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sábado, 25 de janeiro de 2014

‘Amistad’: O navio negreiro, porão do liberalismo


‘Amistad’: O navio negreiro, porão do liberalismo



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‘Amistad’: O navio negreiro, porão do liberalismo

Flávio Ricardo Vassoler*no GELEDES

O navio negreiro singra através do Atlântico. Em seu porão, os cativos mal conseguem se esgueirar. A fome e as correntes os paralisam. Em meados do século XIX, a Inglaterra, polícia dos mares, havia decretado a proibição do tráfico de escravos. A mãe da Revolução Industrial queria o implemento do livre comércio e do trabalho assalariado para que suas manufaturas pudessem colonizar o mundo de um modo menos bárbaro – os feitores dão lugar aos industriais e financistas. Só faltou avisar aos ingleses que seu vastíssimo império colonial, ao longo de cujo horizonte o sol não se punha, tamanha a sua extensão de oeste a leste do planeta, não poderia participar dos primórdios do liberalismo em pé de igualdade com os gentlemen de Londres. Mas se, como quer Adam Smith, a mão invisível conduz as relações de mercado a um bom termo de equilíbrio, a vista grossa permite que o livre comércio seja forjado sobre o dorso cativo da África. 

A ironia, ou pior, o cinismo que movimenta a história humana batiza o navio negreiro com o fraterno nome de ‘Amistad’ (1997), filme dirigido por Steven Spielberg. Os escravos, a quem a ideologia reacionária chama de passivos e resignados, se rebelam no porão infecto. Sangue europeu começa a jorrar. Logo os espanhóis que comandam o barco viram reféns. Os cativos libertos por seu próprio destemor querem voltar para casa. Mas eles não conhecem as técnicas náuticas e precisam confiar nos antigos algozes para que o navio retorne. Ora, os espanhóis dolosos conduzem o Amistad rumo aos Estados Unidos escravocratas. A rebelião negra logo será julgada por magistrados brancos. 

As queixas e contradições se sobrepõem. A rainha da Espanha sentencia que os escravos lhe pertencem. Os comandantes espanhóis dizem que os cativos haviam nascido em Cuba, colônia espanhola, e que, por isso, “nós não estamos exercendo a prática ilegal do tráfico negreiro. Assim, os escravos nos pertencem”. Os marinheiros norte-americanos, por sua vez, declaram que foram eles que identificaram o barco – “navio negreiro, sem dúvida” – e que, por isso, “somos os novos proprietários da mercadoria humana”. Os mais interessados na questão não podem se pronunciar. Os escravos assistem ainda uma vez acorrentados à deliberação alheia de seu próprio destino. 

O contexto histórico em que a disputa judicial se dá não poderia ser mais explosivo. O judiciário se vê premido pelas demandas do executivo, uma vez que o presidente procura manobrar a questão para evitar um recrudescimento das rivalidades entre o norte industrial e o sul escravista. O espectro da guerra civil ameaça cindir os Estados Unidos. 

− Mas esses negros devem ser punidos, eles chacinaram os brancos que os conduziam para Cuba, onde está a justiça neste país?! – berra o promotor que bem poderia iniciar um abaixo-assinado (extra)oficial para a formação da futura Klu Klux Klan. 

Além do ódio pelos sequestradores que lhes transformaram de homens livres em escravos, que mais teria insuflado o ímpeto de vingança dos cativos contra seus algozes? 

A armada inglesa, polícia dos mares, prendia os traficantes de escravos Atlântico afora. Quando os espanhóis se deram conta de que as tropas da rainha Vitória se acercavam do navio, um velho expediente foi utilizado para que o fardo humano transportado pelo Amistad não ultrapassasse os limites legais para o enquadramento da carga como um contingente de escravos. Entre os 100 africanos, 50 são escolhidos – seleção eugênica que aguilhoa sobretudo mulheres e crianças, os menos aptos para o trabalho na lavoura. (Os nazistas, parentes não tão distantes dos escravocratas, herdariam dos ancestrais o ímpeto pela seleção natural historicamente configurada.) Os 50 mais fortes devem se postar como plateia para aprender in loco a pedagogia do pelourinho. Os escolhidos são acorrentados uns aos outros. Uma rede repleta de pedras pesadíssimas puxará o comboio humano oceano abaixo. Quando o algoz espanhol abre um compartimento do convés e arremessa a rede repleta de pedra contra o mar, um a um os escravos são afogados. (Enquanto os fazendeiros sulistas dormem o sono dos justos e contam carneirinhos tão brancos quanto o algodão colhido por seus escravos, os africanos sobreviventes contam, uma a uma, as 50 ovelhas negras afogadas como bodes expiatórios.) Reiteremos, agora, a acusação (aos berros) do promotor de justiça: 

− Esses negros devem ser punidos, eles chacinaram os brancos que os conduziam para Cuba, onde está a justiça neste país?! 

Quando a senzala incinera a casa grande e transforma o Mississippi em chamas, apenas ocorre a devolução da nota promissória que sequer foi entregue àqueles condenados a trabalhar gratuita e compulsoriamente. 

Mas eis que o liberalismo dos fundadores dos Estados Unidos da América agora se expressa na figura do ilustre John Quincy Adams, sexto presidente dos Estados Unidos e filho do também presidente John Adams. Adams Jr. vem à tona como advogado de defesa dos cativos da Amistad espanhola. Em suas mãos, há um artigo de um político sulista que procura legitimar a escravidão. O ex-presidente dos EUA, como Sócrates, narra a cadeia de argumentos contrários antes de refutá-la cabalmente: 

− Diz o sulista em questão que a escravidão não é contrária à natureza humana, pois para onde quer que olhemos, seja para a história mundana, seja para os textos bíblicos, encontraremos exemplos que atestam que sempre houve subordinação entre os homens – líderes e liderados, senhores e escravos. Hierarquia. Assim, a escravidão não é pecaminosa ou má, mas a corroboração da tradição histórica, sua mais coerente expressão. 

John Quincy Adams, rematado orador, cala as palavras por um sutil lapso de tempo para que os jurados e os espectadores se preparem para – e anseiem por – sua contraposição:

− No entanto, o político sulista agora não mais em questão, mas em xeque, não consegue explicar por que os homens só fazem se rebelar quando se veem privados de sua propriedade mais natural, qual seja, a liberdade. Do contrário, não haveria choro, ranger de dentes, fúria e revolta diante dos feitores. Os homens aceitariam o quinhão do cativeiro de bom grado. Mas a experiência – o mesmo transcurso histórico advogado pelo sulista escravocrata – me autoriza a dizer que o homem vem da liberdade e para ela sempre propende. Tudo o mais é fruto da tirania e do arbítrio que pretende transformar a lógica de uns poucos no cárcere de quase todos. 

Hollywood e suas pesquisas de mercado – essenciais para transformar filmes em demandas artísticas que ratifiquem em termos de bilheteria os investimentos milionários – gostam da grandiloquência que leva o público às lágrimas. A realidade ficcional realiza a justiça para que a realidade histórica permaneça e se reproduza tal como está. Que dizer sobre o liberalismo de John Quincy Adams quando sabemos que o ex-presidente foi um dos principais idealizadores da Doutrina Monroe? Assim falou o presidente James Monroe: “Julgarmos propícia esta ocasião para afirmar, como um princípio que afeta os direitos e os interesses dos Estados Unidos, que os continentes americanos, em virtude da condição livre e independente que adquiriram e conservam, não podem mais ser considerados, no futuro, como suscetíveis de colonização por nenhuma potência européia”. O México, a América Central e a América do Sul bem sabem que a polícia do continente deixou de ser europeia para se tornar estanunidense. A América para os americanos – do norte. Mas, a despeito do entretenimento administrado de Hollywood, o liberalismo abolicionista foi o primeiro aríete para a luta pelos direitos civis nos EUA sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. O judeu Steven Spielberg bem sabe que a lógica do navio negreiro escreveu o prefácio histórico para as câmaras de gás de Auschwitz, Dachau e Treblinka. Nesse sentido, ‘Amistad’ não nos traz apenas a cínica contiguidade entre a amizade e a escravidão, mas insufla ar redivivo para pensarmos, narrativamente, sobre feridas históricas que nossos tempos ainda não conseguiram cicatrizar. 


*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo. 


Fonte: Carta Maior

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Magnoli, a Kátia Abreu de cuecas


Magnoli, a Kátia Abreu de cuecas


Por José Ribamar Bessa Freire
05/01/2014 – Diário do Amazonas
Demétrio Magnoli, doutor em Geografia, nunca pisou o chão da aldeia Tenharim em Humaitá, sul do Amazonas, invadida neste natal por madeireiros e outros bichos ferozes. Nunca cheirou carne moqueada de anta cozida no leite de castanha, nem saboreou essa iguaria refinada da culinária Kagwahiva. Jamais ouviu narrativas, poesia ou o som melodioso da flauta Yrerua tocada na Casa Ritual – a Ôga Tymãnu Torywa Ropira. Nem assistiu a festa tradicional – o Mboatava. Para falar a verdade, ele nunca viu um índio Tenharim em toda sua vida, nem nu, nem de tanga ou em traje a rigor. Nunca.
Não sabe o que perdeu. Não importa. O papa também nunca esteve no inferno, nem viu o diabo chupando manga, mas discorre sobre o tema. Desta forma, Magnoli se sentiu à vontade para escrever, na quinta feira, A Guerra do Gentio, no Globo (02/01), no qual comenta o recente conflito, numa área que desconhece e dá palpites sobre a identidade de índios, que nunca viu. Quando a gente carece de experiência e de vivência pessoal, procura as fontes ou quem estudou o assunto. O papa, por exemplo, lê a Bíblia e os teólogos. O que leu Magnoli sobre os Tenharim?
Nada de consistente. Muita gente boa escreveu sobre eles, com uma reconhecida produção etnográfica. Nimuendaju descreveu os Parintintin, com quem conviveu nos anos 1920, no rio Madeira. O gringo Waud Kracke redigiu a tese na Universidade de Chicago, nos anos 1970, depois de gravar os cantos e narrativas na língua Kagwahiva, que aprendeu a falar. Miguel Angel Menéndez viajou pelo Tapajós para a tese de doutorado na USP, no final dos anos 1980. Edmundo Peggion fez uma etnografia dos Tenharim e defendeu sua tese sobre a organização Kagwahiva, na USP, publicada em 2011.
Cacique motoqueiro
O geógrafo Magnoli, formado também pela USP, nem seu souza. Ignora-os, assim como desconhece a documentação dos arquivos. Menciona os jesuítas e o ciclo da borracha, sem apoio de qualquer fonte histórica. Não consultou na Biblioteca de Évora o manuscrito de Manoel Ferreyra, que percorreu a região em meados do séc. XVIII. Para isso, nem precisa viajar a Portugal. Basta ir ao Museu do Índio, no Rio, onde estão também microfilmes de relatórios do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) dos anos 1920-30 redigidos pelo inspetor Bento Lemos, que fornece dados históricos sobre os Tenharim e outros povos Kagwahiva, conhecidos até 1920 pelo nome genérico de Parintintin.
Ou seja, o cara não pesquisou nos arquivos, não leu os antropólogos, nunca ouviu um Tenharim, mas usa a página nobre de um jornal de circulação nacional para cagar regras – essa é a expressão – sobre os Kagwahiva. Pontifica sobre eles num texto que pretende ser infalível como uma encíclica. Insinua que a morte de Ivan Tenharim, na estrada, foi acidente de trânsito como quer a polícia, e não assassinado em uma emboscada como afirmam os índios. Aliás, segundo ele, o “cacique motoqueiro” nem índio é. Rouba-lhe a identidade depois de morto, falando urbi et orbe como o papa:
“O cacique motoqueiro dos Tenharim, as aldeias indígenas que vivem de rendas de pedágios clandestinos, os índios terena e guarani que cultivam melancias em “terras sagradas”para vendê-las no mercado não são “povos da floresta”, mas brasileiros pobres de origem indígena”.
Demétrio dixit. Qual o critério que ele usa para do alto das suas tamancas trombetear quem é índio e quem não é? O mercado. Eis aí: o mercado opera o milagre da transfiguração de índios em ‘brasileiros pobres’. Vendeu uma melancia? Então deixou de ser índio – afirma o contundente Magnoli. Sem o respaldo das ciências sociais, seu discurso deriva para o senso comum. E o senso comum, no caso, se chama Kátia Abreu, senadora, pecuarista e articulista do caderno Mercado da Folha de São Paulo, porta-voz do agronegócio.
Cartilha de Kátia
Magnoli reza pela cartilha de Katia Abreu, a quem segue como um cachorrinho a seu amo. Copia dela ipsis litteris, sem aspas, até a negação da identidade indígena. Só troca ‘silvícola’ por ‘gentio’, mas a ‘matriz epistemológica’ é a mesma: o interesse do agronegócio nas terras indígenas. Se a venda de uma melancia transforma o ‘gentio’ em ‘brasileiro pobre’, então a terra onde a plantou deixa de ser indígena e fica assim liberada para os donos da soja, da cana e do gado. Magnoli não questiona a terra concentrada em mãos de um único fazendeiro, mas o faz quando se trata de comunidades indígenas, manifestando maliciosamente fingida dúvida:
“Muita terra para pouco índio”, diz uma sabedoria popular cada vez mais difundida, mesmo se equivocada” – escreve Magnoli. Que ‘sabedoria’ é essa? Que ‘popular’ é esse? Quem difunde? Se é equivocada, porque ele e outros formadores de opinião espalham tal equívoco? Magnoli repete a mesma lenga-lenga da Katia Abreu – a terra é secundária, o que os índios, “necessitam é, sobretudo, de postos de saúde e escolas públicas”. Critica o termo oficial “desintrusão” para descrever a remoção de todos os não índios das terras indígenas, porque não aceita chamá-los de “intrusos”.
Uma vez mais reproduz o discurso de Kátia Abreu que igualmente não conhece os índios nem de vivência, nem de leitura ou pesquisa, mas também caga regras, que Magnoli copia e o leitor lê, comprando gato por lebre. Copia até o método – a “abreugrafia” – que consiste em dispensar o trabalho de campo e o contato direto com os índios, que nunca são ouvidos contrariando uma regra básica do jornalismo. Reforça preconceitos boçais e chega a ofender os índios quando reproduz acriticamente o discurso do “senso comum”:
“Edvan Fritz, almoxarife, deu um passo conceitual adiante: “Eles [os índios] vêm à cidade, enchem a cara, fazem baderna e fica por isso. Índio é protegido pelo governo que nem bicho, então tem de ficar no mato, não tem que viver em dois mundos, no nosso e no deles” – escreve Magnoli.
O outro lado
É isso que Magnoli transcreve. No entanto, o bom jornalismo manda ouvir o outro lado. Por que quando no “outro lado” estão os índios, quase nunca eles são ouvidos, mesmo quando são bilíngues e falam português? Duas excelentes jornalistas – Elaíze Farias e Kátia Brasil – publicaram no portal Amazônia Real, a entrevista do índio Ivanildo Tenharim, refugiado no quartel do Exército em Humaitá, depois da invasão à aldeia, onde ele dá a sua versão sobre os recentes ataques:
“Existem muitos madeireiros que têm raiva da gente porque eles não podem invadir a reserva para tirar madeira. Tempos atrás, com as operações da Funai e de outros órgãos, eles tiveram carros e tratores apreendidos e ficaram com mais raiva. O que eles fizeram foi aproveitar o momento para se unirem contra nós, se articulando com a população. Foram eles que bancaram o protesto de sexta-feira, quando invadiram as aldeias”.
A Polícia confirma as informações do índio: “Identificamos fazendeiros, madeireiros e funcionários tentando invadir a Terra Indígena Tenharim – declarou o tenente coronel Everton Cruz. A expedição punitiva que saiu de Apuí no dia 26 de dezembro contou com 29 caminhonetes “para fazer buscas aos três homens desaparecidos” – informou o delegado Robson Janes, que apontou também a presença de madeireiros e fazendeiros. Para a líder indígena Margarida Tenharim as acusações de que os três homens foram mortos por índios não tem provas: “É um absurdo. Não fazemos isso”.
Mas a voz dos índios não encontra eco no espaço do jornal gerenciado por Demétrio Magnoli, que aproveita para atacar Lula e o que chama de lulismo, responsáveis – segundo ele – pelos conflitos. Desrespeita, além disso, Dilma Rousseff, a quem denomina depreciativamente de “presidente de direito”, em oposição a Lula que seria o “presidente de facto”. Seu ataque é tão rasteiro e primário que, lendo-o, dá vontade de votar na Dilma, mesmo sabendo de que Kátia Abreu faz parte de sua base aliada. Desconfio que se trata de propaganda subliminar.
Demétrio Magnoli, militante de esquerda do grupo trotskista Liberdade e Luta (LIBELU) nos anos 1980, não ouve o outro lado porque trocou de lado. Agora quem dá as cartas para ele é o agronegócio. Madalena arrependida, Demétrio Magnoli podia ser a Kátia Abreu de paletó e gravata, mas é a Kátia de cueca, que ficaria limpa se lavada nas águas ainda claras do igarapé Preto da aldeia Tenharim.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

MRV é condenada a pagar R$ 6,7 milhões por infrações trabalhistas e trabalho escravo


A MRV Engenharia, uma das principais empreiteiras do país, está sendo obrigada a pagar R$ 6,72 milhões por infrações que incluem o flagrante de 63 trabalhadores em condições análogas às de escravo nas obras de um condomínio residencial em Americana, interior de São Paulo, em fevereiro de 2011. A construção, que estava sendo executada por uma empresa terceirizada, recebeu financiamento do programa federal “Minha Casa, Minha Vida”. A decisão, de primeira instância, é da juíza do Trabalho Natália Scassiotta Neves Antoniassi e, à ela, cabe recurso. A reportagem é de Stefano Wrobleski, da Repórter Brasil, com informações deste blog:
Fachada da obra da MRV pelo programa "Minha Casa, Minha Vida" em Contagem (MG) onde fiscalização constatou condições de trabalho degradantes (Foto: MTE)
Fachada da obra da MRV pelo programa “Minha Casa, Minha Vida” em Contagem (MG) onde fiscalização constatou condições de trabalho degradantes (Foto: MTE)
De acordo com a sentença, do valor total a que a MRV foi condenada, R$ 4 milhões são por danos morais resultantes do uso de mão de obra escrava. A empresa também terá que pagar R$ 100 mil por dificultar o andamento do processo e da fiscalização.
Além disso, outros R$ 2,62 milhões são decorrentes da multa pelo descumprimento de uma liminar deferida em janeiro de 2012. A decisão responsabilizou a MRV por diversas irregularidades com relação à segurança e saúde do trabalho, além de outras obrigações trabalhistas em duas obras em Americana. A empresa recebeu um prazo de 30 dias para regularizar a situação. Como não o fez, passou a pagar multa de R$ 10 mil por dia. Em novembro de 2012, uma perícia comprovou que a regularização dos problemas apontados pela liminar havia sido feita.
Em nota à imprensa, a MRV declarou que a terceirização de mão de obra é um tema “controverso” e que a empresa já obteve “ganho de causa em processos similares”. Ela informou ainda que está “negociando a assinatura de Acordo sobre Terceirização com o MPT [Ministério Público do Trabalho]” e que deve recorrer da decisão, ao mesmo tempo em que “dará continuidade às negociações com o MPT”.
Através do programa “Minha Casa, Minha Vida”, os bancos públicos Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil financiam casas para famílias com renda mensal de até R$ 5 mil. Na sentença, a juíza considerou “no mínimo irônico imaginar que trabalhadores análogos a escravos financiam a moradia de casas populares e que o Estado efetua regiamente os pagamentos referentes a esses contratos”. Além disso, a juíza também autorizou que o Ministério Público do Trabalho envie ofício ao Ministério das Cidades e às Superintendências Regionais e Nacionais da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil para que se tome ciência da decisão. “O numerário público não pode, mesmo por via indireta, sustentar a manutenção de trabalho escravo”, argumentou.
Trabalho escravo - Além desse caso, a MRV foi flagrada em outras três ocasiões se beneficiando com trabalho escravo. Em 2011, três meses depois do flagrante em Americana, cinco trabalhadores foram libertados em obra da empresa Bauru, também no interior de São Paulo.  No mesmo ano, uma fiscalização em Curitiba (PR) flagrou 11 empregados em condições análogas às de escravo. Em abril deste ano, a construtora foi denunciada mais uma vez por manter seis trabalhadores nessas condições em Contagem, zona metropolitana de Belo Horizonte (MG). No período, a empresa foi incluída por duas ocasiões na “lista suja” do trabalho escravo, mas conseguiu, através de liminar na Justiça, sua retirada.
Na decisão em que determinou o pagamento de R$ 6,7 milhões pela MRV Engenharia, a juíza do trabalho Natália Scassiotta Neves Antoniassi disse ser “frustrante saber que em pleno século XXI tramita pelo Congresso Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional visando a extinção do trabalho escravo – a PEC 438/2001”. “Há 12 anos essa PEC sequer foi votada por nossos representantes das casas legislativas, e o principal motivo são os empecilhos colocados pela bancada ruralista, categoria que, segundo relatório da OIT sobre trabalho escravo, é a que mais adota essa prática”, disse. A PEC prevê o confisco de propriedades rurais e urbanas onde tenha sido flagrado trabalho escravo contemporâneo e o seu destino à reforma agrária ou ao uso social urbano.
Histórico - A MRV foi incluída na “lista suja” do trabalho escravo pela primeira vez em 31 de julho de 2012 por conta dos flagrantes nas obras dos condomínios Parque Borghesi, em Bauru, e Residencial Beach Park, em Americana. Às 10h18 do dia 01 de agosto, as ações da MRV chegaram a cair 6,18% na Bolsa de Valores de São Paulo. Depois recuperaram-se um pouco e fecharam em queda de 3,86%. Quando ela obteve decisão liminar favorável e deixou a relação, suas ações recuperaram-se.
Em dezembro, a empresa foi novamente inserida nesse cadastro de empregadores flagrados explorando pessoas em situação análoga a de escravos, mantido pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O motivo foi o flagrante na construção do edifício Cosmopolitan, em Curitiba (PR).
A “lista suja” tem sido um dos principais instrumentos no combate a esse crime, através da pressão da opinião pública e da repressão econômica. Após a inclusão do nome do infrator, instituições federais, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o Banco da Amazônia, o Banco do Nordeste e o BNDES suspendem a contratação de financiamentos e o acesso ao crédito. Bancos privados também estão proibidos de conceder crédito rural aos relacionados na lista por determinação do Conselho Monetário Nacional. Quem é nela inserido também é submetido a restrições comerciais e outros tipo de bloqueio de negócios por parte dos cerca de 400 signatários do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo – que representam 30% do PIB brasileiro.
O avanço no setor de construção de habitação popular garantiu o crescimento e conquistas. A empresa terminou 2011 como a construtora com maior lucro das Américas, segundo a Economatica, e alcançou o posto de terceira maior construtora brasileira no ranking da ITC, ambas consultorias empresariais que fazem levantamentos sobre o setor. De olho em novos investimentos do governo federal em programas de moradia, o presidente e fundador da MRV, Rubens Menin Teixeira de Souza, defendeu a revisão de valores do programa Minha Casa Minha Vida. Rubens é um dos seis brasileiros incluídos, em 2012, na lista de bilionários organizado revista Forbes.
A ascensão da MRV, porém, tem sido marcada por percalços. Além dos flagrantes de escravidão, a empresa enfrenta questionamentos também relacionados ao que o Ministério Público do Trabalho classifica como exploração irregular sistemática de mão de obra nos canteiros. No primeiro semestre o MPT fez representação inédita acusando a empresa de “dumping social” à Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE/MJ) solicitando abertura de um procedimento administrativo para apuração do conjunto de infrações que envolvem a empresa no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Professor vagabundo que faz greve deveria ser demitido



“Vagabundo que faz greve deveria ser demitido.” Algumas poucas vezes me dou o direito de atualizar e republicar certos textos deste blog. Hoje é o caso. Pois, ouvi no trem, uma senhora reclamando destemperadamente com uma amiga dos professores da rede municipal em São Paulo, que estão em greve desde o dia 03 – da mesma forma que doutos senhores espezinhavam a greve de professores das universidades federais, tomando cafezinho nos Jardins, tempos atrás. Pedem 17% de recomposição inflacionária dos últimos três anos. A prefeitura oferece 10,19% agora e mais 13,43% em 2014. Mas os sindicatos alertam que esses valores seriam relativos a outros acordos firmados em anos anteriores para incorporação de abonos.
Contudo, mais do que discutir se o salário dos professores será suficiente para pagar uma esfiha ou um kibe no Habib’s, o que me interessa neste texto é a forma com a qual vemos suas reivindicações e as descolamos da melhoria da educação como um todo.
Quando escrevi pela primeira vez sobre isso vivíamos a greves dos mestres das universidades federais. E, é claro, essa frase nunca vem sozinha: passeata que atrapalha o trânsito? Cacete neles! Protesto em praça pública? Cacete neles! Onde já se viu? Essas pessoas têm que saber seu lugar.
Sindicatos não são perfeitos, longe disso. Assim como ocorre em outras instituições, possuem atores que resolvem voltar-se para os próprios umbigos e tornar a busca pelo poder e sua manutenção de privilégio mais importante que os objetivos para os quais foram eleitos. Ou seja, tá cheio de sindicalista pelego ou picareta, da mesma forma que empresário corrupto e sonegador. Contudo, graças à organização e pressão dos trabalhadores, importantes conquistas foram obtidas para civilizar minimamente as regras do jogo – não trabalhar até a exaustão, descansar de forma remunerada, ter salários (menos in)justos, garantir proteção contra a exploração infantil. Direitos estes que, mesmo incompletos, são chamados por alguns empregadores de “gargalos do crescimento”.
É esquizofrênico reclamar que não há no Brasil quantidade suficiente de força de trabalho devidamente preparada para fazer frente às necessidades de inovação e produtividade e, ao mesmo tempo, chutar feito caixa de giz vazia as reivindicações de professores por melhores condições e remuneração. Como acham que o processo de formação ocorre? Por osmose? Cissipartição? Geração espontânea a partir dos argumentos fedidos desse povo?
Incrível como muitos colegas, ao tratarem sobre greve de professores, chamam sempre as mesmas fontes de informação que dizem, sempre, as mesmas coisas: é hora de apertar os cintos, os grevistas só pensam neles, a economia não aguenta, bando de vagabundos, já para a senzala sem jantar, enfim. Não existe imparcialidade jornalística. Qualquer estudante de jornalismo aprende isso nas primeiras aulas. Quando você escolhe um entrevistado e não outro está fazendo uma opção, racional ou não, por isso a importância de ouvir a maior diversidade de fontes possível sobre determinado tema. Fazer uma análise ou uma crítica tomando partido não é o problema, desde que não se engane o leitor, fazendo-o acreditar que aquilo é a única intepretação possível da realidade.
Infelizmente, muitos veículos ou jornalistas que se dizem imparciais, optam sistematicamente por determinadas fontes, sabendo como será a análise de determinado fato. Parece até que procuram o especialista para que legitime um ponto de vista. Ou têm preguiça de ir além e fugir da agenda da redação, refrescando suas matérias com análises diferentes. Ou alguém acha que é aleatório escolherem sistematicamente o professor José Pastore para analisar direitos trabalhistas?
Apoio os professores. Apoio os metalúrgicos de fábricas de automóveis. Apoio os controladores de vôo. Apoio os cobradores e motoristas de ônibus. Apoio os bancários. Apoio os garis. Apoio os residentes médicos. Apoio o santo direito de se conscientizarem, reconhecerem-se nos problemas, dizer não e entrar em greve até que a sociedade pressione e os patrões escutem. Mesmo que a manifestação deles torne minha vida um absurdo.
O Brasil está conseguindo universalizar o seu ensino fundamental, mas isso não está vindo acompanhado de um aumento significativo na qualidade da educação. Mesmo que os dados para a evolução dos primeiros anos de estudo estejam além do que o governo esperava no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), grande parte dos jovens de escolas públicas têm entrado no ensino médio sabendo apenas ordenar e reconhecer letras, mas não redigir e interpretar textos. Enquanto isso, o magistério no Brasil continua sendo tratado como profissão de segunda categoria.
Uma educação de baixa qualidade, insuficiente às características de cada lugar, que passa longe das demandas profissionalizantes e com professores mal tratados pode mudar a vida de um povo?
Por fim, estou farto daquele papinho do self-made man cansativo de que os professores e os alunos podem conseguir vencer, com esforço individual, apesar de toda adversidade, “ser alguém na vida”. Aí surgem as histórias do tipo “Joãozinho comia biscoitos de esterco com insetos e vendia ossos de zebu para sobreviver. Mas não ficou esperando o Estado, nem seus professores lhe ajudarem e, por conta, própria, lutou, lutou, lutou (às vezes, contando com a ajuda de um mecenas da iniciativa privada), andando 73,5 quilômetros todos os dias para pegar o ônibus da escola e usando folhas de bananeira como caderno. Hoje é presidente de uma multinacional”. Passando uma mensagem “se não consegue ser como Joãozinho e vencer por conta própria sem depender de uma escola de qualidade e de um bom professor, você é um verme nojento que merece nosso desprezo”. Afe. Daí para tornar as instituições públicas de ensino e a figura do próprio professor cada vez mais acessórias é um passo.
Educação é a saída, mas qual educação? Aquela defendida pelo pessoal do “Amigos do Joãozinho”? Educar por educar, passar dados e técnicas, sem conscientizar o futuro trabalhador e cidadão do papel que ele pode vir a desempenhar na sociedade, é o mesmo que mostrar a uma engrenagem o seu lugar na máquina e ponto final. Uma das principais funções da escola deveria ser produzir pessoas pensantes e contestadoras que podem colocar em risco a própria estrutura política e econômica montada para que tudo funcione do jeito em que está. Educar pode significar libertar ou enquadrar. Que tipo de educação estamos oferecendo? Que tipo de educação precisamos ter? Para essa tarefa, professores bem formados e remunerados são fundamentais.
Em algumas sociedades, pessoas assim, que protestam, discutem, debatem, discordam, mudam são úteis para fazer um país crescer. Por aqui, são vistas com desconfiança e chamadas de mal-educadas e vagabundas. Ironia? Não, Brasil.
Aproveitando o gancho, há algum tempo aves funestras passam voando por redacões de veículos de comunicação demitindo sem dó.
Mudanças acontecem e a nova geração que, hoje, pega uma revista e, com dois dedinhos, tenta ampliar uma foto como uma tela sensível ou que não entende porque a TV da sala não responde aos seus toques terá um relação diferente com o papel que temos hoje. Jornais vão morrer no meio dessa transição. Outros migrarão para a internet. Veículos novos vão surgir, pensados para plataformas digitais, multimídias, interativas. Quem não se adaptar e não se planejar para essa virada, vai comer capim pela raiz mais cedo. Contudo, temos uma forte produção jornalística em formato de empresa tradicional e, durante muito tempo, ainda teremos. Talvez essa parte nunca mude, garantindo as coisas boas e ruins dessas estruturas. O fato é que isso está sustentado em uma relação capital/trabalho, ou melhor dizendo, patrão/empregado. Sim, colegas jornalistas, apesar de muitos de nós pensarem que não, nós somos operários da notícia. É difícil ouvir isso, mas é a realidade.
De tempos em tempos, somos surpreendidos com notícias de demissões coletivas em veículos de comunicação. Motivos são vários: garantir a sobrevivência do veículo, aumentar a margem de lucro, gerar capacidade de investimento em outros produtos da empresa. Há ainda os casos em que um jornal fecha as portas e boa parte das pessoas simplesmente vai para a rua por má gestão e erros na condução da publicação. Razões podem existir para o encerramento das atividades de um veículo ou a diminuição de sua força de trabalho. Mas o que não entra pela minha cabeça é que isso seja encarado tão bovinamente por todos nós.
E que algumas empresas que defendem a democracia e o diálogo como processo de construção de uma sociedade melhor, ignorem isso quando se trata delas próprias. É um negócio e pertence a alguém? Claro! Mas cresceu graças ao suor de trabalhadores, que deveriam ser consultados e chamados a compartilhar decisões. Quando demissões coletivas ou fechamentos de fábricas acontecem em linhas de montagem de veículos, metalúrgicos mobilizam o Pai, o Filho e o Espírito Santo, informam a população, além de cruzarem os braços até que uma solução seja encontrada para reverter o corte de vagas ou, pelo menos, criar compensações à altura. Professores vão para as ruas. Nós, não. Vemos colegas irem embora e não fazemos nada. Ou melhor, ficamos com medo de sermos os próximos e choramos sozinhos no banheiro.
Isso não é texto novo. Como já disse, nós, jornalistas, muitas vezes não nos reconhecemos como classe trabalhadora. Devido às peculiaridades da profissão, desenvolvemos laços com o poder e convivemos em seus espaços sociais e culturais, seduzidos por ele ou enganados por nós mesmos. Só percebemos que essa situação não é real e que também somos operários, transformando fato em notícia, quando nossos serviços não são mais necessários em determinado lugar.
Alguns colegas vão repetir: japa, mas essas mudanças são boas. Agora, os jornalistas vão poder trabalhar por conta própria e criar seus próprios veículos na internet. Como se um grupo de pessoas que, durante toda a vida, trabalhou em uma estrutura empresarial possa, de uma hora para outra, tornar-se um empreendedor de sucesso. Tendo família para sustentar, contas a pagar e sem a disposição de tentar do zero e dar com a cara no muro. Financiamento coletivo, patrocínio cruzado, enfim, há quem lide com isso de forma mais fácil. Mas lembrem-se que a maioria não foi programada para isso. Por isso, temos o chamado “Milagre da Multiplicacão dos Frilas”, que eram assalariados e tornaram-se “chefes de si mesmos”. Alguns são felizes por não terem férias remuneradas. Outros, não.
Talvez o futuro seja um misto de tudo isso, emprego CLT, frilas, empreendedores individuais ou coletivos, pessoas produzindo conteúdo em redes, ONGs, enfim. Mas, hoje, o que me preocupa são os viventes e suas contas a pagar.
O que estou pedindo? Jornalistas do mundo, uni-vos? Que tamancos sejam jogados nas prensas dos jornais? Nem… isso seria muito brega. Ou melhor, kitsch – tenho horror a kitch. O que gostaria de lembrar é que as coisas vão mudar cada vez mais rápido. E temos duas opções: encarar isso sozinhos ou juntos.
Um bom exercício seria tentar entender e relatar as greves de professores como algo que faz parte das necessárias disputas sociais e econômicas e não tema para página policial. O próximo pode ser você, caro jornalista com salário de coxinha e emprego de palha.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

TV Globo e os terroristas do campo

Por Altamiro Borges
Em outubro de 2009, integrantes do MST ocuparam uma fazenda grilada pela empresa Cutrale no município de Iaras (SP). Revoltados com a lentidão da reforma agrária, ativistas destruíram pés de laranja com tratores. Apesar da direção do movimento ter criticado a iniciativa, a cena foi superexplorada pela mídia ruralista. A TV Globo, já em campanha para a sucessão de 2010, reproduziu o vídeo inúmeras vezes. Ontem, porém, ela silenciou sobre uma ação terrorista dos ruralistas em terras indígenas no Mato Grosso.
Segundo relato dos jornalistas Daniel Carvalho e Juca Varella, na Folha deste domingo, os fazendeiros que invadiram ilegalmente terras dos índios xavantes Marãiwatsédé, na cidade Alto da Boa Vista (MT), utilizaram métodos terroristas para sabotar ontem uma ação de despejo liderada por agentes do Incra e da Polícia Federal. “Eles usam táticas de guerrilha contra forças federais para tentar impedir despejo, queimam ponte, bloqueiam estrada e armam um ataque frustrado”. A emboscada poderia até ter causado mortes.
Emboscada e coquetéis molotov
Os grileiros chegaram a fabricar coquetéis molotov. “Quem está com bomba fica desse lado. Quem não está fica desse outro”, dizia um deles, de cima de uma caminhonete. “Era uma emboscada para os agentes de segurança. A ideia era atacá-los e depois tocar fogo ao caminhão com a mudança, em protesto. Um produtor da região, de cerca de 60 anos, puxou conversa com os jornalistas. Em tom jocoso, questionou se o repórter não estaria disposto a ‘pegar umas pedras’ e se juntar aos manifestantes”, descrevem os repórteres.
Ainda segundo os jornalistas, “a tensão ia aumentando. Uns, mais preocupados, diziam: ‘Dessa vez não vai ser bala de borracha’. Um homem retrucou: ‘Mas aqui também tem [bala de verdade]’. De repente, as luzes se apagaram. A escuridão era quebrada apenas pelos faróis do comboio de 20 carros de polícia que se aproximava. Um grupo de quatro manifestantes se aproximou do primeiro carro, de onde saíram quatro soldados armados. ‘Nem mais um passo, senão a gente atira’, gritou um soldado da Força Nacional”.
A seletividade da mídia ruralista
“O barril de pólvora que se armou na região não havia explodido até a conclusão desta reportagem, mas a disposição de quem está em Posto da Mata deixava claro que pode ser apenas uma questão de tempo. ‘Vai morrer homem, mulher. Estou disposto a morrer pelo que tenho’, dizia Odemir Perez”. A invasão da reserva dos Marãiwatsédé foi planejada por ricaços ruralistas, que alistaram pequenos produtores e contam com o apoio de políticos da direita. Dom Pedro Casaldáliga há muito denuncia o clima de tensão na região.
O conflito, porém, nunca foi destaque na mídia ruralista. Quando da ocupação da fazenda grilada da Cutrale em 2009, jornais, revistas e emissoras de tevê fizeram um baita escândalo. Eles ajudaram a criar o clima para a instalação da CPI do MST, visando criminalizar o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra. Agora, a mídia nada fala sobre a ação terrorista dos ruralistas no Mato Grosso. Nem sequer um vídeo no Jornal Nacional da TV Globo. E ainda tem gente que acredita na neutralidade da imprensa burguesa!

terça-feira, 27 de novembro de 2012

MPF/MS denuncia 19 pessoas por homicídio de cacique guarani-kaiowá

 


A ação aconteceu no dia 18 de novembro de 2011 e resultou na morte do cacique Nízio Gomes e em lesões corporais ao indígena Jhonaton Velasques Gomes | Foto: Comunidade Guaiviry
 
Da Redação do SUL21
 
O Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul denunciou 19 pessoas a responderem como réus na Justiça por vários crimes relacionados à expulsão dos indígenas do acampamento Guaiviry, instalado em área mata nativa de propriedade rural, localizada no sul do estado mato-grossense.
A ação aconteceu no dia 18 de novembro de 2011 e resultou na morte do cacique Nízio Gomes e em lesões corporais ao indígena Jhonaton Velasques Gomes. Foram utilizadas ao menos seis armas de fogo calibre 12 na ação, ainda que com munição menos letal. Sete réus continuam presos.
O crime repercutiu internacionalmente e colocou em foco o “ambiente onde imperam o preconceito, a discriminação, a violência e o constante desrespeito a direitos fundamentais” dos 44 mil guarani-kaiowá e guarani-ñandeva que vivem em Mato Grosso do Sul, como descreve a denúncia do MPF.
Crimes
Dos 19 acusados, 3 respondem por homicídio qualificado, lesão corporal, ocultação de cadáver, porte ilegal de arma de fogo e corrupção de testemunha; 4, por homicídio qualificado, lesão corporal, ocultação de cadáver, porte ilegal de arma de fogo; e 12, por homicídio qualificado, lesão corporal, quadrilha ou bando armado e porte ilegal de arma de fogo.
As investigações revelaram que, após a ocupação da área de mata da fazenda pela comunidade indígena, em 1º de novembro de 2011, um grupo iniciou planejamento com o objetivo de promover a retirada violenta dos indígenas. Na madrugada de 18 de novembro, iniciou-se a ação. O objetivo era a expulsão violenta da comunidade indígena. Ao chegar na trilha que dá acesso ao interior do acampamento, o grupo abordou o cacique Nízio Gomes (55 anos), que ofereceu resistência. Iniciou-se intenso confronto, em que Nízio Gomes foi alvejado, resultando em sua morte. O corpo de Nízio Gomes até hoje não foi localizado, mesmo com a realização de buscas até em território paraguaio.
Homicídio apurado mesmo sem o corpo
Sobre a não localização do corpo ou dos restos mortais, para o MPF há provas e indícios suficientes do homicídio qualificado do cacique Nízio Gomes. Além das declarações dos réus e do depoimento de testemunhas, laudo pericial apontou a existência de vestígios de sangue em fragmentos de madeira e na terra do interior da trilha do Tekoha Guaiviry. Exame de DNA confirmou ser “perfil genético de indivíduo do sexo masculino, geneticamente relacionado à mãe e aos filhos de Nízio Gomes”.
Com informações do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Zumbi Vive!


Mario Maestri no CORREIO DA CIDADANIA   


Em 20 de novembro de 1695, Nzumbi dos Palmares caía lutando em mata perdida do sul da capitania de Pernambuco. Seu esconderijo fora revelado por lugar-tenente preso e barbaramente torturado. Mutilaram seu corpo. Enfiaram seu sexo na boca. Expuseram a cabeça do palmarino na ponta de uma lança em Recife. Os trabalhadores escravizados e todos os oprimidos deviam saber a sorte dos que se levantavam contra os senhores das riquezas e do poder.
***
Em 1654, com a expulsão dos holandeses do Nordeste, os lusitanos lançaram expedições para repovoar os engenhos com os cativos fugidos ou nascidos nos quilombos da capitania. Para defenderem-se, as aldeias quilombolas confederaram-se sob a chefia política do Ngola e militar do Nzumbi. A dificuldade dos portugueses de pronunciar o encontro consonantal abastardou os étimos angolanos nzumbi em zumbi, nganga nzumba, em ganga zumba. A confederação teria uns seis mil habitantes, população significativa para a época.
 
Em novembro de 1578, em Recife, Nganga Nzumba rompeu a unidade quilombola e aceitou a anistia oferecida apenas aos nascidos nos quilombos, em troca do abandono dos Palmares e da vil entrega dos cativos ali refugiados ou que se refugiassem nas suas novas aldeias.
 
Acreditando nos escravizadores, Ganga Zumba deu as costas aos irmãos de opressão e aceitou as miseráveis facilidades para alguns poucos. Abandonou as alturas dos Palmares pelos baixios de Cucuá, a 32 quilômetros de Serinhaém. Foi seduzido por lugar ao sol no mundo dos opressores, pelas migalhas das mesas dos algozes.
 
Então, Nzumbi assumiu o comando político-militar da confederação.
 
Para ele, não havia cotas para a liberdade ou privilegiados no seio da opressão! Exigia e lutava altaneiro pelo direito para todos!
 
Não temos certeza sobre o nome próprio do último nzumbi que chefiou a confederação após a defecção de Nganga Nzumba. Documentos e a tradição oral registram-no como Nzumbi Sweca.
***
Nos derradeiros ataques aos Palmares, as armas de fogo e a capacidade dos escravistas de deslocar e abastecer rapidamente os soldados registravam o maior nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais do escravismo, apoiadas na superexploração dos trabalhadores feitorizados. As tropas luso-brasileiras eram a ponta de lança nas matas palmarinas da divisão mundial do trabalho de então.
 
Não havia possibilidade de coexistência pacífica entre escravidão e liberdade. Palmares era república de produtores livres, nascida no seio de despótica sociedade escravista, que surge hoje nas obras da historiografia apologética como um quase paraíso perdido, onde a paz, a transigência e a negociação habitavam as senzalas. Palmares era exemplo e atração permanentes aos oprimidos que corroíam o câncer da escravidão.
 
Como já lembraram, nos anos 1950, o historiador marxista-revolucionário francês Benjamin Pérret e o piauiense comunista Clóvis Moura, a confederação dos Palmares venceria apenas se espraiasse a rebelião aos escravizados dos engenhos, roças e aglomeração do Nordeste, o que era então materialmente impossível.
 
Palmares não foi, porém, luta utópica e inconsequente. Por longas décadas, pela força das armas e a velocidade dos pés, assegurou para milhares de homens e mulheres a materialização do sonho de viver em liberdade de seu próprio trabalho. Indígenas, homens livres pobres, refugiados políticos eram aceitos nos Palmares. Eram braços para o trabalho e para a resistência.
 
A proposta da retomada da escravidão colonial em Palmares, com Zumbi com um “séquito de escravos para uso próprio”, é lixo historiográfico sem qualquer base documental, impugnado pela própria necessidade de consenso dos palmarinos contra os escravizadores. Trata-se de esforço ideológico de sicofantas historiográficos para naturalizar a opressão do homem pelo homem, propondo-a como própria a todas e quaisquer situações históricas.
 
Palmares garantiu que milhares de homens e mulheres nascessem, vivessem e morressem livres. Ao contrário, em poucos anos, os seguidores de Ganga Zumba foram reprimidos, reescravizados ou retornaram fugidos aos Palmares, encerrando-se rápida e tristemente a traição que dividiu e fragilizou a resistência quilombola.
 
A paliçada do quilombo do Macaco foi a derradeira tentativa de resistência estática palmarina, quando a resistência esmorecia. Ela foi devassada em fevereiro de 1694, por poderoso exército, formado por brancos, mamelucos, nativos e negros, entre eles, o célebre Terço dos Enriques, formado por soldados e oficiais africanos e afro-descendentes. Não havia e não há consenso racial e étnico entre oprimidos e opressores.
 
O último reduto palmarino, defendido por fossos, trincheiras e paliçada, encontrava-se nos cimos de uma altaneira serra.
***
A serra da Barriga e regiões próximas, na Zona da Mata alagoana, com densa vegetação, são paragens de beleza única. Quem se aproxima da serra, chegado do litoral, maravilha-se com o espetáculo natural.
 
O maciço montanhoso rompe abruptamente, diante dos olhos, no horizonte, como fortaleza natural expugnável, dominando as terras baixas, cobertas pelo mar verde dos canaviais flutuando ao lufar do vento.
 
Se apurarmos o ouvido, escutaremos os atabaques chamando às armas, anunciando a chegada dos negreiros malditos. Sentiremos a reverberação dos tam-tans lançados do fundo da história, lembrando às multidões que labutam, hoje, longuíssimas horas ao dia, não raro até a morte por exaustão, por alguns punhados de reais, nos verdes canaviais dessas terras que já foram livres, que a luta continua, apesar da já longínqua morte do general negro de homens livres.
 
Mario Maestri é professor do programa de pós-graduação em História da UPF.
E-mail: maestri(0)via-rs.net
 

domingo, 18 de novembro de 2012

Suíça é segundo destino do tráfico de pessoas no Brasil

 

     
Maurício Thuswohl no CORREIO DO BRASIL
             

Um estudo inédito sobre o tráfico internacional de pessoas divulgado em outubro pelo Ministério da Justiça revela que a Suíça é o segundo destino preferencial para onde são levadas as vítimas desse tipo de crime no Brasil.
No período analisado, entre 2005 e 2011, foram registrados 127 casos de cidadãos brasileiros levados à Suíça, em sua maioria mulheres, para fins de exploração sexual ou trabalho análogo à escravidão.
Ao todo, dentro do período analisado, foram registrados 475 casos de tráfico internacional de pessoas oriundas do Brasil. Entre as vítimas, 337 sofreram algum tipo de exploração sexual, 135 foram submetidas a algum tipo de trabalho forçado e 3 foram casos indefinidos. À frente da Suíça como destino preferencial aparece o Suriname, país que serve como rota de passagem para a Holanda, com 133 casos. Em terceiro lugar está a Espanha, com 104 casos, seguida pela própria Holanda, com 71 casos registrados pelas autoridades brasileiras.
A publicação do estudo foi possível graças a uma parceria entre a Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) brasileira e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). Para sua elaboração, foram coletados dados e estatísticas criminais em outros órgãos da administração pública no país, como a Polícia Federal, a Secretaria Nacional de Segurança Pública e a Assistência Consular do Ministério das Relações Exteriores. A maior parte das vítimas, segundo o que foi levantado, é recrutada nos estados de Pernambuco, Bahia e Mato Grosso do Sul.
O perfil das vítimas, de acordo com a SNJ, obedece a um padrão, já que a maioria é constituída por mulheres entre 10 e 29 anos, solteiras e com baixos níveis de renda e escolaridade. Já o padrão dos criminosos é duplo. Na fase de aliciamento e tráfico, o crime é praticado em geral por mulheres. Já aos homens cabe atuar em uma “segunda fase” do crime, com o controle da prática a qual a vítima é submetida (geralmente prostituição), sempre obtido através de coerção e violência.
Apesar da divulgação do inédito diagnóstico, o governo brasileiro ressalta que os números certamente estão aquém da realidade dos fatos: “Esses números mostram somente aquilo que desaguou nos órgãos de segurança ou de atendimento às vítimas. Ainda temos um cenário de muitos dados ocultos”, afirma Fernanda dos Anjos, diretora do Departamento de Justiça da SNJ. O secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, concorda: “Uma das características do tráfico de pessoas é a invisibilidade das vítimas e a negação delas em se reconhecerem como tais”.
Ajuda suíça
Ciente do problema relativo ao tráfico de pessoas oriundas do Brasil, o governo da Suíça, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, apoiou material e financeiramente os trabalhos do UNODC no país entre 2008 e 2011. Nesses três anos, ao lado dos governos da Suécia e da Noruega, a Suíça aportou 50 mil euros anuais para aumentar a capacidade brasileira de combater esse tipo de crime. A ajuda suíça se inseriu no Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, lançado no Brasil pelo Ministério da Justiça em 2008 e que terá uma segunda edição em 2013.
“O controle e a prevenção ao tráfico de pessoas são compromissos do governo da Suíça, que acredita na construção de redes ativas entre setores públicos e privados da sociedade civil e em organizações internacionais como o UNODC para desenvolver mecanismos de cooperação e enfrentar o problema com eficiência”, afirmou o governo suíço em nota divulgada sobre a parceria firmada no Brasil.
De acordo com o Ministério das Relações Exteriores da Suíça, a maioria das vítimas do tráfico internacional de pessoas que chegam ao país é composta por mulheres forçadas a cumprir serviços domésticos ou se submeter à prostituição e outras formas de exploração sexual. Segundo o UNODC, a Tailândia e os países do Leste Europeu formam ao lado do Brasil o principal polo do tráfico internacional de pessoas tendo a Suíça como destino.
“Bom trabalho”
Para o coordenador da Unidade de Governança e Justiça do UNODC, Rodrigo Vitória, a ajuda vinda da Suíça e de outros países europeus tem sido fundamental para que o Brasil dê um salto de qualidade no combate ao tráfico de pessoas. Com essa ajuda, o UNODC realizou nos últimos três anos eventos em diversas cidades do país _ um deles, em São Paulo, contou com a participação da Rainha Silvia, da Suécia _ e participou ativamente do encontro para avaliação do primeiro Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, realizado em Belo Horizonte.
“O Brasil tem desenvolvido um bom trabalho em termos do enfrentamento ao tráfico de pessoas. O país está revisando sua legislação, e núcleos e postos foram criados aqui, o que é uma experiência muito interessante. A forma como o Brasil criou o seu segundo Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas se deu a partir de um processo amplamente participativo. O país está no caminho certo, atuando muito na área de prevenção e tentando também, na medida do possível, reforçar as forças policiais para melhorar a parte de investigação”, avalia o coordenador do UNODC.
Maurício Thuswohl, swissinfo.ch
Rio de Janeiro

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Zumbi Vive!

Escrito por Mario Maestri no CORREIO DA CIDADANIA  

Em 20 de novembro de 1695, Nzumbi dos Palmares caía lutando em mata perdida do sul da capitania de Pernambuco. Seu esconderijo fora revelado por lugar-tenente preso e barbaramente torturado. Mutilaram seu corpo. Enfiaram seu sexo na boca. Expuseram a cabeça do palmarino na ponta de uma lança em Recife. Os trabalhadores escravizados e todos os oprimidos deviam saber a sorte dos que se levantavam contra os senhores das riquezas e do poder.
***
Em 1654, com a expulsão dos holandeses do Nordeste, os lusitanos lançaram expedições para repovoar os engenhos com os cativos fugidos ou nascidos nos quilombos da capitania. Para defenderem-se, as aldeias quilombolas confederaram-se sob a chefia política do Ngola e militar do Nzumbi. A dificuldade dos portugueses de pronunciar o encontro consonantal abastardou os étimos angolanos nzumbi em zumbi, nganga nzumba, em ganga zumba. A confederação teria uns seis mil habitantes, população significativa para a época.

Em novembro de 1578, em Recife, Nganga Nzumba rompeu a unidade quilombola e aceitou a anistia oferecida apenas aos nascidos nos quilombos, em troca do abandono dos Palmares e da vil entrega dos cativos ali refugiados ou que se refugiassem nas suas novas aldeias.

Acreditando nos escravizadores, Ganga Zumba deu as costas aos irmãos de opressão e aceitou as miseráveis facilidades para alguns poucos. Abandonou as alturas dos Palmares pelos baixios de Cucuá, a 32 quilômetros de Serinhaém. Foi seduzido por lugar ao sol no mundo dos opressores, pelas migalhas das mesas dos algozes.

Então, Nzumbi assumiu o comando político-militar da confederação.

Para ele, não havia cotas para a liberdade ou privilegiados no seio da opressão! Exigia e lutava altaneiro pelo direito para todos!

Não temos certeza sobre o nome próprio do último nzumbi que chefiou a confederação após a defecção de Nganga Nzumba. Documentos e a tradição oral registram-no como Nzumbi Sweca.
***
Nos derradeiros ataques aos Palmares, as armas de fogo e a capacidade dos escravistas de deslocar e abastecer rapidamente os soldados registravam o maior nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais do escravismo, apoiadas na superexploração dos trabalhadores feitorizados. As tropas luso-brasileiras eram a ponta de lança nas matas palmarinas da divisão mundial do trabalho de então.

Não havia possibilidade de coexistência pacífica entre escravidão e liberdade. Palmares era república de produtores livres, nascida no seio de despótica sociedade escravista, que surge hoje nas obras da historiografia apologética como um quase paraíso perdido, onde a paz, a transigência e a negociação habitavam as senzalas. Palmares era exemplo e atração permanentes aos oprimidos que corroíam o câncer da escravidão.

Como já lembraram, nos anos 1950, o historiador marxista-revolucionário francês Benjamin Pérret e o piauiense comunista Clóvis Moura, a confederação dos Palmares venceria apenas se espraiasse a rebelião aos escravizados dos engenhos, roças e aglomeração do Nordeste, o que era então materialmente impossível.

Palmares não foi, porém, luta utópica e inconsequente. Por longas décadas, pela força das armas e a velocidade dos pés, assegurou para milhares de homens e mulheres a materialização do sonho de viver em liberdade de seu próprio trabalho. Indígenas, homens livres pobres, refugiados políticos eram aceitos nos Palmares. Eram braços para o trabalho e para a resistência.

A proposta da retomada da escravidão colonial em Palmares, com Zumbi com um “séquito de escravos para uso próprio”, é lixo historiográfico sem qualquer base documental, impugnado pela própria necessidade de consenso dos palmarinos contra os escravizadores. Trata-se de esforço ideológico de sicofantas historiográficos para naturalizar a opressão do homem pelo homem, propondo-a como própria a todas e quaisquer situações históricas.

Palmares garantiu que milhares de homens e mulheres nascessem, vivessem e morressem livres. Ao contrário, em poucos anos, os seguidores de Ganga Zumba foram reprimidos, reescravizados ou retornaram fugidos aos Palmares, encerrando-se rápida e tristemente a traição que dividiu e fragilizou a resistência quilombola.

A paliçada do quilombo do Macaco foi a derradeira tentativa de resistência estática palmarina, quando a resistência esmorecia. Ela foi devassada em fevereiro de 1694, por poderoso exército, formado por brancos, mamelucos, nativos e negros, entre eles, o célebre Terço dos Enriques, formado por soldados e oficiais africanos e afro-descendentes. Não havia e não há consenso racial e étnico entre oprimidos e opressores.

O último reduto palmarino, defendido por fossos, trincheiras e paliçada, encontrava-se nos cimos de uma altaneira serra.
***
A serra da Barriga e regiões próximas, na Zona da Mata alagoana, com densa vegetação, são paragens de beleza única. Quem se aproxima da serra, chegado do litoral, maravilha-se com o espetáculo natural.

O maciço montanhoso rompe abruptamente, diante dos olhos, no horizonte, como fortaleza natural expugnável, dominando as terras baixas, cobertas pelo mar verde dos canaviais flutuando ao lufar do vento.

Se apurarmos o ouvido, escutaremos os atabaques chamando às armas, anunciando a chegada dos negreiros malditos. Sentiremos a reverberação dos tam-tans lançados do fundo da história, lembrando às multidões que labutam, hoje, longuíssimas horas ao dia, não raro até a morte por exaustão, por alguns punhados de reais, nos verdes canaviais dessas terras que já foram livres, que a luta continua, apesar da já longínqua morte do general negro de homens livres.

Mario Maestri é professor do programa de pós-graduação em História da UPF.
E-mail: maestri(0)via-rs.net

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Em Palmasola se falar o bicho pega, se calar o bicho come

 



A Pública entrou em uma inacreditável cidade-prisão na Bolívia onde brasileiros convivem com tortura, extorsão – e o abandono do Itamaraty

  

Um muro alto e quatro horas de fila me separam do interior de um dos maiores presídios da Bolívia, onde vivem mais de 4.400 pessoas. A temperatura passa dos 35oC e o chão de areia aumenta o desconforto das muitas mulheres que esperam ali e tentam dar conta de seus sapatos de saltos altos, crianças pequenas e sacolas. Não é dia de visitas no Centro de Rehabilitación Santa Cruz Palmasola na cidade de Santa Cruz de La Sierra, na Bolivia. Ainda assim, elas esperam pacientemente pelo encontro com seus companheiros. Sabem que o passe será liberado com o pagamento de dez pesos bolivianos (cerca de 3 reais) aos policiais.
As horas vão passando e o abatimento vai surgindo, algumas histórias tristes começam a ser contadas e a cumplicidade aumenta. Logo todas estarão dividindo chicletes, garrafas de água e maquiagem para o retoque, já que a pintura caprichosa vai se desmanchando sob o sol quente. Uma moça pergunta a quem vou visitar. “Uns amigos brasileiros” respondo de forma vaga, ao que ela conclui rapidamente: “Mil ocho certamente, como a maioria aqui” referindo-se à lei 1008, que endureceu as regras para  tráfico de drogas, instituída em 1988, sob forte pressão do governo americano. A “milocho” determinou sentenças mais duras e longas para quem comete delitos relacionados ao narcotráfico – do cultivo, consumo e transporte da folha de coca, tradicional cultivo do país, à sua transformação em cocaína. As penas chegam a 20 anos de prisão, sem grandes distinções entre traficantes e usuários.
A moça diz que o companheiro “caiu” pelo mesmo motivo, mas após 4 meses em prisão preventiva, ainda não havia tido sequer uma audiência. História parecida chamou recentemente a atenção da imprensa internacional: Jacob Ostreicher, empresário americano de 53 anos,  preso há 17 meses por suspeita de lavagem de dinheiro e envolvimento com o crime organizado – e ainda sem sentença.
O companheiro da visitante, assim como dezenas de brasileiros, não tiveram a mesma sorte: suas histórias continuam desconhecidas. Segundo o advogado criminalista Hernán Mariobo, 80% dos detidos em Palmasola estão em prisão preventiva, aguardando julgamento. Muitos há mais de três anos, que é o máximo permitido por lei. “Estamos falando de mais de mil pessoas que estão com seus processos parados e, por consequência, tendo seus direitos humanos violados. Outros tantos que já poderiam ter saído ou poderiam responder em liberdade. Mas a Defensoria Pública em Santa Cruz tem no máximo 20 pessoas para dar conta de todos estes processos, e é claro que a coisa se complica ainda mais para os estrangeiros,  que são colocados no fim da lista”. Para um advogado que pediu para não ser identificado, temendo que seus clientes sejam prejudicados, o problema é que todo o sistema está imerso em corrupção: “Lamentavelmente em nosso sistema de justiça, especialmente em Santa Cruz – e dói reconhecer isso como advogado boliviano – a corrupção tem se proliferado muito. Para se tirar um xerox de documento para marcar uma audiência tem de se falar com o secretário, com o juiz, eles argumentam que a agenda está cheia, te pedem dinheiro”, diz. “Para fazer as notificações é ainda pior. É um eterno sofrimento. Tenho um cliente espanhol de 70 anos que teve a audiência cancelada 5 vezes porque chegou 5 minutos atrasado ou porque o juiz teve um problema na escola do filho, ou ainda porque era o dia do juiz e todas as audiências do dia foram canceladas sem aviso prévio”.
Enquanto esperamos na fila, alguns homens chegam algemados de táxi e de moto: não há um veículo oficial para entrar e sair dali. O preso deve pagar o táxi até Palmasola e, quando tem audiência marcada, precisa pagar escolta policial e o transporte de ida e volta. Subitamente, um policial aparece à porta da prisão e diz que “ninguém deve pagar um peso sequer” para entrar. As mulheres comemoram e apontam para um jornalista que espera a saída de um preso famoso com uma câmera em punho como motivo para a “gentileza”.
A administração de Palmasola não se parece em nada com o modelo penitenciário que conhecemos no Brasil. Passada a pequena porta se vê um grande descampado lotado de lixo e urubus, cortado por uma rua que separa os pavilhões: um de segurança máxima, conhecido como Chonchocorito – referência a um presídio de segurança máxima da capital La Paz –  outro reservado às mulheres, um terceiro para presos “comuns”; um para portadores de doenças contagiosas e o finalmente uma “área vip” para policiais e autoridades.
Todos são trancados. Mas a polícia fica do lado de fora. Lá dentro, quem garante a segurança são os próprios presos, que uma vez por ano elegem a “Regência”, espécie de administração penitenciária própria que, por sua vez, escolhe seu exército, conhecido como “Disciplina”, homens com penas perpétuas ou longas que andam uniformizados, armados com porretes, e garantem o cumprimento de leis estipuladas por eles. Leis que não estão em nenhum papel, segundo detentos, advogados e pesquisadores, mas que se não forem cumpridas, podem ser pagas até com a vida – como no caso de estupro ou abuso de crianças – ou com castigos exemplares.
Mas é dificil se aprofundar no assunto, já que maior lei é a do silêncio: o que acontece dentro de Palmasola, fica em Palmasola. Quem fala demais também é castigado. Ao que parece, a polícia não interfere da porta para dentro a não ser em casos extremos que podem repercutir de forma negativa. Foi assim no começo de 2012, quando uma equipe de reportagem da TV americana ABC filmou a realidade vivida por Jacob. A reportagem exibiu o rosto de crianças e homens usando cocaína. Quando foi ao ar, causou alvoroço nos EUA. Alguns dos detentos afirmam ter sido torturados e levados ao pavilhão de segurança máxima como castigo.

Uma cidade entre muros

Ainda na zona que separa os pavilhões, encontro Darly Franco, advogada paulista que vive em Santa Cruz e há 6 anos milita pela causa dos brasileiros presos ali. Na sua tese de mestrado, ela sugere a modificação do código penal para estrangeiros que cometeram delito de narcotráfico. “Na verdade, para qualquer delito penal o procedimento é o mesmo. Os artigos principais são o 233, 234 e 235 que dizem que  a pessoa não vai em detenção preventiva se tiver trabalho, família, domicilio. Mas como a gente faz isso com estrangeiro? Existe um decreto que diz que nenhum turista pode exercer atividade econômica, então como vamos demonstrar que ele tem trabalho? Se eu estou de passagem e me pegam no aeroporto, como vou ter domicilio? Assim, é pouco provável que essa pessoa consiga responder em liberdade. Foi pego, vai preso. E se você não tem dinheiro, vai ficar lá, por causa de todo o esquema de corrupção, golpes de advogados fajutos e a lentidão da justiça”.
Muito respeitada pelos detentos, principalmente os brasileiros aos quais defende como pode, mesmo que paguem pouco ou nada, Darly conduz a reportagem pelos pavilhões. Assim que chega, os presos imediatamente se oferecem para carregar suas pastas de documentos, andam ao seu redor, fazem mil perguntas. “Praticamente vivi em Palmasola quando escrevi minha tese e desde então venho ao menos uma vez por semana para tentar fazer estes processos andarem”, explica.
Para entrar no “PC4”, maior pavilhão masculino, precisamos pagar cinco pesos a um policial que nos carimba o pulso. Assim entramos no maior pavilhão, onde estão, naquele dia, 70 homens brasileiros, a terceira maior população de estrangeiros, segundo Darly, atrás dos peruanos e colombianos. De cara é possível notar que não há celas e os homens caminham livremente ali dentro. Os brasileiros nos recebem na porta.
Para conversarmos mais à vontade, o paranaense Mário* – todos os nomes nesta reportagem são fictícios, para evitar que sofram represália – um senhor de fala mansa, extremamente educado, nos conduz à igreja onde mora. Isso mesmo: dentro da prisão. Ele conta que já vivia há mais de 20 anos na Bolivia quando brigou com um funcionário da fazenda onde trabalhava; matou-o com um tiro de espingarda. Há dez anos em Palmasola, é o brasileiro mais antigo no PC4. Para sobreviver e pagar os cerca de 30 pesos bolivianos diários que diz gastar com comida e ítens de higiene, faz redes e artesanato que vende dentro e fora de Palmasola, através de familiares de outros presos.
No caminho, passamos por tendas de artesanato, lanchonetes, um campo de futebol, uma universidade de direito e até uma pousada onde familiares e amigos dos presos podem se hospedar por alguns dias. Todas as construções são erguidas e administradas por eles e os produtos são vendidos ali dentro para os companheiros de pavilhão e também para o grande volume de pessoas que transita ali diariamente. Muitos criam um verdadeiro patrimônio, com quartos arrendados e pequenos negócios. Aos que têm condições financeiras é permitido inclusive morar com a família.
Segundo dados da Defensoría del Pueblo em Santa Cruz, há mais de mil crianças vivendo dentro de Palmasola. Elas saem para estudar em escolas próximas – há uma bem em frente ao portão de entrada – e voltam no fim do dia para dormir na “casa” dos pais.
Não havia muitas crianças transitando durante nossa visita porque estavam em horário de aula. Mas as que estavam por ali, pequenas, andavam grudadas nos pais. Os presos em melhores condições financeiras – que recebem dinheiro da família, de negócios internos ou com o tráfico de drogas – podem, além  de usufruir dos bens de consumo e serviços produzidos lá dentro, contratar prostitutas que chegam de fora e do pavilhão de mulheres, consumir drogas e incrementar suas celas  com pequenos luxos como televisão, aparelho de som.

A vida dos brasileiros

Como em uma verdadeira cidade, há “bairros” ricos e pobres. Quem não tem dinheiro, como a maioria dos brasileiros, que não têm família ou amigos por perto, tem de se virar com o “rancho”, como é chamada a comida da detenção. Naquela quarta-feira, o rancho era uma papa de arroz com lentilha coberta por um caldo laranja não identificado.  Para dormir bem, há de se contar com a ajuda das igrejas –algumas permitem que os presos pernoitem se ajudarem na limpeza – ou  ser um bom jogador de futebol: “Os bolivianos gostam muito do futebol brasileiro, então quem joga bem e participa dos campeonatos que a gente faz aqui, recebe mais ajuda do pessoal” explica Mauro*, em prisão preventiva por tentativa de estelionato há dois anos e três meses.
Quem não consegue ajuda vive literalmente como sem-teto, dormindo sobre papelões a céu aberto. “É claro que existe um regime penitenciário e alguns processos administrativos se encaixam na lei, mas o resto está totalmente à margem. O que acontece em Palmasola é o que acontece aqui fora: quem tem mais recursos vive melhor” explica o advogado Hernán Mariobo. “O que está na lei é o sistema padrão, como o norte-americano, com celas, horários. Mas os presos  criaram seu próprio sistema”.
Antes de entrarmos na igreja, Marcelo*, um moço jovem preso por roubo na cidade de San Matias, nos leva para conhecer “el bote”, uma cela pequena e escura, usada como medida punitiva, sem janelas, trancada por barras de ferro, como as do antigo Carandiru em São Paulo. Lá dentro há vários homens – nem eles sabem dizer quantos são.  Um brasileiro se apresenta, diz que não se lembra há quantos dias está ali e que foi trancado porque se atrasou para a chamada que a polícia faz diariamente. Os outros presos repassam o rancho pela grade.
Marcelo levanta a camiseta para mostrar as costas tomadas por um tipo de doença de pele, com grandes manchas vermelhas espalhadas e algumas feridas. “Peguei esse bagulho quando fiquei mais de 70 dias no bote. Uns brasileiros fugiram e a disciplina nos pegou como exemplo, bateram, quebraram minha costela na frente de todo mundo e nos trancaram aí”, diz, apontando para a cela. “Só que para se consultar com o médico tem que pagar 50 pesos bolivianos. Para ter remédio, precisa pagar. Isso é horrível e está se espalhando, mas não tenho o que fazer”, lamenta.
As reclamações aparecem num caos de vozes em uma mistura de português, espanhol e gírias locais. “Nós brasileiros somos tratados como cachorros aqui”, diz um. “Queria eu ser tratado como perro, somos é lixo”, retruca o outro. “A comida é ruim, não temos onde dormir, não temos remédios”, grita um terceiro. Uma criança pequena escuta tudo atentamente, do colo do pai brasileiro. A mãe, boliviana, está do lado de fora trabalhando.
A doutora Darly tenta organizar a bagunça, pede que as queixas sejam feitas por tema. Quase nenhum dos homens ali tem seus documentos, retidos pela polícia quando foram  capturados. Nenhum tem a cópia do processo, e muitos estão há anos em prisão preventiva por crimes considerados de bagatela, como tentativa de roubo. Um brasileiro que está lá há mais de três anos foi pego tentando abrir um carro com um arame.
A reclamação maior é contra o Consulado brasileiro: “O cônsul não vem aqui e o advogado representante aparece de vez em quando, mas nunca resolve nada. Ele só nos traz cestas básicas de três em três meses”, diz um detento, referindo-se ao advogado boliviano contratado há 12 anos pelo Consulado para agilizar os processos dos presos brasileiros. O preso rapidamente pede para não ser identificado. Entredentes, Marcelo justifica o medo dos companheiros: “tá vendo aquele ali com o colete? É da disciplina. Nós vamos apanhar hoje porque estamos falando com a senhora. Eu não me importo, porque a gente precisa de ajuda. Mas se falarmos demais a coisa pode ficar feia”.
Segundo os presos ouvidos pela reportagem, o assessor jurídico do consulado só aparece a cada três meses.
No começo de outubro, mais de 20 homens escreveram cartas de próprio punho destinadas ao Consulado brasileiro e ao Itamaraty, reclamando da negligência e denunciando um suposto esquema de extorsão. Uma delas, à qual a Pública teve acesso, relata: “Como cidadão brasileiro reclamo meus direitos a assistência social, médica e um advogado. Não temos nada disso. Precisamos de ajuda, estamos abandonados, esperamos que nos atendam como pessoas. Estou sem documentos, com a condicional cumprida”. Outra carta explica: “Estou preso há 6 anos e nunca tive visita porque meus pais estão mortos e não tenho atenção médica, não tenho trabalho firme, não tenho advogado. Por isso peço ajuda do meu país onde vivi. O advogado do Brasil não está fazendo nada a que nos corresponde (…) solicitamos a mudança de advogado”. Uma terceira diz: “Denuncio o doutor Solis que sabendo que cumpri a minha pena não fez nada por mim. Ele é um mentiroso (…) preciso dos meus documentos, do meu passaporte, estou esquecido na Bolívia. Doutor Soliz, chega de mentira, preciso de sua atenção”. As denúncias continuam: “Doutor Solis, deixe de ser mentiroso e de enganar nós aqui, porque não dá nenhuma informação sobre nossa situação aqui e quando vem aqui não faz nada. Solicito que troque o advogado (…) Ademais ele rouba todas as nossas coisas que mandam para nós aqui. Peço que o cônsul venha nos visitar para que falamos sobre a nossa situação urgente”.
Você pode ler algumas destas  cartas no final da reportagem.
Depois do PC4, fomos a Chonchocorito. Por algum tempo se proibiu a visita de mulheres ao pavilhão de segurança máxima por risco de estupro. De qualquer forma, éramos as únicas mulheres ali dentro. Darly estava calma e ambientada, cumprimentava os homens pelos nomes, perguntava sobre suas famílias. Um boliviano reincidente veio mostrar  seu bebê em um carrinho  dizendo que agora terá de tomar juízo.
Passados dois portões, estavamos por nossa conta. Ali, nada de lojas ou lanchonetes: Apenas um grande prédio cinza ao lado de um pequeno campo de futebol improvisado e uma espécie de pátio com bancos à sombra de um toldo de palha. Um brasileiro vem ao nosso encontro e sai para chamar outros cinco que vivem lá. Enquanto conversamos, homens passam armados com pedaços de canos e armas brancas de todo tipo para saber o que está acontecendo. Todos nos tratam com respeito. A maioria dos brasileiros caiu ali por tráfico de drogas ou roubo – ao contrário do PC4, onde muitos estão por assassinato e devem cumprir penas de mais de 20 anos.
Eles contam que quase todos os homens, quando chegam a Palmasola, vão direto para Chonchocorito. Os que podem pagar cerca de mil dólares são transferidos para o pavilhão mais cômodo. Entre os que nos recebem em Chonchocorito está o reincidente João*. Junto com um grupo de 22 brasileiros, em 2003 ele se crucificou e costurou os lábios para chamar a atenção do Consulado brasileiro para a situação em Palmasola.
“O cônsul veio aqui, prometeu melhorias, saiu em um monte de jornais no Brasil e depois ficou tudo igual. Igual não, pior na verdade, porque sofremos represália. Apanhamos mais por ter chamado a atenção, e o custo de vida aumentou”. Os detentos contam que, se um boliviano ganha 10 pesos por um dia de trabalho (limpando, arrumando, etc.), um estrangeiro ganha cinco. E que o mesmo acontece com o custo da comida e bebida, que aumenta para quem é de fora.
Um jovem que foi pego roubando há três meses conta que não teve nem a primeira audiência com o juiz. “Estou sem documento, sem meus pertences que foram tirados pela polícia e nunca vi ninguém do Consulado brasileiro aqui. Sei que existe um advogado porque os outros me disseram”.  No dia seguinte à nossa visita, Chonchocorito entraria em rebelião pacífica por melhores condições de vida, com uma greve de fome que foi noticiada apenas na TV local.

Brasileiras, abandonadas

O último pavilhão a visitar – o relógio apontava para as 17h, apesar do sol a pino que não dava trégua – era o das mulheres. Tensão e tristeza pareciam deixar o ar mais denso. Ao contrário do PC4, quase não há visitas. Muitas das 18 brasileiras presas em Palmasola são dependentes químicas, principalmente de crack e outras variações da pasta-base da cocaína, inclusive injetáveis.
Elas têm a pele solta no corpo, marcas de agulhas e facadas, arranhões, hematomas das brigas diárias. Poucas se juntam a nós, a maioria está dopada demais para conversar. Quando pergunto onde arranjam dinheiro para sobreviver ali dentro, uma responde: “Roubando. A gente rouba umas das outras, pede emprestado e não devolve, pega. Principalmente para as drogas. Eu sou uma viciada, não tenho vergonha de assumir isso. Só queria ter dinheiro para usar”.
Entre elas está uma senhora que aparenta de mais de 60 anos, presa no aeroporto transportando cocaína, que age de forma maternal com as outras, cuidando para que não falem demais, dizendo à doutora Darly que “pelo amor de Deus arranje ajuda médica para estas meninas”. Ela está presa por “mil ocho” como a maioria ali. E faz pães que são vendidos nos pavilhões para juntar algum dinheiro para pagar um advogado já que, como as outras, diz que não pode contar com o advogado do consulado. Quando perguntamos sobre ele, elas bufam, dão risada e uma diz: “Eu acho que nunca vi esse homem aqui”.
Ao final do dia, uma voz masculina em particular, sem rosto, ecoa sobre as outras: “moça, não sei como, mas eu saio daqui logo. Nem que seja com os pés gelados”.

Consulado e Itamaraty

Procurado pela Pública, o advogado contratado boliviano que atende em nome consulado brasileiro, Juan Soliz, diz que ajuda como pode, fazendo correr os processos, porém a verba é curta e a demanda é muito grande: “temos bastante indigentes, esses hippies que vem para cá, consumidores de drogas que decidem cometer alguns delitos, quando são presos ficam nestes lugares mais humildes. Normalmente minha atividade é centrada nessa gente. De maneira voluntária, o consulado manda um pouco de comida a cada dois ou três meses”. Segundo ele, a cesta básica é “voluntária” porque não é atribuição do consulado. “Hoje temos cerca de cem  presos brasileiros e a verba que temos para custos processuais e de ajuda a todos é de mil dólares”
Segundo o advogado especializado em direito internacional Claudio Fikelstein, não há uma lei que determine o que o Consulado brasileiro deve ou não fazer nestes casos. Mas regularizar a parte de documentos, avisar a família dos presos e prestar auxílio jurídico adequado é, sim, uma obrigação do orgão. “O que acontece é que alguns consulados realmente interferem mais em casos de prisões de brasileiros no exterior, como os que envolvem pena de morte e casos extremos e outros, talvez por falta de verba ou de pessoal, se envolvem menos.
Questionado a respeito, o Itamaraty declarou por meio de sua assessoria de imprensa que “em 2011 foram visitados 120 brasileiros em Palmasola em 95 visitas de periodicidade quinzenal” – ao contrário do que dizem os presos – e que o governo brasileiro não tem competência para representar em corte os brasileiros presos. Explicou ainda que “a responsabilidade básica da dignidade e bem-estar dos presos é da autoridade local, mas o cidadão detido pode se comunicar e levar suas denúncias ao Consulado sempre que necessário e em casos extremos adquirir artigos básicos como remédios, alimentos e peças de vestuário”.
Tais normas são regidas pela Convenção de Viena sobre Relações Consulares e no Manual de Normas do Serviço Consular e Jurídico (NSCJ) que regulamenta a assistência a presos brasileiros no exterior prestada pelo Itamaraty. Destaque para o artigo 3.10.7 do Manual: “A Autoridade Consular procurará apurar junto às autoridades locais qualquer fato que possa, a seu critério, colocar em risco a integridade moral, física e psicológica do preso brasileiro, solicitando a implementação de providências nesse sentido”.
Pouco antes do fechamento desta reportagem, a advogada Darly Franco levou as cartas dos presos ao Consulado brasileiro em Santa Cruz que, segundo ela, se negou a receber porque os papéis não estavam assinados.
  
Esta reportagem foi realizada por meio do Concurso de Microbolsas da Agência Pública, em parceria com a Rede Brasil Atual. A repórter da Pública Andrea Dip se uniu à jornalista Tatiane Ribeiro, que atualmente trabalha no site Mural, da Folha de S Paulo.  *Todos os nomes são fictícios.