a ciência de Vitória, homilias proféticas de sacerdotes, teologias audazes... Agora isso não fica claro. Fizeram presente um Deus mais latino-americano, pobre, esperançoso, libertador e crucificado. E devolveram ao continente e a suas igrejas um Jesus que esteve sequestrado durante séculos.

Olhar para trás
O que significa, então, celebrar anos depois o Concílio, o livro de Gustavo Gutierrez, Medellín, o martírio de Dom Romero? O que ocorreu foi muito bom e muito humanizador. Hoje, já não abunda. E por isso é preciso olhar para trás, embora as palavras não soem politicamente corretas. Certamente é preciso prosseguir com o novo no pensar teológico: a mulher, os indígenas, as religiões, a irmã terra, a utopia de outros mundos, igrejas, democracias “possíveis”. Mas é preciso ter cuidado para não cair na ameaça de Jeremias: “Abandonaram a mim, fonte de água viva, e cavaram para si poços, poços rachados que não seguram a água” (2, 13). O que mencionamos antes são fontes de água viva até o dia de hoje. E mais o serão se voltarmos a elas ativa e criativamente. É certo, “o Espírito nos move para frente”. Mas tal como estamos, menos se pode esquecer que “o Espírito nos remete a Jesus de Nazaré”, eterna fonte de água viva.

IHU On-Line - O que significa fazer e pensar a Teologia a partir da realidade da América Latina e do Caribe?
Jon Sobrino – A teologia não é o primeiro a ser pensado. O primeiro é a realidade e, no caso da Teologia, a realidade absoluta. Com sua agudeza habitual, Dom Pedro Casaldáliga, ao se referir ao absoluto, diz que “tudo é relativo, menos Deus e a fome”. O absoluto é Deus, e o coabsoluto são os pobres. Fazer teologia é, então, ajudar, a partir do pensar, para que Deus seja mais real na história e que os pobres – a fome – deixem de sê-lo. Para que o pensar possa ajudar nessa tarefa, lembremos o que Ellacuría entendia por inteligir a realidade. Explicava-o em três passos:

- O primeiro é “assumir a realidade”; em palavras simples, captar como são e como estão as coisas. Em 2006, olhando o mundo universo, Casaldáliga escrevia: “Hoje, há mais riqueza na Terra, mas há mais injustiça. Dois milhões e meio de pessoas sobrevivem na Terra com menos de dois euros por dia, e 25 mil pessoas morrem diretamente de fome, segundo a FAO. A desertificação ameaça a vida de 1,2 milhões de pessoas em uma centena de países. Aos emigrantes é negada a fraternidade, o solo abaixo dos pés. Os Estados Unidos constroem um muro de 1,5 mil quilômetros contra a América Latina. E a Europa, ao sul da Espanha, levanta uma cerca contra a África. Tudo o que, além de iníquo, é programado”. O presente não o desmente.

- O segundo passo é “encarregar-se da realidade”. Sua finalidade não consiste simplesmente em fazer crescer conhecimentos por bons e necessários que sejam, mas em fazer crescer a realidade. E em uma direção determinada: a da salvação, da compaixão, da misericórdia e do amor. A teologia é intellectus amoris.

- O terceiro passo é “carregar a realidade”, e com uma realidade que é pesada. Sob ela vivem os anawim da Escritura, os encurvados. A carga que pode fazer até com que privem a vida de alguém. Teólogos e teólogas sofreram perseguição, e alguns acabaram mártires. Isso pode acontecer quando o fazer teologia está perpassado de atitude ética.

Costumamos acrescentar um quarto passo: “deixar-se carregar pela realidade”. O trabalhar e o sofrer assim também podem ser graça para quem faz teologia. Então, o teólogo sabe que faz parte do povo pobre, não é externo a ele. Sabe que é levado por ele e recebe o agradecimento dos pobres. Fazer teologia é, então, “uma pesada carga leve”, como dizia Rahner, que é o Evangelho.

IHU On-Line - Como o senhor analisa a atual conjuntura cultural, socioeconômica e político mundial, a partir do horizonte latino-americano? Nesse contexto, quais os desafios e tarefas que implicam à teologia?
Jon Sobrino – Creio que na atualidade há muitos rostos de Deus na América Latina. Uns emergiram no passado e ali ficaram. Seguem mantendo muita gente com vida e dignidade – embora com a limitação de não animar ao compromisso. Outros coexistem com superstição desumanizante. Hoje proliferam novas Igrejas e movimentos de todo o tipo, em sua maioria carismáticos e pentecostais, com seus novos rostos de Deus. Pessoalmente, compreendo e às vezes aprecio a bondade das pessoas que os veneram, pois, em parte, deve-se a longas épocas de desamparo eclesial. Mas nem sempre é fácil para mim colocá-los junto ao Jesus de Nazaré do Evangelho. Entre intelectuais e antigos revolucionários existem agnósticos e alguns ateus. São minorias, mas estão aumentando. Creio que, em poucos lugares, surgiu o rosto de um Deus crucificado, de que fala Moltmann, mas não creio que em países como El Salvador e Guatemala seja possível aceitar, a longo prazo, um Deus que não afeta o seu sofrimento, que o próprio Deus sofra em seus filhos e filhas crucificados. Em meio a esses rostos, creio que a novidade maior é a dupla formulação que Puebla fez em 1979. Positivamente, Deus é essencialmente um Deus libertador. Defende e ama os pobres – e nessa ordem – pelo mero fato de serem-no. Seja qual for sua situação pessoal e moral. Dialeticamente, Deus é essencialmente um Deus de vida contra divindades da morte. Puebla analisou isso cuidadosamente e apresentou os ídolos de acordo com uma hierarquia: o ídolo da riqueza, o poder, as armas... Dom Romero, junto com Ignacio Ellacurría, explicou-o admiravelmente para a situação salvadorenha.

IHU On-Line - Qual é o rosto de Deus que emerge da realidade latino-americana? E como a Igreja tem assumido esse rosto?
Jon Sobrino – É preciso perguntar isso a eles, e não tomarmos, nós, o seu lugar. Mas podemos dizer algo. Em Morazán, em meio às atrocidades da guerra dos campesinos, perguntavam ao sacerdote que os acompanhava: “Padre, se Deus é um Deus de vida, como acontece tudo isso conosco?”. É a pergunta de e de Epicuro . Para responder a essa pergunta não me ocorrem conteúdos nem razões, mas sim atitudes. A primeira é lhes falar “com proximidade”. E não qualquer proximidade, mas a de Dom Romero: “Peço ao Senhor durante toda a semana, enquanto vou recolhendo o clamor do povo e a dor de tanto crime, a ignomínia de tanta violência, que me dê a palavra oportuna para consolar, para denunciar, para chamar ao arrependimento”. A segunda é falar “com credibilidade”. E, de novo, não qualquer credibilidade, mas a de Dom Romero: “Eu não quero segurança enquanto não a deem a meu povo”. O bispo não respondia apelando a milagres celestiais, mas sim mostrando em sua própria carne o amor terrenal. O que sentiam em seu coração os campesinos que sofriam e perguntavam, pertence a seu mistério. Aqueles que o viam de fora acreditam que o bispo lhes falou do amor de Deus. E que as suas palavras foram uma boa notícia. Resta aos intelectuais dialogar com Epicuro e Dostoiévski , acolher Paulo e Moltmann. E não é tarefa ociosa. Mas, entre nós, o que mais ressoa é a proximidade e a credibilidade do Monsenhor.

IHU On-Line - Como falar de Deus a partir da realidade de sofrimento que vivem os excluídos, os que estão à margem da sociedade privilegiada?
Jon Sobrino – As teologias não crescem, perduram ou decaem como sistemas formais de pensamento, não contaminadas pelo real. A Teologia da Libertação formulou com rigor e vigor que no Êxodo Deus “libertou os escravos”, que na sinagoga de Nazaré, Jesus “libertou os cativos”. O que, como e quanto disso guiou o pensamento nesses 40 anos é uma coisa a se analisar. Já disse que antes isso ocorreu mais do que agora. Desde já, a Teologia da Libertação não está na moda. Mas não me parece correto responsabilizar disso o que começou com Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo, Leonardo Boff, Ignacio Ellacuría e com Dom Helder Camara, Leonidas Proaño, Angelelli e Romero. Às pessoas mencionadas é preciso continuar agradecendo que ao longo desses 40 anos se mantiveram impulsos de teologia libertadora e se estenderam a novos âmbitos, como o do gênero, das religiões, da mãe terra... E aqueles de boa vontade que lamentam a queda da teologia da libertação, que voltem ao Deus do Êxodo e a Jesus de Nazaré. Indubitavelmente, houve limitações, erros, exageros. Pode ter havido reducionismos anti-intelectuais em favor da práxis, preguiça intelectual diante de escritos como os de Juan Luis Segundo ou Ellacuría, vislumbres de demagogia diante do pensamento científico de outros lares, ignorância das críticas ou prepotência diante delas. Mas, pessoalmente, não vejo que tenha surgido outro impulso teológico tão humano, frutífero, evangélico e latino-americano como o que surgiu há 40 anos.

IHU On-Line - Como o senhor analisa esses quarenta anos da Teologia da Libertação? Por que ela foi tão criticada, perseguida, difamada pelos poderes do mundo, inclusive pela hierarquia da Igreja?
Jon Sobrino - Outra coisa é a menor qualidade na produção da teologia da libertação. Não é fácil que se repita a geração dos fundadores, embora tenham surgido novos teólogos e teólogas de qualidade. E não se pode esquecer que algo parecido pode ocorrer hoje em outras escolas, tradições e movimentos de teologia. Os Barth, Rahner, de Lubac, von Balthasar, Bultmann, Käsemann não têm muitos sucessores dessa altura.
A resposta à segunda pergunta não precisa de nenhum estudo sofisticado, nem de discernimento diante de Deus. Ou por má vontade ou por ignorância, aquela teologia foi vista como uma ameaça. Certamente, ameaça ao capitalismo, e daí a reação de Rockefeller em 1969 e dos assessores de Reagan, em 1980. E ameaça à segurança nacional, e daí as reações dos generais na década de 1980. Também no interior da Igreja, por ignorância, por medo de perder o poder ou por obstinação de não querer reconhecer a verdade com que se respondiam às críticas. Lembre-se de Dom López Trujillo e de vários bispos e cardeais. E a instrução da Congregação para a Doutrina da Fé, de 1984, sem que a de 1986 conseguisse consertar totalmente o anterior.

IHU On-Line - Qual o significado teológico e antropológico da expressão “libertação”, a partir do contexto latino-americano? Como essa perspectiva teológica se implica no atual contexto de sociedade e de Igreja?
Jon Sobrino – Se me lembro bem, o conceito de “libertação” foi usado para superar o conceito de “desenvolvimento”, a solução que o mundo ocidental propunha para superar a pobreza. Na Igreja, redescobriu-se que era um termo-chave no Êxodo e em Lucas para expressar salvação. Parece-me importante ter presente que “a libertação” foi redescoberta na América Latina, o chamado terceiro mundo, por ser um continente não só atrasado ou subdesenvolvido, mas também oprimido e escravizado pelo primeiro mundo, europeus e norte-americanos. E em Igrejas, se não oprimidas pelas europeias, fortemente dependentes delas. O termo “libertação” remetia de forma muito importante à opressão e à repressão, isto é, à privação injusta e cruel da vida, o que se mantém até os dias de hoje. Outra coisa é que, felizmente, o conceito foi estendendo seu significado na teologia para designar libertação da indignidade, da opressão de gênero, do despotismo de uma religião... E é preciso ter presente também que a teologia da libertação, diferentemente de outras teologias e ideologias, dá prioridade ao “povo” sobre o “individualismo”, e à “abertura à transcendência” sobre o “positivismo”, como disse Ellacuría em uma reunião de religiões abraâmicas. Em todo caso, embora com o retorno massivo a individualismos espiritualistas, a teologia da libertação introduziu a dimensão religiosa do humano no âmbito do mundo exterior. Ela a tornou presente na realidade social, por direito próprio e sem que possa ser facilmente ignorada. É religião política, afim à de Metz, o que não é um pequeno benefício.

IHU On-Line - Fazendo memória de Dom Oscar Romero, Ignácio Ellacuría e Companheiros, dentre tantos outros rostos que foram assassinados porque assumiram a causa dos empobrecidos e marginalizados, o que significa ser Igreja, hoje, no limiar do século XXI?
Jon Sobrino – Menciono duas sentenças. Ignacio Ellacuría, no funeral celebrado na UCA, disse: “Com Dom Romero, Deus passou por El Salvador”. Ser Igreja é trabalhar com decisão e simplicidade, para que Deus passe por esse mundo desumano. E para o não crente trabalhar para que a solidariedade e a dignidade, o melhor do humano, passe por este mundo, que embora seja mais secular, continua sendo desumano. Dom Romero, na Universidade de Louvain, no dia 2 de fevereiro de 1980, poucos dias antes de ser assassinado, disse: “A glória de Deus é que o pobre viva”.
Ser Igreja é trabalhar pela glória de Deus. E para o não crente “a glória da humanidade é que os pobres vivam, cheguem a formar parte da família humana”. Por isso, é preciso trabalhar. E termino com algo que me faz pensar. Penso que no Concílio a Igreja sentiu o impulso de humanizar o mundo e de se humanizar juntamente com ele, sem se envergonhar diante do mundo moderno e de usar o moderno para tornar mais crível o Deus cristão. A finalidade é magnífica. Em Medellín, a Igreja sentiu o impulso de não se envergonhar dos pobres e de não escutar a repreensão da Escritura: “Por causa de vocês, blasfema-se o nome de Deus entre as nações”. E com humildade se pôs a “limpar o rosto de Deus”. Acredito que o que se chamou de Teologia da Libertação pode aportar a ambas as coisas: racionalizar a fé em um mundo de injustiça e oferecer uma imagem mais limpa de Deus, não manchada com a imundície das divindades que dão morte aos pobres.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

‘Por causa do marketing, a eleição virou uma competição de produtos’

Escrito por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação  do CORREIO DA CIDADANIA

Mais uma vez o calendário eleitoral girou e volta a se fazer presente. Saturados por praticamente duas décadas de tucanato no estado, com forte hegemonia também na capital, os paulistanos irão às urnas em 7 de outubro eleger vereadores e votar o primeiro turno da disputa pela prefeitura.

Em entrevista ao Correio da Cidadania, Ivan Valente, deputado federal pelo PSOL (a bancada mais bem avaliada da Câmara Federal), qualificou os atuais processos eleitorais como “uma competição artificial de propostas, sem aquelas que seriam mais elaboradas e situadas numa realidade concreta”.

Para ele, obviamente por conta dos milionários financiamentos privados que comprometem quaisquer campanhas e mandatos, “a eleição virou, em muitos casos, uma competição de produtos. Os candidatos inventam produtos, como esses vales, bilhetes únicos, apresentam números, um conjunto de promessas e anúncios que não discutem com rigor qual seria a proposta para a cidade”.

Valente lamenta ainda a capitalização do vazio político pelo conservadorismo de Celso Russomano (“uma candidatura avulsa, sem nenhuma movimentação real da sociedade civil, mas com destaque na mídia”), ainda que acredite numa reviravolta de um de seus dois prováveis adversários no segundo turno, Serra ou Haddad, por conta do poder econômico de suas campanhas.

Por fim, critica o monopólio do mensalão nas discussões da mídia, que em sua opinião “deforma o processo eleitoral”, por ser “monopólica, concentrada, com uma visão de pensamento único”. Mesmo assim, Ivan Valente não acredita que o julgamento do escândalo que abalou o PT em 2005 tenha valor preponderante. Mas espera que mais adiante seja capitalizado à esquerda no eleitorado nacional.

Correio da Cidadania: Como você tem visto o atual processo eleitoral em nosso país, no que diz respeito às campanhas municipais, seu conteúdo e as propostas mais repercutidas? Acredita que tem despertado real interesse na população?

Ivan Valente: O processo eleitoral brasileiro só gera um grande interesse público na reta final, o que novamente acontece em 2012. Mas neste ano há um agravante, pois a grande mídia brasileira está tratando de forma bastante monopolista o julgamento do mensalão, transmitido ao vivo e ocupando grande parte do noticiário com o assunto. Isso está causando uma interferência grande nas atenções do momento. Não sei qual vai ser o impacto geral do processo julgado pelo STF. Algum impacto terá, mas não sei o quanto. De toda forma, ocupa um espaço político grande demais. E de resto, o povo costuma se interessar pelas eleições mais na reta final.

Correio da Cidadania: O que o conteúdo programático dessas campanhas, no geral, diz a respeito de nosso momento político? Os temas mais urgentes da vida das cidades estão sendo realmente contemplados?

Ivan Valente: Acho que a eleição virou, em muitos casos, por causa da marketagem política, uma competição de produtos. Os candidatos inventam produtos, como esses vales, bilhetes únicos, apresentam números, como “triplicar a guarda municipal”, um conjunto de promessas e anúncios que não discute com rigor qual seria a proposta para a cidade. A dívida pública municipal seria pauta importante, assim como a publicidade da arrecadação real, também em termos de sonegação e evasão fiscal. E aí sim as prioridades poderiam ser definidas, baseadas na realidade da cidade, tratando assuntos como transportes e educação, por exemplo, e recebendo mais recursos e iniciativas. Mas, da forma atual, fica uma grande competição marketeira pra conquistar o voto do eleitor, ainda mais em relação aos partidos que têm muito tempo na televisão. Uma competição artificial de propostas, sem aquelas que seriam mais elaboradas e situadas numa realidade concreta.

Correio da Cidadania: Como analisa especificamente o processo eleitoral na cidade de São Paulo?

Ivan Valente: Em São Paulo sofremos com a realidade específica da cidade, que concentra a sede, o núcleo duro dos maiores partidos que têm competido nacionalmente, PT e PSDB. De fato, há uma disputa cansativa nesse contexto. O PSDB é um partido que já “enjoou”, pois há uma grande rejeição a seu candidato, Serra, com os tucanos há 18 anos governando o estado nessa supremacia neoliberal. E as propostas petistas perderam apelo.

Infelizmente, esse fato não é explorado pela esquerda, mas exatamente por alguém que se apresenta como novo sem ser novo. O Russomanno é uma candidatura quase avulsa, de certa forma uma aventura que a cidade está se dispondo a correr, também beneficiada pelo cansaço das propostas apresentadas pelos outros. O povo de São Paulo não acredita nas propostas, pois vê que a moradia não se resolve, o trânsito continua entupido, entre outras questões atuais. A população é iludida com uma proposta que parece ser nova, mas não tem estrutura, não é baseada numa movimentação real da sociedade civil. Porém, conta com bastante destaque midiático.

Essa é a situação predominante, com boa chance de o Russomano se eleger, porque, ao passar pelo primeiro turno, o concorrente do PT ou PSDB que ficar de fora do segundo turno tende a despejar nele seu apoio. Mas ainda faltam 15 dias e o PT e o PSDB têm muito tempo de TV e muitos recursos, marketing. Como tem muita grana envolvida, ainda é precipitado fazer o prognóstico.

Correio da Cidadania: De modo que o fenômeno Russomano é um evidente fruto do vazio de ideias no debate político e desse “enjoo” da população.
Ivan Valente: Sim, aqui em São Paulo o vazio vem dessa hegemonia tucana somada ao desgaste do petismo. Infelizmente, nós ainda não conseguimos nos apresentar com uma opção real de esquerda. E mesmo candidaturas que podem tentar se apresentar como alternativas não tiveram poder pra alçar voos mais altos.

Correio da Cidadania: Um personagem marcante destas eleições é, sem dúvida, como você mesmo já salientou, o chamado mensalão – na cidade de São Paulo, explicitamente explorado pelo tucanato em sua disputa voto a voto com o petismo para a chegada ao segundo turno. Teria algo a dizer sobre o mensalão? Terá algum impacto nos resultados eleitorais, especificamente na corrida do PT às prefeituras?

Ivan Valente: Acredito que na reta final, com a condenação de algumas figuras públicas do PT, vai ter alguma influência, até pela forma saturada como a mídia trata a questão. Não creio que seja o elemento definidor, mas, pela mídia e por calhar justo na reta final, quando o eleitor fica mais atento aos candidatos, algum efeito vai ter. Espero que o efeito seja pelo lado da esquerda, que consigamos capitalizar, digamos, os erros do PT. Que a capitalização não seja pela direita, pela lógica que o PSDB e DEM tentam aplicar. Que o voto petista originário migre para uma condição de esquerda, nacionalmente. Mas não será simples fazer isso imediatamente. Possivelmente, o desdobramento será futuro.

Correio da Cidadania: O que pensa da campanha de Giannazi, candidato de seu partido à prefeitura de São Paulo?

Ivan Valente: É uma campanha difícil, uma vez que há uma concorrência muito forte, e não se tem conseguido romper o cerco das precariedades do PSOL, como, por exemplo, o tempo de TV. Além disso, é preciso fazer um embate mais calibrado contra os competidores que se pretende atingir. Houve algumas falhas nesse sentido. Creio que deveríamos tentar ganhar o voto mais consciente da sociedade, o voto frustrado do PT, mas, para tal, precisaria de um calibre político voltado à questão. Talvez houvesse um manancial de votos a ser explorado de forma mais substantiva. De resto, a campanha tem dificuldades naturais ao PSOL. Não conseguiu o destaque de outros locais, como Rio de Janeiro, Belém, Macapá, Fortaleza, onde o desempenho é bom.

Correio da Cidadania: Já que falamos de outras capitais, faria uma comparação entre a campanha de Giannazi por aqui e a que tem se desenrolado por parte do PSOL no Rio (capital), onde a candidatura de Freixo cresceu e se entusiasmou com uma grande adesão de camadas progressistas?

Ivan Valente: Não quero fazer comparações, pois não creio que seja o momento. Há outras questões complexas envolvidas. O que quero dizer é que a campanha do Freixo tem solidez política, entrou no vazio da direita carioca, bastando ver o Garotinho, Cesar Maia, seus correligionários, o PSDB, com desempenho bem baixo. Além disso, empolgou a intelectualidade do Rio de Janeiro, empolgou os artistas e ganhou um grande apelo na juventude carioca. É uma candidatura que pode surpreender e até chegar ao segundo turno, o que não depende só do PSOL a essa altura, mas também dos outros partidos. O desempenho do PSOL já é considerado excepcional na segunda cidade do país, até pela simbologia que carrega o Rio de Janeiro. É uma candidatura que conseguiu empolgar, tendo consistência política.

Correio da Cidadania: Como tem visto, no geral, a atuação das correntes mais à esquerda no espectro político no atual cenário eleitoral? Estão conseguindo se colocar à altura dos desafios que se esperam para iniciar um debate e postura alternativos, de forma a avançar efetivamente no enfrentamento das questões sempre negligenciadas e que, de fato, afetam a população?

Ivan Valente: Acho que onde temos um acúmulo maior tivemos condição de colocar melhor o nosso ponto de vista. Com um candidato forte, conseguimos destaque, como em Belém, onde nosso candidato já governou o estado por oito anos, ou como em Macapá, onde, além de nosso candidato estar muito bem colocado, conta com o apoio do Randolfe Rodrigues, nosso senador, que tem 80%, 90% de aceitação no estado. Em Fortaleza acontece o mesmo, com o Renato Roseno. São todas figuras que dão relevo ao partido. Onde as candidaturas são mais expressivas, é mais fácil trazer o apoio popular ao PSOL.

Fora isso, o partido tem sido ajudado pelo reconhecimento da bancada federal, pela sua atuação, pelos temas que aborda, pela ética política, o que o ajuda nacionalmente. Tem havido um reconhecimento, mas não é fácil competir com as máquinas e o marketing político nas grandes cidades. Ainda faltam maior inserção social e chapas mais fortes para vereador, apresentando pelo Brasil inteiro candidaturas que tenham presença na população.

Correio da Cidadania: E o que dizer, neste contexto, dos partidos hoje mais representativos da esquerda, além do PSOL, PSTU e PCB entre alguns mais conhecidos? O que singularizaria cada um deles no atual cenário, e qual a sua expectativa quanto ao saldo que deverão deixar?

Ivan Valente: Eu diria que esses outros partidos se destacam nas eleições em muito menor escala. A única candidatura do PSTU que ganhou destaque é, inclusive, em aliança com o PSOL, em Aracaju, onde há certo vácuo; outro exemplo é do PCB em Recife, também aliado ao PSOL. Mas não chega a ser tão relevante. Creio que, por não terem representação institucional, e também por suas posições muito doutrinárias, têm dificuldades no processo eleitoral. Mais dificuldades que o PSOL, embora também tenhamos muitas.

Correio da Cidadania: Arriscaria um palpite sobre os resultados do 1º turno: Russomano versus Serra ou versus Haddad?

Ivan Valente: Nesse momento ainda acho melhor esperar pesquisas. É muito provável que o Russomano já esteja lá, basta não cometer nenhum erro gravíssimo. Mas não há nada definitivo ainda.

Correio da Cidadania: De todo modo, considerando-se que, em um segundo turno, Serra ou Haddad disporiam de artifícios e recursos suficientes para passar à frente de Russomano, qual das duas alternativas significaria uma relação um pouco menos truculenta e insensível com a população mais periférica e desfavorecida economicamente?
Ivan Valente: Apesar de todas as críticas contundentes que temos ao PT, certamente o programa do PT tem mais consistência. Mas não quer dizer que o PSOL se definirá nessa direção no segundo turno. É bem provável que opte por um voto mais progressista, contra o neoliberalismo privatista, apesar de o PT também enveredar por tais caminhos. E o Russomano é uma incógnita, não faz parte de um partido que possui projeto, um verdadeiro programa por trás.

Se fizermos um balanço do que foi o PT no governo da Erundina e mesmo da Marta, pode-se dizer que foi melhor. Não grande coisa, mas a Erundina foi bem, sim, era da época em que o PT ainda “estava na briga”; com a Marta, foram maiores os percalços.

Correio da Cidadania: Você fez referências à mídia e ao destaque que vem dando ao chamado mensalão. O que pensa do papel que a mídia tem exercido nesse processo eleitoral?

Ivan Valente: A mídia brasileira certamente é monopólica, concentrada, com uma visão de pensamento único. De certa forma, ela deforma o processo eleitoral. As chances e espaço para os candidatos e ideias não são iguais, as informações não são fidedignas e a mídia, por fim, tem lado. Portanto, eu diria que é pouco democrática a cobertura que a mídia realiza.

Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Mais uma traição da CNTE contra os trabalhadores em Educação...

Direção da CNTE decide aceitar alteração na Lei do Piso

Para ajudar os governos, a direção da CNTE abre mão de defender índice do custo aluno do FUNDEB e concorda que a Lei do Piso seja alterada
Em uma decisão burocrática, e contrária à luta dos educadores de todo o País, a direção da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) aprovou, em reunião do Conselho Nacional de Entidades, uma proposta de alteração do índice de reajuste do Piso Nacional para negociar no Congresso Nacional. Aceitando argumentos absurdos, a CNTE admite a retirada do critério de correção que valoriza o Piso dos educadores.

Essa decisão ocorreu em uma reunião de dirigentes da Entidade, durante a realização da 8º Conferência Nacional de Educação da CNTE. A partir dessa decisão, a Conferência passou a debater centralmente esse tema. Muitos educadores presentes manifestaram a sua discordância frontal com a decisão e outros argumentaram que ela fragiliza a luta nacional contra os ataques dos governadores à Lei do Piso.

No entanto, os principais dirigentes da CNTE afirmavam que “dirigente foi eleito para decidir” e que “a luta pela manutenção do custo aluno já estava derrotada”! Os dirigentes do CPERS/Sindicato manifestaram publicamente o seu repúdio a essa atitude e afirmaram que, na verdade, essa decisão tinha relação com os vínculos que a CNTE mantém com os governos. Ou seja, mais uma vez os trabalhadores em educação poderão sofrer perdas pela postura de conivência da direção da CNTE com o governo federal.

A direção do CPERS/Sindicato apresentou, em forma de emenda ao documento da Conferência, uma crítica (ver abaixo) à resolução da CNTE. Essa emenda não foi aprovada, mas teve apoio de diversos educadores presentes ao encontro, que expressaram sua surpresa e descontentamento com os rumos da Confederação.

EM DEFESA DO PSPN – DIREITO CONQUISTADO PELOS TRABALHADORES NÃO SE NEGOCIA
Apenas alguns dias após o ingresso da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.848, movida por seis governadores contra a Lei do Piso Nacional, os trabalhadores em educação de todo o País estão sendo surpreendidos com uma decisão do Conselho Nacional de Entidades da CNTE de aceitar alterações no critério de reajuste definido pela Lei.

Consideramos essa decisão um grave erro pelos seguintes motivos:

1) A Lei 11.738/08 já foi aprovada, sancionada e sua constitucionalidade já foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal, não cabendo mais recursos aos governos. Portanto, o cumprimento do Piso Nacional é um direito dos educadores de todo o País, do qual não há qualquer razão para abrirmos mão.

2) Além de aceitar a retirada de um direito conquistado, fruto de uma luta histórica dos educadores de todo o País, a decisão da direção da CNTE fortalece o ataque promovido pelos governadores e o discurso de que é inviável o cumprimento da Lei do Piso.

3) Não cabe à CNTE e ao movimento sindical propor alterações que signifiquem retrocesso nos direitos e na vida profissional dos educadores. Ao contrário, deveria ser papel de nossa Entidade buscar ampliar as conquistas e rechaçar os ataques dos governos.

4) Por fim, consideramos antidemocrática uma decisão tomada sem a ampla participação dos trabalhadores. Essa decisão afeta um direito de centenas de milhares de educadores, que sequer tomaram conhecimento do debate feito pelos dirigentes da CNTE.
 
Fonte: 14] núcleo do CPERS

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Juremir: “Muitos comemoram a Revolução mas não conhecem sua história”


Juremir Machado da Silva publicou "História Regional da Infâmia" em 2010 | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Samir Oliveira no SUL21

O jornalista e historiador Juremir Machado da Silva publicou em 2010 o livro “História Regional da Infâmia”, no qual relata, através de documentos, uma série de fatos pouco divulgados sobre a Revolução Farroupilha. Dentre eles, o de que ela foi financiada com a venda de negros.
Nesta entrevista ao Sul21, Juremir fala sobre as constatações do livro e o processo de mitificação que se deu em cima da história da revolução. “Os republicanos positivistas tinham noção de que uma identidade se constrói a partir de um mito fundador. Era preciso uma mitologia época para construir essa unidade”, explica.
Bastante criticado por expor visões “pouco gloriosas” sobre a Revolução Farroupilha – um dos principais elementos na construção da imagem do gaúcho brasileiro -, o jornalista conta que muitos historiadores deixam de pesquisar o tema por causa da repercussão negativa e hostil de seus trabalhos no Rio Grande do Sul. “Recebi e-mails e torpedos de pessoas dizendo que iam me capar. Senti hostilidade em muitas situações”, comenta.
“Ninguém tinha dito que a Revolução Farroupilha se financiou com a venda de negros no Uruguai”
Sul21 – Como surgiu a ideia de escrever “A História Regional da Infâmia”?
 
Juremir Machado – Por muitas razões. Uma delas é a inconformidade com esse culto tradicionalista mal embasado em fatos históricos. Como fiz faculdade de História, tinha acompanhado desde sempre as polêmicas provocadas, primeiro, pelo Tau Golim. Em seguida, por Moacyr Flores, Mário Maestri, Décio Freitas… Todos os historiadores que mexeram com isso foram muito atacados, criticados e, às vezes, até estigmatizados. Mas em determinado momento me veio a ideia de fazer um livro, na medida em que comecei a encontrar documentos que me pareciam interessantes. Um grande amigo meu, Luiz Carlos Carneiro, que tinha sido meu professor de História no cursinho universitário, lá por 1980, tinha se tornado diretor do Arquivo Histórico do RS, que tinha todo o acervo sobre a Revolução Farroupilha. Então pude fazer a pesquisa com toda a tranquilidade. E as pessoas que trabalhavam lá me ajudaram muito fazendo transcrição de documentos.

Sul21 – Quanto tempo durou a pesquisa?
 
Juremir - Eu li toda a bibliografia existente e fui às fontes. Li mais de 15 mil documentos e trabalhei com mais de 12 pessoas. Foram três anos de pesquisa com estagiários, bolsistas de iniciação científica, pessoas que contratei em Pelotas, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. Debulhamos 15 mil documentos, alguns que nunca tinham sido trabalhados.

Sul21 – Que tipo de reações o livro provocou?
 
Juremir - Meu livro provoca dois tipos de polêmica: aqueles que dizem que tudo é falso e que eu preciso estudar mais; e aqueles que dizem que o livro não traz nada de novo. Isso é falso. É claro que o livro não parte de coisas que ninguém nunca tinha examinado, mas aprofunda muitas dessas coisas e descobre coisas novas. Eu chamo de documento infame toda a documentação referente ao financiamento da Revolução Farroupilha, à compra de munição, de fardamento, de alimentação com a venda de escravos no Uruguai. Ninguém tinha dito que, em determinado momento, por obra de Domingos José de Almeida, a Revolução Farroupilha se financiou com a venda de negros no Uruguai. Em algum momento se falou que teriam vendido alguns negros para comprar uma impressora para o jornal “O Povo”. A venda de negros para financiar a revolução gerou, inclusive, um processo judicial. Depois que deixou de ser ministro da Fazenda, Domingos José de Almeida entrou na Justiça da República pedindo o ressarcimento de tudo o que tinha investido. Ele detalha, briga, insulta e polemiza. Quer de volta o dinheiro dos negros que vendeu. Ele dá os nomes e todas as informações sobre as vendas.
"Meu livro provoca dois tipos de polêmica: aqueles que dizem que tudo é falso e que eu preciso estudar mais; e aqueles que dizem que o livro não traz nada de novo. Isso é falso" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como era a relação dos líderes da revolução com os negros? Havia uma retórica pretensamente abolicionista e uma prática diferente?
 
Juremir – Todos eram proprietários de escravos e viviam em uma sociedade escravista. Então eles podiam ser escravistas, seriam simplesmente homens de seu tempo. Mas em outros lugares estavam acontecendo revoltas pela libertação dos negros, como no Maranhão. No Uruguai e na Argentina, o processo de libertação dos negros estava muito mais acelerado. Era um tempo de escravismo, mas não da mesma maneira em todos os lugares. Falamos de Rivera e de Rosas como se fossem caudilhos hediondos, mas eles eram muito mais avançados, progressistas e iluministas. Nossos fazendeiros gostavam de se aliar com eles, mas tinham medo das coisas que eles faziam, como reforma agrária e libertação de negros. Eles eram muito mais adiantados e “perigosos” nesse sentido.
“Os farroupilhas não eram abolicionista e não pretendiam ser. Só queriam usar os negros”
Sul21 – Há o mito consagrado de que os farroupilhas eram abolicionistas.
 
Juremir - Não, eles não eram. Talvez um ou dois tivessem algum ardor nesse sentido. Mas a maioria não era. Eles prometeram liberdade para os negros dos adversários que aceitassem ser incorporados como soldados. Era uma forma de atrair mão de obra militar. Mas os escravos dos próprios farroupilhas continuaram nas fazendas trabalhando para que eles pudessem fazer a guerra. Quando a Revolução acabou e eles voltaram para casa, continuaram escravistas. Quando Bento Gonçalves morre, deixa um inventário com 53 escravos aos seus herdeiros. Escravos valiam muito. Ele morreu rico, com terras, fazendas e escravos. Quando fizeram, em Alegrete, o texto da Constituição, ela não previa a libertação dos escravos. Se eles tivessem vencido e a Constituição entrado em vigor, o Rio Grande do Sul continuaria sendo uma sociedade escravista. Eles não tinham nada de abolicionistas. Claro, em determinado momento, com a mão de obra militar minguando – principalmente quando o Império começou a mandar mais gente -, tiveram de recorrer aos negros dos adversários. O Domingos José de Almeida, além de ter vendido seus negros ao Uruguai para financiar a revolução, para ele mesmo se sustentar como ministro da Fazenda e cérebro da revolução, continuava alugando outros negros no Uruguai e vivendo das rendas desse aluguel. Os negros trabalhavam no Uruguai para que ele pudesse ser o chefe revolucionário. Existem muitos exemplos de situações mais adiantadas de libertação de escravos. No Brasil, no Uruguai, na Argentina, no Chile… Simón Bolivar tinha libertado os escravos. A libertação de escravos estava acontecendo com frequência. Rivera fez isso e nós não. Os farroupilhas não eram abolicionista e não pretendiam ser. Só queriam usar os negros.
"Muitos historiadores reconhecem que houve traição em Porongos, mas não demonstram como isso ocorreu. A maior parte pula essa etapa" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Teve o episódio da batalha de Porongos…
 
Juremir - É curioso… Muitos historiadores reconhecem que houve traição em Porongos, mas não demonstram como isso ocorreu. A maior parte dos historiadores que examina Porongos pula essa etapa. Em determinado momento essa traição era negada. Como os líderes farroupilhas tinham prometido liberdade aos negros dos adversários, com o fim da revolução começam a ficar preocupados e receosos de que os negros possam querer se vingar caso isso não ocorra. Era um contingente expressivo de escravos. Então os líderes farroupilhas estavam numa contradição, já que esses negros pertenciam a adeptos dos imperiais, que os queriam de volta. Foi aí que veio aquela ideia “maravilhosa” de diminuir esse contingente ao máximo e fazer um pacto para eliminá-los. A cilada de Porongos chega a ser simplória. Os negros foram realmente desarmados e dizimados. Canabarro recebeu o aviso de um possível ataque e desarmou os homens, foi tudo muito preparado. Um outro aspecto que o meu livro vai adiante é em relação ao destino dos negros farrapos. Nem todos morreram. Sobraram alguns deles. Uns escaparam, conseguiram fugir a cavalo, e muitos caíram prisioneiros. Sempre se discutiu o que teriam feito com esses negros. Os farroupilhas dizem que Caxias libertou todos, incorporou ao Exército e conferiu a eles uma condição quase de enobrecimento. E alguns diziam que eles tinham sido enviados para o Rio de Janeiro, para a fazenda imperial Santa Cruz.

Sul21 – O que aconteceu?
 
Juremir - Fui atrás e consegui documentos mostrando para onde eles foram. Eles foram entregues pelos farroupilhas e foram transportados. Consegui documentos sobre como eles foram transportados, até com o nome do navio. Eles foram para o Rio de Janeiro, para o arsenal da Marinha.
“A Revolução Farroupilha foi feita pela Farsul da época com os métodos das Farc”
Sul21 – Politicamente, havia alguma unidade entre os líderes da revolução?
 
Juremir - Era um saco de gatos. Antes de 1835 havia gente que oscilava. Bento Gonçalves, por exemplo, era um monarquista, não era republicano. Neto não era republicano. Bento Gonçalves tinha pendores para fazer uma associação com o Uruguai. Ele se relacionava com o Rivera e pensava, volta e meia, em uma perspectiva de junção com o Uruguai. Mas também não era algo muito convicto. Em 1834 aconteceu a principal causa da Revolução Farroupilha: um surto de carrapatos que devorou o gado. Os fazendeiros ficaram com um prejuízo enorme e fizeram exatamente como os pecuaristas fazem hoje em dia: quiseram repassar o prejuízo ao Império. Mas essa ajuda do governo central não vinha. Por outro lado, havia um contexto de muitos militares no Rio Grande do Sul. Em 1831, quando Dom Pedro I abdicou, muitos militares foram mandados para cá, numa espécie de geladeira, porque tinham se insubordinado. Então se juntam esses militares cansados e insatisfeitos com os fazendeiros que se sentiam prejudicados pelo Império. No começo das conspirações, eles só desejam que o Império atenda às suas reivindicações. Alguns querem ver reconstituída sua dignidade militar e serem transferidos para outros lugares. Nossos fazendeiros queriam atendimento às suas reivindicações econômicas. O movimento vai ganhando vida e eles não conseguem mais recuar. Em determinado momento, surge a perspectiva da República, que nenhum dos líderes tinha em mente. No meu livro, publico uma carta que Neto enviou aos vereadores de Pelotas. Ele, que tinha proclamado a República, disse “não sou republicano”. Eles não eram republicanos, mas aos poucos foram sendo empurrados para aquela situação e acabaram proclamando uma República que o Império nunca reconheceu. Para o Império, sempre se tratou apenas de uma província rebelada.

Sul21 – E por que a guerra durou tanto tempo?
 
Juremir - Quando os liberais estavam no poder, no período regencial, eles, no fundo, gostavam dessa gente daqui. Eles não queriam mandar muito efetivo para cá e deixaram a Revolução correr. Quando finalmente Dom Pedro II ganha a maioridade e os conservadores assumem o poder e passam a ter o primeiro ministro, eles enviam muito efetivo para o Rio Grande do Sul. Então por volta de 1842 já está liquidada a fatura. A revolução se transforma em uma guerra de guerrilhas. Os farroupilhas começam a fugir para todos os lados e, de vez em quando, fazem algumas emboscadas. Quando a coisa ficava muito pesada, todo mundo se refugiava no Uruguai. Foi uma guerra de guerrilhas na qual o exército imperial ficava atrás dos rebeldes e, de vez em quando, tinha algum combate. Houve muito pouco combate e morreu pouca gente. Em dez anos de guerra, morreram 2,9 mil pessoas. Morria mais gente de gripe do que de guerra. Passava meses sem que houvesse combate. Claro que houve momentos de heroísmo e momentos de infâmia absoluta, com estupro, degola, sequestro e execução sumária. É por isso que eu digo que a Revolução Farroupilha foi feita pela Farsul da época com os métodos das Farc. Do ponto de vista ideológico, eles eram a Farsul da época, com uma ideologia liberal incipiente. Eram proprietários rurais em defesa dos seus interesses. E utilizavam os métodos que hoje se condena nas Farc: sequestro, apropriação do gado e das terras alheias.
"Um dos grandes problemas da Revolução Farroupilha foi a corrupção", aponta jornalista e pesquisador gaúcho | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Em seu livro, o senhor também aponta casos de corrupção entre os líderes farroupilhas.
 
Juremir – Quando eles se reúnem em Alegrete para fazer a Constituição, estavam totalmente rompidos. Antonio Vicente da Fontoura pertencia à chamada minoria. Ele havia sido ministro da Fazenda, sucedendo Domingos José de Almeida. Quando ele assumiu o Ministério, constatou que a corrupção corria solta. Ele descreve isso fartamente em seu diálogo e os historiadores nunca quiseram dar muita atenção. Os farroupilhas pegavam a fazenda de um adversário e arrendavam e o lucro desse arrendamento desaparecia. Até Neto foi acusado por Antonio Vicente da Fontoura de ter desaparecido com dinheiro. Um dos grandes problemas da Revolução Farroupilha foi a corrupção. Eles brigaram e se separaram por causa disso. O duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires tinha na sua base acusações de corrupção.
“Os cariocas acham esse negócio de Semana Farroupilha quase ridículo, uma espécie de carnaval a cavalo”

Sul21 – Como se pautaram as relações dos farroupilhas com as lideranças uruguaias e 
argentinas? Havia, de fato, a intenção de se criar uma república que anexasse o território do Uruguai e algumas províncias da Argentina?
 
Juremir – Quando viram que Rivera estava libertando escravos e que tinha propensões à reforma agrária, a parceria deixou de ser interessante. A Revolução Farroupilha foi uma espécie de golpe militar. Esse golpe militar sofreu muita influência platina. Houve muita influência desses caudilhos uruguaios e argentinos. Mas depois houve momentos de aproximação e de separação. Essas alianças só não prosperaram definitivamente porque os líderes farroupilhas eram muito mais conservadores que os caudilhos uruguaios e argentinos. Rivera queria uma revolução benéfica para a população uruguaia. Bento Gonçalves e sua turma só entraram em ação por causa dos seus interesses particulares.

Sul21 – Como se deu a construção dos mitos em cima da Revolução Farroupilha?
 
Juremir - São várias etapas. Uma delas é quando Julio de Castilhos e os republicanos positivistas estão trabalhando pela construção da República no Rio Grande do Sul. Julio de Castilhos vai estudar direito em São Paulo e manda uma carta dizendo que é preciso estudar aquela guerra civil, porque ela poderia servir de fundamento para o que hoje nós chamaríamos de construção de uma identidade regional. Na época, a Revolução Farroupilha era chamada de guerra civil. Esses republicanos positivistas tinham bem a noção de que uma identidade se constrói a partir de um mito fundador. Então era preciso uma mitologia épica para construir essa unidade. Isso foi fartamente explorado. Depois, historiadores como Varela e Alfredo Ferreira Rodrigues ajudaram a construir uma ideia épica de revolução, influenciados pela perspectiva histórica dominante no século XIX. Nos anos 1930, os militares ligados ao Instituto Histórico e Geográfico fazem, em plena Era Vargas, uma recuperação dos fatos com interesse cívico de engrandecimento das atitudes militares. O interessante é que a Revolução Farroupilha foi feita por militares e escrita por militares.

Sul21 – E qual o papel dos historiadores na desmistificação da revolução?
 
Juremir – Os grandes historiadores estão desmistificando a Revolução Farroupilha. Nomes como Tau Golin, Moacyr Flores, Mário Maestri, Sandra Pesavento, Margeret Bakos, Décio Freitas… Moacyr Flores talvez seja aquele que trabalhou mais intensamente a Revolução Farroupilha. O livro “O Modelo Político dos Farrapos” é um marco na desmistificação. Tau Golin fez uma espécie de panfleto que teve muito impacto, questionando se Bento Gonçalves seria herói ou ladrão. Margaret Bakos trouxe muitos dados sobre a condição do negro na Revolução Farroupilha. São esses os caras que realmente têm escrito coisas importantes sobre a Revolução Farroupilha. Se fosse na França, esse pessoal estaria sendo destacado. Mas aqui é o inverso. Talvez porque o Rio Grande do Sul, como qualquer lugar, precisa de um mito fundador. E o que tem à mão é esse. A história, nesse sentido, estraga um pouco este prazer. Os fatos históricos não confirmam toda essa grandeza.

Sul21 – O que significa hoje comemorar a Revolução Farroupilha?
 
Juremir – Vale lembrar que a comemoração da Semana Farroupilha, tal qual a fazemos hoje, começa em dezembro de 1964. É uma obra da ditadura militar. O patriotismo servia muito bem nessa época. Acho muito interessante a ideia de que essas pessoas se reúnem para comemorar outra coisa. Comemoram um ideal de vida agropastoril, uma nostalgia da vida no campo, quando éramos realmente gaúchos e tínhamos estâncias. Há também o gosto de estar junto, de conviver e ter algo a compartilhar – algo que o sociólogo francês Michel Maffesoli chama de “tribalismo”. Esse fenômeno pode estar no escotismo, numa torcida de futebol, ou nesse congraçamento anual onde todos se encontram e brincam um pouco de casinha, como dizia Flávio Alcaraz Gomes. A Revolução Farroupilha surge como uma espécie de cimento para fortificar esse interesse de estar junto. Mas ela também tem um componente ideológico conservador. Muitos dos que estão comemorando a Revolução Farroupilha não conhecem grande coisa da sua história. Se for examinar no detalhe, eles não sabem. Conhecem a cartilha do Movimento Tradicionalista Gaúcho, que só destaca aquilo que exclusivamente lhes convém.
Juremir: "muitos dos que comemoram a Revolução Farroupilha não conhecem grande coisa da sua história. Conhecem a cartilha do MTG" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Qual o papel da mídia na consolidação do mito?
 
Juremir – A mídia precisa adular esse público para poder fidelizá-lo. É uma estratégia de marketing que reforça os mitos e dificulta a desconstrução feita pelos historiadores. O interesse da mídia nessa questão é meramente comercial. É uma estratégia de reforço de algo que é caro ao público. Ninguém quer brigar com boa parte do Rio Grande do Sul. É melhor dar uma adulada e deixar os universitários e acadêmicos falarem outras coisas. Se o público está feliz, por que estragar o prazer? Além de tudo, a mídia é conservadora. Muitas vezes os jornalistas compartilham esses valores e acreditam nessas histórias porque foram formados nessa matriz. Tudo isso entra no mesmo caldeirão e, ano a ano, as vozes dos historiadores ficam praticamente inaudíveis.

Sul21 – O Rio Grande do Sul tem uma relação mais intensa com seus mitos do que outras regiões do país?
 
Juremir – Talvez, até pelo tipo de construção história do Rio Grande do Sul, com tantas guerras de fronteira. Vários movimentos e situações se aproveitaram disso: a República, os anos Vargas, a ditadura militar e o crescimento do movimento tradicionalista.

Sul21 – Isso contribui para uma imagem mais arrogante do Rio Grande do Sul nos outros estados brasileiros?
 
Juremir – Isso é algo que só nós enxergamos. Os cariocas acham esse negócio de Semana Farroupilha quase ridículo, uma espécie de carnaval a cavalo.

Sul21 – E o nosso hino? Cantamos um hino que fala em uma “ímpia e injusta guerra”.
 
Juremir – Nosso hino é racista, ainda por cima, quando diz que “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. É um insulto àqueles que lutaram com os farroupilhas e foram atraídos a eles com a promessa de liberdade.

Sul21 – Até hoje, o senhor ainda recebe críticas por causa do livro?
 
Juremir – Alguns historiadores preferem se afastar desse tema. Cansam de brigar e ouvir insultos. Eu mesmo sofri todo tipo de desqualificação. Diziam que eu não sou historiador e que o meu livro só requenta outras informações. Na época que saiu o livro, a Farsul ameaçou me processar, até por um mal entendido. Acharam que eu tinha dito que a Farsul tinha os métodos das Farc. O que eu disse, na verdade, foi que os farroupilhas tinham a ideologia da Farsul e os métodos das Farc. Recebi e-mails e torpedos de pessoas dizendo que iam me capar. Senti hostilidade em muitas situações. Já perdi a conta do número de insultos que recebi por e-mail, Twitter e Facebook. O maior insulto é a tentativa permanente de desqualificação do teu trabalho.