Pepe Escobar,
Asia Times Online
Tradução de
Caia Fittipaldi no viomundo
Executivos de Hollywood e políticos de Washington são russófobos
maníacos. Considerando o muito lamentável nível do discurso político
nessas duas capitais do entretenimento de massa, ninguém deve esperar
que os “formadores de opinião” locais tenham lido o recente trabalho do
professor Paul Kennedy, no qual a história da Europa é narrada em
formato de rota de colisão com os EUA, a partir da inevitável retração
dos EUA na nova ordem do novo mundo multipolar emergente.
A russofobia hollywoodiana sempre emerge como caricatura completa,
como no [filme] atualmente em cartaz “Salt”, veículo para exibir a
irrepreensivelmente sem graça Angelina Jolie – com rapto de bebês pela
ex-KGB, os quais são convertidos em superagentes infiltrados nos EUA,
onde fazem carreira e pacientemente esperam o momento de porem-se a
infernizar e sabotar a democracia ocidental, sempre começando por tentar
assassinar o presidente dos EUA. Jolie é tão convincente quanto aquelas
super-toupeiras eslavas que aparecem nos roteiros escritos pela CIA
para vídeos de Osama bin Laden.
Por sua vez, a russofobia de Washington emerge como uma
Cortina-de-Ferro-ao-contrário, erguida pelos EUA, os quais, como rezam
os termos da doutrina do Pentágono, de dominância militar de pleno
espectro, combinados com a OTAN, comandam um anel de bases militares
para cercar completamente a Rússia, do Báltico ao Cáucaso e à Ásia
Central.
E o que respondem os russos? Tanto no Afeganistão quanto no Irã, a
resposta leva a marca do bom jogador de xadrez, discreto, calado, direto
ao ponto e com vistas de acertar no milhar.
Todas as jihads levam a Sheberghan
No Afeganistão, a liderança em Moscou sempre soube que o muro tinha a
ver com o plano, de EUA e OTAN, para estabelecerem uma nova hegemonia
na Ásia Central – a sempre mesma história da dominância militar de pleno
espectro. Mas em seguida Moscou descobriu – ao seguir o exemplo dos
chineses, que investiram US$3 bilhões em minas ao sul de Cabul – que o
melhor dos mundos seria fazerem muito dinheiro, enquanto o ocidente bate
cabeça naquele atoleiro de guerras que jamais vencerá. A isso se chama o
plano da Organização de Cooperação de Xangai, para erguer o cerco à
volta da OTAN.
O presidente afegão Hamid Karzai acaba de visitar Moscou, onde foi
saudado pelo presidente Dmitry Medvedev com uma cesta de projetos no
valor de US$1 bilhão – de usinas hidrelétricas a exploração de minérios,
os mesmos minérios que levaram o Pentágono, recentemente, a desenterrar
suas predições exageradas de que o Afeganistão seria uma Arábia Saudita
do lítio.
A história, às vezes, tem meios para tornar a realidade cada vez mais
espantosa. A indústria de mineração afegã, baseada em Sheberghan, na
remota província de Jowzjan, hoje controlada pelas milícias do general
Abdul Rashid Dostum, foi, simplesmente, inventada pelos soviéticos.
Dostum, guerreiro uzbeque, atualmente ministro no governo de Karzai,
começou a construir sua carreira no exército afegão pró-soviético dos
anos 1970s, antes de espertamente migrar para os mujahideen durante a
jihad dos anos 1980s, quando se tornou um dos “guerreiros da liberdade”
do ex-presidente Ronald Reagan dos EUA.
Reza a lenda que, quando Dostum visitou o Texas, no final dos anos
1990s, levava com ele o mapa do tesouro – toda a prospecção que os
soviéticos haviam feito das riquezas minerais do Afeganistão. Chama-se a
isso posicionamento perene; hoje, Dostum está no lugar certo para se
beneficiar da prodigalidade dos russos. O Dr. Zbigniew “O Grande
Tabuleiro de Xadrez” pode ter negociado um golpe crucial contra a União
Soviética – sob a forma da jihad dos anos 1980s.
Mas é possível que os russos riam por último. O Afeganistão sempre
será visto por Moscou como sua esfera de influência. A Rússia, além de
ter boas conexões com a facção uzbeque, também tem bons contatos na
facção Panjshir do governo Karzai – através do general Mohammed Fahim,
vice-presidente do Afeganistão e líder supremo incontestável da
espionagem local.
O novo ‘El supremo’ norte-americano da guerra do Afeganistão, general
David “Estou sempre de olho em 2012” Petraeus – que se dedica
atualmente a reescrever a guerra “Af-Pak” como se os EUA estivessem
derrotando os Talibã – talvez provoque ondas de risinhos em Moscou (para
não falar de Quetta, onde vivem os líderes da al-Qaeda). Mas, hoje,
Moscou pode dar-se até o luxo de ser magnânima e deixar passar por
território russo os suprimentos da OTAN. Os russos sabem que onde
interessa – onde estão os bons negócios, no norte do Afeganistão – seu
futuro não poderia ser mais luminoso.
Tudo que seja nuclear vira ouro
A nova usina nuclear de Bushehr – a primeira, no Oriente Médio –
inaugurada conjuntamente sábado passado por Rússia e Irã, posiciona o
Irã, sem qualquer dúvida, como umas das 29 nações que produzem energia
nuclear no mundo. Mas é também grande negócio para a indústria nuclear
russa, nesse caso representada pela estatal Rosatom.
Há seis meses, o primeiro-ministro Vladimir Putin disse que a Rosatom
tem capacidade para construir 25% das usinas nucleares em todo o mundo
(atualmente, construiu 16% delas). Atomstroiexport, o braço de
construção civil da Rosatom, construirá uma grande usina na Turquia, e
já pôs os olhos em Bangladesh e no Vietnam. Bushehr, que custou mais de
$1 bilhão, gerará 2% da eletricidade do Irã. Cada um dos quatro reatores
a serem construídos na Turquia, ao custo de $20 bilhões, produzirá 20%
mais energia que Bushehr.
O principal executivo da Rosatom Sergei Kiriyenko anda dizendo que
Bushehr é um “grande projeto internacional” do qual participaram mais de
dez países da União Europeia e do Pacífico asiático. O que ninguém sabe
com certeza é por que demorou tanto a ser inaugurado, dado que a Rússia
assumiu o projeto em 1992 (Bushehr começou a ser construída em 1974,
pela alemã Kraftwerk Union, empresa que resultou de uma fusão entre
Siemens e AEG. Em 1980, a Siemens deixou o Irã).
Já se falou de tudo, para justificar os muitos atrasos – sanções dos
EUA e ONU; desconfianças em Teerã, quanto aos russos; o fato de que
Teerã não pagava em dia. Agora, são águas passadas. Kiriyenko acertou,
pelo menos em parte, ao dizer que Bushehr “confirma a posição da Rússia,
de que todos os países do mundo têm direito à energia nuclear para fins
pacíficos” – desde que se deixem monitorar pela Agência Internacional
de Energia Atômica, IAEA.
Nos termos do acordo Teerã-Moscou, a Rússia fornecerá combustível
nuclear para Bushehr e encarregar-se-á dos resíduos (de modo que o Irã
não possa extrair plutônio dos resíduos), e tudo sob monitoramento da
IAEA. Centenas de engenheiros russos permanecerão trabalhando em Bushehr
até 2013, antes de que Teerã assuma total controle sobre a usina.
No início de agosto, até o Departamento de Estado dos EUA, pelo
principal porta-voz Philip Crowley, teve de admitir que “Bushehr foi
projetada para fornecer eletricidade ao Irã. Não é considerada ameaça de
proliferação, porque a Rússia fornecerá o combustível necessário e
retirará os resíduos, dos quais nasce o risco de proliferação.”
Washington está focada, como laser, é na usina de enriquecimento de
urânio de Natanz; a segunda, que está em construção, em Qom; e no reator
de água pesada em Arak, também em construção.
A ideia de que Teerã poderia construir uma fábrica “secreta” de
bombas no subterrâneo de Bushehr é ridícula; num flash, seria descoberta
pelos muitos satélites-espiões. Assim, enquanto os estridentes
guerreiros-de-sofá neoconservadores norte-americanos desfilam sua
estupidez, e tratam como se fossem coisas iguais uma usina nuclear
monitorada internacionalmente e uma fábrica de bombas atômicas, os
russos servem-se alegremente da mesma usina para construir novas
oportunidades de negócios.
Moscou sabe que o que realmente está em jogo na chamada ‘questão
nuclear iraniana’ é que os EUA – com seu arsenal nuclear gigante – e
Grã-Bretanha e França – com seus arsenaizinhos – simplesmente não querem
que outro país do mundo em desenvolvimento (além de Índia e Paquistão)
intrometam-se no aconchegante ninho dos senhores de bombas atômicas. E a
Rússia tampouco tem interesse em meter-se em mais um confronto
estratégico, no caso de o Irã chegar à bomba atômica (Moscou, assim,
joga seu jogo de xadrez geopolítico). Fato é que o ocidente e Moscou só
querem, mesmo, que tudo continue exatamente como está.
Com o quê chegamos ao xis da questão. Enquanto EUA, Grã-Bretanha e
França não aceitarem que o Irã enriqueça seu urânio, simplesmente não há
qualquer possibilidade de contarem com o Irã como parceiro colaborativo
numa agenda de cooperação global de não-proliferação. Até lá, a
indústria russa de construção de usinas nucleares continuará a encher-se
de dinheiro.