Infeliz Iêmen
Há excelente mapa aqui.por Tariq Ali, em London Review Books
Parti para o Iêmen, já que Obama anda insistindo que “grandes fatias”
do país ainda não estariam “sob completo controle do governo”, depois
de o senador Joseph Lieberman ter alegremente anunciado que o Iêmen
seria alvo adequado para mais guerra e mais ocupação.
O infeliz portador daquela cueca-bomba que tentou explodir o avião de
Amsterdam no dia de Natal deflagrou nova onda de interesse pelo país e
pela “al-Qaida in the Arabian Peninsula (AQAP)” – porque se disse que,
embora o homem tenha sido convertido ao Islã linha-dura na Inglaterra,
seu abraço felizmente fracassado com o terrorismo teria sido viabilizado
pela AQAP em algum ponto do Iêmen.
O Iêmen é país sóbrio, diferente dos postos imperiais de gasolina
espalhados por outras partes da península arábica, onde as elites
dominantes vivem em arranha-céus construídos em prazos sempre recordes,
projetados por arquitetos-celebridades, cercados por shopping-centers em
que se vendem produtos com todas as griffes ocidentais, atendidos por
escravos que chegam em ondas do Sul da Ásia e das Filipinas. Sana’a,
capital do Iêmen, foi fundada em tempos em que o Velho Testamento ainda
estava em produção, sendo escrito, editado e costurado. É verdade que o
novo hotel Mövenpick, no coração do enclave diplomático que há na
cidade, faz lembrar o pior de Dubai (estive lá quando todos eram
obrigados a engolir um menu “Valentine’s Day Dinner Menu”), mas a elite
iemenita é cuidadosa e não ostenta riqueza.
A velha cidade murada foi resgatada da extinção-por-modernização,
pela Unesco (depois, também pelo Aga Khan Trust) nos anos 80s, e a
antiga muralha foi reconstruída. A Grande Mesquita do século 9º está
atualmente sendo restaurada por equipe de especialistas italianos
associados a arqueólogos locais e têm encontrado objetos e imagens do
passado pré-islâmico daquela região. Se vão ou não localizar uma pequena
estrutura que se diz que teria sido construída ainda em vida do profeta
Maomé, não se sabe.
A estrutura de Sana’a é deslumbrante, diferente de tudo o que se vê
no mundo. As construções – arranha-céus de oito ou nove andares – foram
erguidas no século 9º e restauradas 600 anos depois, conservando-se o
estilo original: tijolos de argila decorados com padrões geométricos em
gesso e pedra esculpida (não havia madeira em quantidade suficiente para
construir). Faltam só os jardins suspensos em cada piso, que cativaram a
imaginação dos viajantes medievais.[1]
Resultado líquido das preocupações ocidentais com a Al-Qaeda AQAP é
que, esse ano, os EUA darão 63 milhões de dólares em ajuda ao Iêmen. Um
quinto disso já está reservado para comprar armas, e o restante,
praticamente todo, irá para o presidente e sua trupe, sem esquecer o que
irá para os bolsos dos altos comandantes militares. O que sobrar será
disputados pelos chefetes das várias regiões do país. (No total, não
está incluído o que o Pentágono enviará para combater o terrorismo, e
que ano passado chegou a 67 milhões.) Um empresário iemenita contou-me
que ficara boquiaberto, há alguns anos, quando o primeiro-ministro,
aparentemente homem moderado e respeitável, exigiu comissão de 30% em
negócio que estavam planejando. Percebendo que o empresário ficara
chocado, o primeiro-ministro tratou de tranquilizá-lo: 20% iriam
diretamente para o presidente.
Não sei se a AQAP é ameaça séria, ou o quanto é séria, de fato.
Quantos membros da organização estariam no país, quantos seriam meros
visitantes vindos do outro lado da fronteira com a Arábia Saudita?
Abdul Karim al-Eryani, 75 anos, ex-primeiro-ministro e ainda
conselheiro do presidente recebeu-me na grande biblioteca no subsolo de
sua casa. É homem de fala interessante e falou longamente sobre a
história do Iêmen, destacando as continuidades desde o período
pré-islâmico até as culturas islâmicas na região. Lastimou que o dialeto
árabe falado pelos beduínos de Nejd (que hoje é parte da Arábia
Saudita) tenha sido a principal fonte para o moderno dicionário árabe,
esquecendo-se assim a real fonte da língua, o dialeto dos Sabeans
[talvez “sabinos”? Só o Arnaldo Carrilho saberá dizer!] que viveram onde
hoje é o Iêmen, de cujo idioma os autores do dicionário excluíram 5.000
palavras.
Mais adiante, contou-me que, graças ao nigeriano da cueca-bomba,
tinha sido visitado por Thomas Friedman, colunista do New York Times.
Friedman fez as perguntas que quis, voltou aos EUA e contou aos leitores
que “a cidade não é Cabul… ainda”; que a AQAP é um ‘vírus’ que merece
urgente atenção antes que a doença se espalhe e torne-se incontrolável.
Não cogitou, sequer, da causa da infecção.
Mas quando pedi que Eryani estimasse o tamanho da AQAP, ele riu.
“Trezentos? Quatrocentos” – insisti. “No máximo”, disse ele. “No máximo,
mesmo. Os americanos exageram enormemente. Temos nossos problemas reais
e muito mais importantes.”
O mesmo ponto de vista foi reiterado por Saleh Ali Ba-Surah, ministro
da Educação Superior, formado na Alemanha Oriental, como muitos
nascidos na república que, até 1990, foi a República Popular Democrática
do Iêmen, a porção sul do atual Estado.
As duas partes do que hoje constitui a República do Iêmen –
controlada há 20 anos por Ali Abdullah Saleh, o qual, como Mubarak e
Gaddafi, está criando o filho para sucedê-lo – representaram duas muito
diferentes sociologias ao longo de grande parte do século passado. O
norte, das terras altas – onde está a capital Sana’a –, foi dominado por
tribos armadas; e no interior da região de Aden, dominavam os
operários, intelectuais, sindicalistas, nacionalistas e, depois, os
comunistas.
O país foi unificado séculos antes, sob a liderança dos imãs xiitas
Zaidi, cujos poderes temporais dependiam da lealdade tribal e da
aquiescência dos camponeses. O sul do Iêmen separou-se em 1728; o
império britânico em expansão ocupou Aden e a área litorânea em 1839 (no
mesmo ano em que começou a ocupar Hong Kong).
O já enfraquecido império otomano ainda abocanhou, pouco depois, uma
fatia do norte do Iêmen, mas teve de cedê-la depois da I Guerra Mundial.
Sob o império-do-bem dos britânicos, os imãs da família Hamid-ed-Din
reassumiram o controle do norte. Em 1948, o governante, Yahya Muhammad,
foi assassinado por um de seus guarda-costas, e o filho de Yahya, Ahmad,
isolacionista obcecado, assumiu o poder.
Para Ahmad, a escolha foi fácil: seu país poderia ser dependente e
rico, ou pobre e livre. Aos poucos, o descontentamento popular cresceu, à
medida que Ahmad ia-se tornando cada vez mais excêntrico, mergulhado em
morfina a maior parte do dia, ele e os amigos, num quarto iluminado com
lâmpadas de neon, brincando com os brinquedos que colecionava desde
criança. Não havia no país sequer uma escola moderna, uma estrada de
ferro ou fábrica moderna, praticamente nenhum professor e nenhum médico.
Todos apostavam na volta de um irmão exilado do imã, que viria para
expulsar Ahmad; ou, antes disso, em que os apoiadores de Nasser no
exército do Iêmen perdessem a paciência. Ahmad combatera o nacionalismo
árabe de Nasser em 1960, instigado pelos sauditas, fez divulgar pela
rádio estatal uma denúncia contra Nassar, e havia quem esperasse por
resposta do Cairo. A Rádio Cairo, sim, declarou guerra ao Iêmen. Mas
antes que chegassem às vias de fato, Ahmad morreu.
Em menos de uma semana, o chefe da guarda pessoal de Ahmad,
al-Sallal, reuniu oficiais nacionalistas e tomou o poder. O imanato
chegara ao fim. Em Aden, milhares de pessoas manifestaram-se nas ruas a
favor do novo regime. Nas mesmas manifestações deixaram bem claro também
que resistiriam contra a ocupação colonial do sul do país pelos
britânicos.
Com medo tanto dos radicais nacionalistas quanto de seus muito
prováveis apoiadores comunistas, Washington e Londres decidiram que o
melhor a fazer seria devolver o poder aos imãs. Os britânicos, doidos
para dar uma lição a Nasser e vingar a humilhação de Suez, foram com
muito mais sede que os EUA ao pote das armas. A principal preocupação
dos norte-americanos era que a infecção iemenita se espalhasse pela
península e que, se a intervenção saudita fracassasse, as correntes
nacionalistas engolfassem também a Arábia Saudita – o que poria em risco
a monarquia. Os sauditas passaram a alimentar os apoiadores dos imãs e
as tribos mais conservadoras do norte – com uma mistura barata de
islamismo primitivo e muito dinheiro.
Os líderes políticos e militares do novo Estado do norte eram fracos e
atrapalhados. Os intelectuais nasseristas no governo aproveitaram-se da
indecisão deles e, finalmente, conseguiram convencer o exército a
recorrer diretamente a Nasser. Os egípcios, então, com apoio de
soviéticos e chineses, mandaram para o Iêmen uma força expedicionária de
20 mil soldados.
Gerou-se assim uma prolongada guerra civil, disputada por simulacros
dos personagens oficiais da Guerra Fria – sauditas versus egípcios, para
ser bem claro –, que custou a vida de 200 mil iemenitas e deixou em
ruínas todo o norte do país.
Os egípcios eram homens do vale do Nilo e o terreno montanhoso lhes
era completamente desconhecido. Mas, certos de que seriam invencíveis,
não ouviram advertências nem conselhos e trataram os aliados locais,
simultaneamente, como inferiores e irrelevantes. A guerra civil
enfrentava impasse completo, e crescia a oposição aos métodos dos
egípcios, que incluíam o uso de armas químicas. Foi quando aconteceu o
brutal massacre dos operários e sindicalistas que faziam oposição aos
egípcios em Sana’a e Taiz.
Em 1970, a guerra acabou sem vencedores e um acordo insatisfatório
para todos. Os egípcios trabalharam na direção de subornar as tribos
para comprar o poder; como resultado, compraram o poder – que foi
entregue associado a entidades divinas e muitos pregadores e clérigos. A
guerra custara ao Egito um milhão de dólares por dia e a vida de 15 mil
soldados, além de quase 50 mil feridos. A subsequente desmoralização do
exército pode ter contribuído para a derrota que sofreu na Guerra dos
Seis Dias. Seja como for, a ‘guerra relâmpago’ de Israel, em junho de
1967, foi o túmulo do nacionalismo árabe.
A guerra civil forçou muitos comunistas e nacionalistas de esquerda
do Iêmen do Norte a fugir para Aden. Ali, soldados britânicos, veteranos
franceses da Argélia e mercenários belgas foram recrutados para a
empresa do coronel David Stirling, Watchguard International Ltd., para
operar por trás das linhas inimigas. Também no sul os nacionalistas
estavam divididos: o Egito apoiava a Frente para a Libertação do Iêmen
do Sul [ing. Front for the Liberation of South Yemen (FLOSY)] e grupos
mais radicais reunidos sob a bandeira da Frente Nacional de Libertação
[ing. National Liberation Front (NF)]. Os dois lados lutavam para
expulsar os britânicos, e os britânicos, determinados a continuar onde
estavam, agarrados a uma base estrategicamente importante e recorrendo
cada vez mais a prisões sem julgamento e à tortur a.
Em 1964 Harold Wilson declarou que os britânicos permaneceriam na
região, mas que passariam o poder, em 1968, à chamada Federação
Sul-arábica [ing. Federation of South Arabia], sob a qual Wilson
esperava que a população de Aden fosse mantida sob o controle de sultões
do interior.
O plano deu gravemente errado, depois de todas as vilas terem sido
bombardeadas, até serem varridas do mapa, pela Força Aérea britânica
[ing. Royal Air Force (RAF)]. Em palavras de Bernard Reilly, oficial
britânico que viveu praticamente toda a vida em Aden: “Só se pode
pacificar país não habituado a governo ordeiro, mediante atos de punição
coletiva, assalto e pilhagem.” Os líderes daquelas tribos não desejavam
ser pacificados. Começou luta feroz nas ruas do Crater, uma das áreas
mais antigas de Aden.
Em 1967, a Frente Nacional de Libertação usava bazucas e morteiros em
Aden e atacava diretamente as bases militares britânicas. O governo
trabalhista decidiu pôr fim às perdas e ordenou a retirada.
“Lamentavelmente” – lê-se em carta do Colonial Office aos seus
colaboradores nativos – “não podemos continuar a protegê-los”.
A vitória dos israelenses em junho de 1967 não ajudou os britânicos,
porque a Frente Nacional de Libertação não era peão que os Egípcios
jogassem como bem entendessem e bem diferente, nisso, da Frente para a
Libertação do Iêmen do Sul [ing. FLOSY] a qual, então, estava gravemente
enfraquecida. Uma greve geral comandada pela Frente Nacional de
Libertação paralisou Aden e ataques de guerrilheiros forçaram a
administração colonial a cancelar as celebrações do aniversário da
rainha. Seis meses mais tarde, dia 29/11/1967, quando o fechamento do
canal de Suez acabou com qualquer importância que Aden tivesse para os
britânicos, os britânicos afinal partiram, depois de 128 anos.
Ao mesmo tempo em que Humphrey Trevelyan, último comissário, acenava
uma rápida despedida dos degraus do avião que o devolveria a Londres, a
Banda da Real Marinha Britânica do HMS Eagle tocava ‘Fings Ain’t Wot
They Used To Be’ [as coisas não serão mais como foram, escrito ‘com
sotaque’].
A Frente Nacional de Libertação venceu, mas ainda faltava planejar a
reconstrução do país. A Frente reunia membros de várias correntes da
esquerda: pró-Moscou, maoístas, guerrilheiros à Che Guevara, alguns
poucos trotskyistas e nacionalistas ortodoxos. Todos concordaram
imediatamente com restabelecer relações diplomáticas com a URSS, o que
foi feito dia 3/12/1967. Mas as disputas começaram imediatamente.
O Congresso da Frente Nacional de Libertação aprovou deliberação
apresentada pelos radicais, em que se exigiam reformas no campo, o fim
do analfabetismo, a formação de uma milícia popular, expurgo nos
aparelhos civil e militar, apoio à resistência palestina e cooperação
intensa e próxima com a China.
A esquerda dominava no corpo dirigente então eleito. Uma tentativa de
putsch liderada pelo exército por pouco não levou à guerra civil; mas
comandos guerrilheiros armados cercaram as bases militares e desarmaram
os oficiais. Em maio de 1968 já se via que a ala direita da Frente
Nacional de Libertação não tinha qualquer intenção de implementar as
resoluções do Congresso.
Foi criado um Movimento 14 de Maio, para mobilizar os que apoiavam as
reformas. Houve confrontos com os militares, seguidos por um estranho
período de calmaria que fazia recordar os Dias de Julho de 1917 em
Petrogrado. A direita supôs que havia vencido e declarou que “os
organizadores do Movimento 14 de Maio, de tanto ler os escritos de Régis
Debray, supuseram que estivessem fazendo “uma revolução dentro da
revolução”. Um ano depois, todos entenderam que a esquerda vencera.
A constituição de 1970 declarou o país uma república socialista – a
República Popular Democrática do Iêmen – contra os conselhos de China e
da URSS. (Em outubro de 1968, o ministro das Relações Exteriores da
China, Chen Yi, o qual, ele mesmo, estava então sitiado pelos Guardas
Vermelhos, declarou a uma delegação do Iêmen do Sul que visitava a China
que “a ideia de vocês, de construir o socialismo, alimentada com
slogans irrealizáveis e promessas que não poderão cumprir, pela própria
natureza da ideia, afia as espadas de seus adversários.”) O que
aconteceu foi tragicamente previsível.
Um Estado economicamente muito atrasado partiu para criar estruturas
que institucionalizaram a austeridade e universalizaram a miséria.
Promover a industrialização mediante empresas estatais poderia ter
ajudado, não fosse pela proibição total de qualquer tipo de produção
doméstica, sequer para o consumo das próprias famílias. A isso somou-se o
monopólio estatal de todas as modalidades de comunicação, controle
estrito sobre tudo que se podia dizer ou publicar, e extinção de todos
os partidos do país, exceto o Partido Socialista Iemenita [ing. Yemeni
Socialist Party]. Zombaram, ao mesmo tempo, do socialismo e das
promessas feitas durante a luta anticolonial. O que é inegável é que o
novo sistema de educação e atendimento médico universal, e a aparição da
mulher na cena pública marcaram extraordinário passo adiante para toda a
região. O que não agradou à Arábia Saudita.
Como desenvolvimento esperável, as potências vizinhas – o Iêmen do
Norte, os Estados do Golfo, a Arábia Saudita – puseram-se a trabalhar,
estimulados pelo governo Reagan, numa contrarrevolução de dentro para
fora, do tipo que estava então sendo tentada na Noruega com os Contras.
Em Ali Nasser, apparatchik cru, semianalfabeto, obcecado pelo poder
absoluto, que se tornou presidente da República Popular Democrática do
Iêmen em 1980, aquele grupo encontrou o instrumento de que precisava.
Por mais de um ano o presidente trabalhou contra o carismático Abdul
Fateh Ismail, que o precedera na presidência e liderara a luta contra os
britânicos, até conseguir que renunciasse por “motivos de saúde” e
partisse para longa estadia na Europa Oriental. Havia vários apoiadores
de Ismail na liderança local, quando ele retornou de Moscou em 1985; foi
rapidamente reeleito para o Politburo da República Popular Democrática
do Iêmen, como líder da maioria.
Dia 13/1/1986, o carro de Ali Nasser foi visto na calçada do prédio
do Comitê Central (réplica de outras horrendas estruturas que se viam na
Europa Oriental), onde deveria acontecer uma reunião do Politburo. Mas
Ali Nasser não compareceu à reunião. Em vez dele, apareceu seu
guarda-costas, drogado e armado com uma metralhadora Scorpion; entrou na
sala e assassinou à bala o vice-presidente Ali Ahmed Antar, para
começar; em seguida matou todos quantos estavam na sala. Foram mortos
quatro membros-chave do Politburo, inclusive Ismail, além de outro
membros do Comitê Central. Em outros pontos da cidade, homens de Ali
Nasser destruíram, a tiros de morteiros, a casa de Ismail; e houve
pesado tiroteio em vários pontos. Às 12h30, rádios e televisões de Aden
noticiaram que o presidente derrotara uma tentativa de golpe dos
direitistas e que Ismail e seus colaboradores haviam sido executados.
Três horas de pois, o serviço árabe da BBC anunciava que o “moderado e
pragmático” presidente do Iêmen conseguira abortar uma tentativa de
golpe pelos comunistas extremistas. E a mesma linha foi acompanhada por
quase toda a mídia ocidental, que repetiu a versão da derrota de uma
tentativa de golpe apoiada por Moscou para radicalizar ainda mais o
Iêmen… e, isso, apesar de Gorbachev já estar no poder na URSS.
À medida que se espalhavam em Aden as notícias dos assassinatos,
multidões começaram a reunir-se nas ruas, e soldados conseguiram
desalojar os novos donos do prédio do ministério da Defesa e da sala de
operações, de onde os homens de Ali Nasser foram expulsos. Os confrontos
atravessaram a noite. Morreram muitos membros desarmados do Partido,
sindicalistas, líderes camponeses, assassinados pelos soldados de Nasser
– que tinham listas de nomes antecipadamente preparadas. Seja como for,
depois de cinco dias de luta sangrenta, os “moderados e pragmáticos”
foram derrotados. Ali Nasser fugiu para o Iêmen do Norte e de lá,
depois, para Dubai. Atualmente, é diretor de um “centro cultural” em
Damasco, onde dirige também suas várias empresas.
A matança na reunião do Comitê Central foi o começo do fim da
República Popular Democrática do Iêmen. Os prepostos do Ocidente na
região, que haviam organizado toda a ação, puseram-se a falar contra “os
gângsteres socialistas que ocuparam o governo do país”. Enquanto a URSS
começava a desmoronar, começaram negociações entre o Iêmen do Sul e do
Norte, e o país foi rapidamente unificado em maio de 1990, comandado por
um conselho presidencial de cinco membros que representava as duas
‘metades’. Em 1991, uma nova Constituição levantou todas as limitações à
liberdade de expressão e da imprensa e à liberdade de reunião e
associação.
Mas a unificação também não deu certo. Os iemenitas do sul sentiam
que seus interesses haviam sido traídos, e os repetidos confrontos e
discussões não auguravam bom futuro para o governo de coalizão criado
depois das eleições. Os socialistas do sul acusavam as gangues apoiadas
por Ali Saleh, ex-presidente do Iêmen do Norte, e então presidente do
país unificado, de atacar sulistas em Sana’a e em outras cidades. As
relações deterioram-se rapidamente e houve escaramuças no Sul entre
remanescentes do exército da República Popular e soldados que haviam
lutado pelo Norte. Chegou a irromper guerra generalizada em 1994, da
qual participaram grupos jihadistas e Osama bin Laden – que apoiavam Ali
Saleh. Os sulistas foram esmagados, não apenas militarmente, mas também
cultural e economicamente. Houve expropriação, roubo de terra, de
propriedades urban as, as mulheres voltaram a ter de cobrir-se dos pés à
cabeça (“Se não nos cobríssemos, chamavam-nos de prostitutas. Houve
muitos estupros. A brutalidade foi imensa. Nos obrigaram a fazer o que
queriam” – contou-me uma mulher sem véu, em Aden).
Quando cheguei a Aden, percebi que a Al-Qaeda da Península Árabe
(AQAP, em inglês) é o menor dos problemas do país.
A maioria dos sul-iemenitas anseiam desesperadamente por separar-se
do Iêmen do Norte. “Aqui não se trata de unificação. Trata-se de
ocupação” – ouvi inúmeras vezes.
A população está sem liderança política e há fortes rumores em Sana’a
de que o assassino Ali Nasser estaria sendo preparado pelo atual
presidente Ali Saleh para fazer uma reestreia política; Ali Saleh o vê
como “o homem da unificação”. Enquanto isso, há manifestações nas vilas e
cidades menores, nas quais se queimam a bandeira do Iêmen e fotos do
presidente Ali Saleh, e vê-se subir o velho estandarte da República
Popular Democrática. A repressão é sempre violenta e a amargura só faz
crescer, essa sim, de todos.
Dia 1/3/2010, as forças de segurança cercaram e destruíram a casa de
Ali Yafie o qual, na véspera, queimara em público uma fotografia do
presidente Ali Saleh. Yafie e oito membros de sua família, inclusive a
neta de sete anos, foram mortos. A propaganda governamental acusou-o de
ser membro da Al-Qaeda da Península Árabe.
Na noite de 4/1/2010, as forças de segurança em Aden cercaram a casa
de Hasham Bashraheel, editor-chefe do jornal Al-Ayyam – fundado em 1958 e
jornal que sempre noticiou, com abundância de fotos, as atrocidades do
Estado. Por exemplo, publicou fotos dos mortos depois que as forças de
segurança abriram fogo contra ex-soldados que reclamavam pagamentos
atrasados; o jornal foi fechado em maio de 2009, embora a sala da
redação tenha continuado a servir como local de reunião de jornalistas,
intelectuais e ativistas de direitos civis. Quando as forças de
segurança cercaram o prédio, logo surgiram também defensores do jornal
que se reuniram na área. Os policiais dispararam para o ar, para
dispersá-los. Depois, atiraram granadas na direção do prédio, onde o
jornalista e sua família, inclusive duas netas pequenas, ainda estavam.
Todos sobreviveram, miracu losamente, porque conseguiram esconder-se no
porão do prédio.
Na manhã seguinte, Bashraheel e seus dois filhos renderam-se
publicamente, para, pelo menos, tentar dificultar algum tipo de atentado
contra eles e a família. Um ativista local disse-me que “amigos que
tenho na polícia” disseram-lhe que havia dois cadáveres não
identificados no porta-malas de um automóvel sem placa, em frente ao
jornal.
Se Bashraheel e sua família tivessem sido assassinados, os dois
cadáveres teriam sido plantados no prédio e identificados como membros
da Al-Qaeda da Península Arábica, que estariam recebendo abrigo no
prédio do jornal e teriam sido mortos por resistir à prisão. Um guarda
pago pela família para cuidar da segurança foi morto, ao tentar
render-se. O seu pai foi preso no enterro, dia seguinte. O jornalista
foi pessoalmente acusado de “formação de quadrilha armada”. Há boatos de
que o embaixador britânico, Tim Torlot, teria escrito ao governo,
sugerindo que a mídia independente seria o principal problema no Iêmen.
Meu informante em Sana’a garante que viu a carta. Torlot é famoso no
Iêmen por ter trocado a esposa por uma ofuscante norte-americana que
trabalha para o jornal Yemen Observer, jornal cujo proprietário é o
secretário de imprensa do p residente Ali Saleh.
Viajei pelo sul, de Aden a Mukallah. Mas quando vi Shibam, esqueci
completamente a política, pelo menos por uns instantes. Essa cidade
murada, feita de edificações com paredes de argila, muito altos, alguns
com 30 metros de altura, é um museu vivo[2]. Não surpreende que tenha
sido escolhida por Pasolini para cenário de boa parte de suas “Mil e Uma
Noites”. Pasolini fez mais. De volta a Roma, tanto falou sobre a cidade
que conseguiu que a Unesco a declarasse patrimônio universal da
humanidade (“World Heritage”). Em 2009, ao fotografarem a cidade de cima
de uma colina, quatro turistas sul-coreanos foram mortos por um
suicida-bomba do Norte.
Perguntei por todos os lados sobre a Al-Qaeda da Península Árabe. Um
habitante de Shiban aproximou-se e perguntou-me num sussurro: “Quer
mesmo saber onde Al-Qaeda se esconde?” Fiz que sim, com a cabeça e ele
respondeu: “Na sala ao lado do gabinete do presidente”.
O mesmo aconteceu, em versão quase idêntica, também em Sana’a e Aden.
Na véspera do Natal, o governo bombardeou (com jatos e aviões-robôs
coordenados pelos EUA) duas vilas do sul onde, diziam eles, estaria
escondido Anwar al-Awlaki, o clérigo iemenita-norte-americano acusado de
ser o mentor do nigeriano da cueca-bomba. Não o encontraram, mas
mataram mais de uma dúzia de civis.
O governo de Ali Saleh também enfrentou rebelião na província de
Sa’ada, no norte, que faz fronteira com a Arábia Saudita. A população
das terras altas anda irritada com os grupamentos de Wahhabitas e, sem
ajuda do governo de Sana’a, decidiu se autodefender. Milícias tribais
capturaram alguns soldados sauditas.
Resultado disso foi que, dia 5/11/2009, o mundo viu pela primeira vez
em ação a Força Aérea Saudita (dita a mais poderosa força aérea na
Região, depois de EUA e Israel; mas os aviões enferrujam até desmanchar,
em hangares no deserto). Ali Saleh, o presidente, descreve a revolta
como uma rebelião de xiitas apoiados por Teerã, e que tem de ser contida
à força. Já praticamente ninguém acredita nisso.
O exército iemenita promoveu em agosto passado a Operação “Terra
Arrasada” [ing. Scorched Land], que destruiu vilas e desalojou de suas
casas 150 mil pessoas. Dada a total ausência de notícias e de
organizações humanitárias, não se conhece exatamente a extensão das
atrocidades cometidas pelo governo de Ali Saleh.
Muhammad al-Maqaleh, líder do Partido Socialista Iemenita e editor do
jornal do partido, o Socialist, obteve depoimentos de algumas
testemunhas oculares e publicou-os na Internet em setembro passado.
Descreveu um ataque aéreo que matou 87 refugiados em Sa’ada, e incluiu
fotografias. Foi preso por quatro meses, torturado e ameaçado de
execução, por quatro meses. Finalmente foi apresentado a uma corte de
justiça, à qual revelou o que sofrera.
Sana’a ainda não é Cabul, sim. Mas se o regime de Ali Saleh continuar
a usar a força contra a população na escala em que está acontecendo
hoje, novas guerras civis são hoje muito prováveis.
[1] Ver Salma Samar Damluji (2007), The Architecture of Iêmen: From
Yafi to Hadramut.
[2] Há boas imagens em http://whc.unesco.org/en/list/192/.