sábado, 3 de maio de 2014

Noam Chomsky: o pânico dos EUA sobre a Crimeia se dá pelo medo de perder a dominação global | Portal Fórum

A linha vermelha dos EUA está firmemente localizada nas fronteiras russas… E a anexação da Crimeia a violou



Por Noam Chomsky, em Alternet | Tradução: Vinicius Gomes




A atual crise na Ucrânia é séria e perigosa, tanto, que até alguns
comentaristas chegam a compará-la com a Crise dos Mísseis Cubanos de
1962.
A colunista Thanassis Cambanis resume
o problema central da questão sucintamente no Boston Globe: “A anexação
da Crimeia por Putin é uma quebra na ordem a qual os EUA e seus aliados
vieram a depender desde o fim da Guerra Fria – notoriamente, uma na
qual as maiores potências apenas interveem militarmente quando eles
contam que o consenso internacional esteja do lado deles; se isso não
acontecer, que ao menos eles não atravessem a “’linha vermelha” de uma
potência rival.
Assim sendo, o maior crime internacional de nossa era: a invasão do
Iraque por parte dos EUA e Reino Unido, não foi uma quebra nessa ordem
mundial, pois quando falharam em contar com o apoio internacional, os
agressores não atravessaram as linhas vermelhas da Rússia ou da China.
Em contraste, a tomada da Crimeia por Putin e suas ambições na Ucrânia, atravessaram as do norte-americanos.
Consequentemente, “Obama está focado em isolar a Rússia de Putin ao
cortar os laços econômicos e políticos com o resto do mundo; limitando
suas ambições expansionistas em sua própria vizinhança e, tornando-a
efetivamente, em um Estado pária”, escreveu Peter Baker no New York
Times.
As linhas vermelhas dos EUA, em resumo, estão localizadas nas
fronteiras russas, o que faz com que as ambições russas “em sua própria
vizinhança” violem a ordem mundial e criem uma crise.
Esse argumento é generalizador. Outros países também possuem suas
linhas vermelhas, que são suas fronteiras. Mas isso não aplicado ao
Iraque, por exemplo, ou até mesmo o Irã – onde os EUA continuam a
ameaçar com um ataque (“nenhuma opção está descartada).
Tais ameaças violam não apenas a Carta das Nações Unidas, mas também a
resolução da Assembleia Geral condenando a Rússia, a qual os EUA
acabaram de assinar. A resolução começa dizendo que a Carta da ONU bane a
“ameaça ou o uso da força” em assuntos internacionais.
A crise dos mísseis em Cuba também revelou as linhas vermelhas das
grandes potências. O mundo chegou perigosamente próximo a uma guerra
nuclear quando o presidente Kennedy rejeitou a oferta do premiê Kruschev
em acabar a crise ao simultaneamente retirarem seus mísseis de Cuba
junto com os dos EUA instalados na Turquia. (Os mísseis norte-americanos
já estavam agendados para serem substituídos pelos muito mais letais
submarinos Polaris, sendo parte de um maciço sistema ameaçando a Rússia
com destruição).
Nesse caso também, as linhas vermelhas dos EUA estavam nas fronteiras russas e isso era aceito amplamente.
A invasão dos EUA na Indochina, assim como a invasão do Iraque, não
cruzou linha vermelha alguma; assim como muitas ações predadoras dos EUA
ao redor do mundo.
Sobre a atual situação, o professor de Oxford, Yuen Foong Khong
explica que existe uma “longa tradição no pensamento estratégico dos
norte-americanos: sucessivas administrações têm enfatizado que o
interesse vital dos EUA é evitar a existência de uma hegemonia hostil –
no caso, a Rússia – de dominar qualquer outra região importante do
mundo.
Além disso, é normalmente aceito que os EUA devem “manter sua
predominância”, pois “foi a hegemonia dos EUA que manteve a paz e a
estabilidade ao redor do muno” – sendo que a última parte pode ser
traduzida como: subordinação às exigências norte-americanas.
Como era de se esperar, o mundo pensa de maneira diferente, e considera que os EUA que são um “Estado pária” e a “maior ameaça à paz no mundo”, com nenhum outro competidor chegando perto nas pesquisas. Mas afinal, o que o mundo sabe?
O artigo de Khong também fala sobre a crise na Ásia, causada pelo
crescimento da China, que cada vez mais se aproxima de se tornar a
“maior economia da Ásia”, e assim como a Rússia, tem “ambições
expansionistas em sua própria vizinhança”, cruzando também as linhas
vermelhas dos EUA.
A recente viagem do presidente Obama à Ásia foi para afirmar a “longa tradição” dos EUA, mas em um linguajar diplomático.
A condenação quase universal de Putin para com o Ocidente inclui seu
discurso emocionado no qual ele reclamou amargamente que os EUA e seus
aliados “os enganou várias vezes, tomaram decisões por suas costas, e
apresentaram fatos completamente mentirosos sobre a expansão da OTAN em
direção ao leste, com instalações e infraestruturas militares nas
fronteiras russas”. E sempre a mesma conversa era: “Bem, isso não
envolve vocês”.
As queixas de Putin são de fato precisas. Quando o presidente
Gorbachev aceitou a unificação da Alemanha como parte da OTAN – uma
surpreendente concessão histórica – foi acordado com Washington que a
OTAN não se moveria um centímetro para o leste, se referindo à Alemanha
Oriental.
A promessa foi imediatamente quebrada e quando Gorbachev reclamou,
ele foi instruído apenas à fazer isso verbalmente, sem o uso da força.
O presidente Clinton continuou com a expansão da OTAN para muito mais
ao leste, até às fronteiras russas. Hoje, existem pedidos para que a
OTAN se estenda até à Ucrânia, indo à fundo na “vizinhança” histórica da
Rússia. Mas isso não “envolver os russos”, pois a responsabilidade de
“manter a paz e segurança” exige que as linhas vermelhas dos EUA estejam
nas fronteiras russas.
A anexação russa da Ucrânia foi uma ação ilegal, que violou a lei
internacional e tratados específicos. Mas não é fácil encontrar nada
comparável nos últimos anos com um crime ainda maior como foi a invasão
do Iraque.
Mas um exemplo próximo seria o controle norte-americano da Baía de
Guantánamo, no sudeste de Cuba; Guantanamo foi tirada de Cuba à força e
não foi devolvida desde então, apesar das frequentes exigências dos
cubanos desde que obtiveram sua independência em 1959.
Mesmo assim, a Rússia tem um ponto muito mais forte. Mesmo se
desconsiderar um forte apoio interno pela anexação, a Crimeia é
historicamente russa: ela tem o único porto em águas quentes, é o lar da
frota russa e possui enorme significância estratégica. Os EUA não
possui qualquer argumento por Guantanamo exceto seu monopólio de força.
Uma razão de os EUA se recusarem a devolve-la à Cuba é,
presumivelmente, ser uma grande maneira dos norte-americanos controlarem
a região – prejudicando severamente o desenvolvimento cubano. Essa é
uma das principais políticas dos EUA e um de seus grandes objetivos há
50 anos, incluindo uma guerra econômica e de terror, em larga escala.
Os EUA alegam que ficam chocados com as violações dos direitos
humanos em Cuba, esquecendo-se de suas próprias violações em Guantánamo –
fazendo com que as válidas acusações contra Cuba não possam ser
comparadas com as práticas regulares dos aliados norte-americanos na
América Latina; e que Cuba tem estado sobre ataque severo dos EUA desde
sua independência.
Mas nenhuma dessas violações cruzam linha vermelha alguma ou causa
alguma crise. Elas caem na categoria de invasões norte-americanas na
Indochina e Iraque; a derrubada constante de regimes parlamentares e a
instalação de ditaduras criminosas e nosso hediondo histórico de outros
atos para “garantir a paz e a estabilidade”.

A mais poderosa "organização" sobre a qual você jamais ouviu falar | Revista Fórum Semanal


A mais poderosa “organização” sobre a qual você jamais ouviu falar





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Acadêmico britânico investigou como cada vez mais
países do mundo todo estão se baseando em recomendações internacionais
para aprovar leis “antiterrorismo” repressivas que negligenciam os
direitos humanos 



Por Vinicius Gomes


ben
Hayes: ‘Dar as notas máximas para os seus piores alunos’ (foto: tni.org)
Ben Hayes tem trabalhado com organizações de liberdades civis desde
1996 e é especialista em segurança internacional e em de políticas
públicas de segurança. Um dos seus principais estudos é acerca do
impacto que a Força-Tarefa de Ação Financeira (FATF, sigla em inglês) tem na sociedade civil e organizações sem fins lucrativos.


Os países sujeitos aos requerimentos da FATF, no que concerne ao
combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento terrorista, devem
introduzir leis criminais específicas sobre bloqueio de contas
bancárias, retenção de dados, regulamentações na indústria do serviço
financeiro e a cooperação internacional – tudo com a FATF guiando. Os
países participantes passam por rigorosas avaliações de suas políticas
nacionais e sistemas judiciários que analisam o quanto estes estão
cumprindo as recomendações da FATF. A recompensa que o FATF garante
àqueles que as cumprem é o “carimbo” confirmando o país como um lugar
seguro para se realizar negócios.


Quanto mais recomendações adotadas (leia-se: quanto mais repressiva
forem as leis), melhor a pontuação do país, de acordo com Hayes, o
resumo seria: “Dar as notas máximas para os seus piores alunos”.


Fórum – Fale um pouco sobre aquela que você chamou de “a mais poderosa organização da qual nunca ouvimos falar”.


Ben Hayes - Sim, eu a chamo assim, mas, na realidade, a FATF
nem chega a ser uma organização como a palavra pode sugerir. Ela não tem
diretor, ou sede e coisas assim. Bem, de qualquer maneira, tudo começou
durante a década de 1990, quando os países do G7 criaram essa
força-tarefa que escreveu 40 recomendações para o combate à lavagem de
dinheiro ao redor do planeta. Os países que seguiam essas recomendações
em suas legislações recebiam notas e eram reconhecidos como “detentores
de boa governança” – no sentido global. Então, funcionários do FMI ou do
Banco Mundial passavam relatórios dizendo que o país X era um bom local
para se investir, era seguro, entre outras coisas, pois prezava pelo
combate à lavagem de dinheiro de cartéis de drogas ou outras
organizações criminosas. O que acontece é que, depois do 11 de Setembro,
criaram-se mais nove recomendações – essas específicas para o combate
ao financiamento ao terrorismo.


Fórum – E quando isso passou a ser ruim?


Hayes - Bem, basicamente pelo fato de a FATF não prestar
contas a ninguém e passar a exigir cada vez mais que os países
signatários aplicassem leis mais rigorosas no combate ao financiamento
ao terrorismo. Funcionaria mais ou menos assim:  de um lado, se os
países se recusam a cooperar – vamos dizer, por não terem a intenção ou
necessidade de criar uma lei “antiterrorismo”, por exemplo –, a FATF
chega e diz: ‘Nós vamos te colocar na lista negra’. Se você é colocado
na lista negra, isso pode ser um grande problema. Eles exercem pressão
na comunidade internacional para que todos digam “você deve fazer isso”.
As notas para os países que seguem as recomendações vão de ‘Não
Cumprido’/'Parcialmente Cumprido’/'Amplamente Cumprido’ e ‘Cumprido’.
Então você tem 40 notas diferentes que em seguida são transformadas em
uma média e daí vem o seu resultado final. E você tem o caso de que
alguns países estão desesperados para receber uma avaliação boa. Quando
isso não acontece, a FATF usa o relatório para apontar que lei eles
devem “melhorar” e o país tem de mostrar o progresso, dizendo ‘olha, foi
isso que nós fizemos’. E o que temos testemunhado são algumas leis bem
repressivas a respeito.


Então, como eu disse, tudo começou com lavagem de dinheiro, mas com o
11 de Setembro vieram essas nove novas recomendações sobre terrorismo –
que envolvem, em muito, a implementação das resoluções da ONU em
contraterrorismo. Principalmente a Resolução 1373.
De qualquer maneira, duas dessas nove recomendações da FATF são
particularmente contenciosas: uma é sobre organizações sem fins
lucrativos e outra é sobre grupos terroristas na lista negra – que
basicamente querem dizer que os países devem criar suas listas de
terroristas domésticos.


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Fórum – Qual o maior exemplo disso?  


Hayes - Ah, a Turquia… A Turquia é o maior lugar no mundo onde
se realizam operações antiterroristas nos últimos 20 anos. A Turquia já
prendeu mais pessoas sob sua legislação antiterrorista que qualquer
outro país no mundo: jornalistas, advogados, ativistas curdos, políticos
da oposição, entre outros. Uma legislação antiterrorista extremamente
repressiva e, pouco tempo atrás, a Turquia foi avaliada pela FATF,
certo? E a FATF disse que eles não tinham uma lei para o congelamento de
contas bancárias por suspeita de terrorismo, e eles dizem que, se a
Turquia não aprovar uma lei assim, eles irão para a lista negra. O
governo turco vem e responde que eles não precisam implantar uma lei
dessa, mas o que aconteceu é que o ministro da Justiça turco foi ao
Parlamento e disse aos outros parlamentares: ‘Escutem, eu sei que vocês
não gostam dessa lei. Eu sei que vocês acham que nós não precisamos
dela, mas, se não a aprovarmos, isso afetará a ajuda e o comércio do
país. O suprimento de dinheiro entrando no país será prejudicado e isso
atingirá nossa economia, então, por favor, tapem o nariz e votem’.


Eles aprovaram a lei e, no dia seguinte, a Fitch, uma agência de classificação de risco de países, emitiu uma nota elogiando
a adoção do governo turco em sua lei antiterrorista sobre congelamento
de bens. Quero dizer, isso te faz pensar sobre se é assim que leis estão
sendo criadas – especialmente leis para o combate ao terrorismo… Se
isso aconteceu em um país como a Turquia, que tem seus problemas, mas é
de fato democrática, o que pode acontecer com países que têm problemas
verdadeiros com o estado de direito? E os governos que dizem que não
sabem como criar essas leis, eles [FATF] dizem: ‘Sem problemas, nós a
escrevemos para você’. Então é a basicamente assim que as leis
antiterroristas têm se espalhado pelo mundo.


'A Turquia já prendeu mais pessoas sob sua legislação antiterrorista que qualquer outro país no mundo' (foto: anarquista.net)
A Turquia já prendeu mais pessoas sob sua legislação antiterrorista que qualquer outro país no mundo’ (foto: anarquista.net)
Fórum – Mesmo com o fato de que muitos países não possuírem provas de atividades terroristas em seu território? 


Hayes - Mesmo assim. A FATF não trabalha sozinha, certo?
Existem outras convenções, como a da ONU, que diz que todos os países
devem se ajudar na luta contra o terrorismo, e isso é algo que eu ouvi e
não tenho provas por escrito, mas eu de fato já ouvi que os avaliadores
– os caras cujo trabalho é supervisionar a implantação dessas
recomendações, vão aos países e dizem: ‘Certo,
vocês têm de criar uma lista de terroristas’; e o país diz que não tem
qualquer grupo terrorista ali. Os avaliadores não querem saber, a FATF
diz para eles lhes darem nomes, ‘vocês têm de ter alguns nomes para que
possamos colocar na lista e congelar suas contas bancárias
‘,
diriam eles. E para mim – isso como um veículo para se espalhar essas
leis – é algo maluco, porque, primeiro: poucas pessoas estão cientes de
que isso está de fato acontecendo; segundo: quando o Estado propõe essas
leis, ninguém sabe de onde elas estão vindo.



No mês passado, no Sri Lanka, diversos ativistas tâmeis fizeram
denúncias contra o governo por crimes de guerra. No dia seguinte, o
governo do Sri Lanka colocou 429 nomes em sua lista de terroristas domésticos
e, de acordo com a Resolução 1373, todos os países devem ajudar o Sri
Lanka, seja os impendido de viajar, de realizar transações bancárias
internacionais, ou qualquer outra coisa. Então nós temos esse conjunto
de leis extremamente repressivas sendo recomendadas ao redor do mundo
por alguém que não presta contas a ninguém. Não estou dizendo que não
existe um problema com terrorismo no mundo, porque existe e a comunidade
internacional deve trabalhar unida para lidar com isso, mas, se você
olhar para o regime da FATF e suas recomendações, não existe uma só
frase que diga de maneira significativa: “Isso é como você protege os
direitos humanos; isso é como você protege o direito a um julgamento
justo; à liberdade de associação; à liberdade de expressão etc. Não há
nada que diga como evitar que essas leis sejam abusadas por governos
repressivos e isso para mim é o maior problema. Nós tivemos isso em
países democráticos, nós tivemos grandes problemas com a maneira que
essas leis foram aprovadas e implantadas, como no Reino Unido, nos EUA,
na Turquia ou Austrália – e você leva essas leis para partes
democráticas do globo e as forças a serem adotadas. É como dar um cheque
em branco para a repressão.


Fórum – No Brasil, temos tido um debate sobre a aprovação de uma
Lei Antiterrorismo também. Você acredita que a FATF tenha algo a ver?



Hayes - Não, eu acho que isso não tem conexão com a FATF,
porque ela é sobre o financiamento ao terrorismo. Eu acho que, aqui no
Brasil, isso se trata apenas de uma maneira óbvia de pisar em cima de
protestos, pois, assim como na Europa, antes do 11 de Setembro, você
tinha seis ou sete países com uma legislação antiterrorista. Depois
disso, a União Europeia veio com todas essas leis e muitos países
adotaram – até mesmo países europeus, que nunca tiveram experiência
alguma com terrorismo.


Mas de qualquer jeito, todos esses atos terroristas são crimes mesmo
assim. Mesmo que você exploda um banco, ou um jornalista morra, como
aconteceu aqui, tudo isso já são crimes. Você não precisa de uma
legislação específica para lidar com isso, pois o que essas leis
antiterroristas dão são poderes para a polícia ou o governo irem além da
lei criminal já existente, certo? Elas são usadas para banir
organizações com financiamento internacional – ou não -, para prender
preventivamente, prendendo pessoas por mais tempo do que o necessário e
sem qualquer justificativa ou acusação para tal. Então, em minha
experiência, muitas dessas leis são usadas como um sistema judiciário
secundário – dispensando muitas das leis criminais vigentes, algo como
dizer: ‘Isso é terrorismo, então nós temos esses poderes extras’, e
acredito que esse seja o caso do Brasil.


Fórum – Você comentou sobre banir organizações com financiamento
internacional. Há poucos meses, a Venezuela foi palco de uma série de
protestos de rua, onde o governo as acusou de terem financiamento
norte-americano com fins golpistas. Como um país “antagonista” dos EUA,
por exemplo, lida com essa questão de interferência sem cair na tentação
da repressão?





Hayes - É uma questão difícil… E eu entendo… Veja, eu não nego
que isso aconteça – que algumas ONGs sejam usadas por países
estrangeiros –, nós temos o mesmo argumento na Ucrânia, certo? Os russos
dizem que tudo isso foi programado pela Europa ou ONGs estrangeiras e
isso é complicado.


Eu não vou dizer que toda ONG que receba dinheiro da UE e da Usaid,
por exemplo, seja agente dos EUA ou da Europa – isso é absurdo. Eles de
fato financiam trabalho pró-democracia, defesa dos direitos humanos, sem
qualquer segunda intenção – mas, ao mesmo tempo, eu não vou dizer que
os EUA não tenham uma agenda política, quando falamos de países como a
Venezuela… É difícil.


O que eu de fato sei é que em qualquer lugar do mundo onde os países
passaram a adotar leis que dizem ‘nós temos que tomar um cuidado extra
com ONGs, nós temos de impor limites ao financiamento estrangeiro’ ou
qualquer coisa do gênero, essas leis, invariavelmente prejudicavam ONGs
que realmente fazem parte de movimentos sociais locais também, e isso é
fato. A realidade é que se você quer desafiar a corrupção, ou fazer
trabalho para direitos humanos ou pró-democracia – de uma maneira
organizada – onde essas questões são um grande problema, é frequente os
casos onde o financiamento estrangeiro é a única esperança deles para
sobreviver como uma ONG.


Nós vimos a mesma coisa na Índia: eles possuem uma regulação
extremamente restritiva chamada Regulação da Contribuição Estrangeira,
que foi adotada pela Indira Gandhi em 1976, pois ela estava preocupada
com o dinheiro entrando no país para financiar a oposição – essa lei é
utilizada hoje e foi recentemente atualizada, e está sendo usada contra
qualquer movimento social; como nos protestos maciços contra uma usina nuclear de uma joint venture
da Índia com a Rússia. Protestos maciços, centenas de milhares de
pessoas, manifestantes pacíficos, correntes humanas, todas essas coisas
e, de repente, começaram a atirar nas pessoas e 700 organizações – todas
as quais recebiam algum tipo de financiamento estrangeiro, seja se
viesse da Finlândia ou dos EUA – tiveram de uma só vez, sua permissão
para trabalhar revogadas, suas contas bancárias congeladas, escritórios
invadidos e, eu não vou dizer que os Estados não tenham o direito de
combater ações de influência estrangeira, pois elas existem, mas nós
também temos que ter o cuidado ao dizer que isso seja sempre legítimo.


Em minha experiência, os movimentos sociais também estão sendo
colocados no mesmo saco e isso está se tornando um pretexto para os
governos acabarem com qualquer um que proteste contra eles. Nos velhos
dias, eles [os governos] simplesmente vinham, te batiam e te jogavam na
cadeia; nesse mundo globalizado, temos todas essas novas medidas
burocráticas e financeiras que servem ao mesmo propósito: se você pode
congelar os bens de uma organização e invadir o seu escritório, isso tem
o mesmo efeito amedrontador, só que sem a violência.


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Fórum – E considerando que alguns dos países com as leis mais repressivas são aliados de países do Ocidente? 


Hayes - Eu suponho que isso seja uma questão de política
externa. Quer dizer, há pouco tivemos o Tony Blair dando esse discurso
no qual dizia o que temos de fazer no Oriente Médio e se observa como ele mudou de lado na situação da Síria:
ele costumava apoiar os rebeldes sírios e agora apoia a participação de
Assad – dizendo que esse é o menos pior dos males – e continuou como se
estivesse em uma cruzada neoconservadora, chamando o extremismo
islâmico de a maior ameaça que nós temos no mundo hoje em dia, mas não
diz uma palavra sobre a Arábia Saudita: o mais brutal dos regimes e um
dos maiores patrocinadores desse mesmo extremismo islâmico. Digo, países
como EUA e Reino Unido pregam uma coisa sobre direitos humanos e
aplicam esse discurso de maneira muito seletiva. Extremamente seletiva.


Fórum – Como no Egito. 


Hayes - Exato.


Fórum – Centenas de pessoas sentenciadas à morte em um julgamento de 40 minutos. 


Hayes - Exato. E agora nós os apoiamos – foi um bom “golpe”.
Mas você sabe, a hipocrisia é a marca padrão na diplomacia ao redor do
planeta, desde que mundo é mundo. E então, é isso o que nós temos
tentado trabalhar em um nível internacional, você tem todos esses
discursos sobre dar poder à sociedade civil, sempre usando a Primavera
Árabe como exemplo, e um financiamento maciço pelos EUA e Europa a esses
movimentos; mas de outro lado, você cria um ambiente desestabilizador
para essa mesma sociedade civil por conta dessas recomendações da FATF.
Então o que temos tentado fazer é equilibrar essa balança e tendo
conversas com os governos dos EUA e da Europa.




'Vocês acabaram de ter o Marco Civil aprovado e, nessa nova lei, um dos maiores debates era sobre a retenção de dados e por quanto tempo as teles deveriam reter informações sobre seus clientes (foto: Roberto Stucker Filho/PR)
‘Vocês
acabaram de ter o Marco Civil aprovado; um dos maiores debates era
sobre a retenção de dados e por quanto tempo as teles deveriam reter
informações sobre seus clientes’ (foto: Roberto Stucker Filho/PR)
Fórum – E hoje, 2014, um contexto de vigilância em massa e retenção de dados por governos, o que mudou?




Hayes - Sim, algo que eu deveria ter comentado antes sobre a
FATF é que quando eu comecei a pesquisar sobre o efeito das
recomendações deles nas organizações sem fins lucrativos, alguns anos
atrás… Bem, hoje estamos em um contexto pós-Snowden, certo? Toda a
questão de vigilância acontecendo e vocês acabaram de ter o Marco Civil
aprovado e, nessa nova lei, um dos maiores debates era sobre a retenção
de dados e por quanto tempo as teles deveriam reter informações sobre
seus clientes; acredito que aqui no Brasil são seis meses, certo? Na
União Europeia, o debate é sobre ser dois anos ou não. Enfim, a questão é
que levando esse tópico para os padrões da FATF, as informações
financeiras, todos os dados dos clientes, todas as informações que você
dá quando abre uma conta no banco e todas suas transações, devem ser
retidas por 5 anos – e isso em todo o planeta.


E não existe qualquer regra dizendo: ‘Bem, e se os governos quiserem
acessar esses dados, eles precisariam de um mandato? Eles precisam
recorrer a um juiz?’ Então, nós temos esse problema com vigilância em
massa e retenção de dados na Europa, com o debate sobre dois anos acerca
dos dados de comunicações – mas e quanto aos dados financeiros?


Outro ponto: uma das coisas que o FATF fez com os bancos é que eles
praticamente os tornaram delegacias de polícia. Os bancos têm uma
obrigação legal de reportar qualquer transação financeira suspeita e
isso gera pelo menos 1 milhão de relatórios diferentes – só em Londres –
todos os anos. Nos EUA, o número chega a 50 milhões de relatórios. O
que acontece é esse acúmulo gigantesco de informações e nós não sabemos o
que acontece com esses dados; para onde eles vão, o que é feito com
eles ou para o que eles são usados. Essa vigilância em massa
indiscriminada é compatível com os direitos humanos, por exemplo?


Fórum – E está funcionando? 


Hayes - Essa é a pergunta: está funcionando? Bem, nós temos
todos esses filtros para controle de lavagem de dinheiro e financiamento
de terrorismo, mas de repente acontece uma transação que envolve, sei
lá, metade do PIB do Burundi e talvez um funcionário vá até seu chefe
para reportar e ouve um ‘Esqueça isso, não faça nada’ – o que geralmente
acontece com cartéis de drogas, por exemplo. Então essa é a pergunta
que deveríamos estar fazendo: o sistema é funcional para o seu
propósito, ou tem consequências imprevistas?


Estão criando um sistema que deveria ir atrás do 1%, certo? Aquele
dos bilhões suspeitos, mas eles estão indo para cima de todo mundo –
movimentos sociais, ONGs e manifestantes -, enquanto esse 1% está indo
muito bem, obrigado. E o crime organizado continua lucrando, a corrupção
continua subindo, a evasão fiscal está em alta e então, 25 anos depois,
eles deveriam perguntar: isso realmente está funcionando?