quarta-feira, 25 de novembro de 2009

JÁ, RESISTÊNCIA E AGONIA



O jornal que ousou contar a verdade
  Luiz Cláudio Cunha - Observatorio da Imprensa

A maior fraude com dinheiro público da história do Rio Grande do Sul carrega nos ombros o sobrenome ilustre de Germano Rigotto. O irmão do ex-governador gaúcho, Lindomar, brilha como o principal implicado entre as 22 pessoas e 11 empresas denunciadas pelo Ministério Público e arroladas na CPI da Assembléia gaúcha que investigou há 14 anos uma milionária falcatrua na construção de 11 subestações da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). Foi uma tungada, em valores corrigidos, de aproximadamente 800 milhões de reais – quase 15 vezes o valor do mensalão do governo Lula, três vezes o valor dos desvios atribuídos ao clã Maluf em São Paulo, cerca de 20 vezes o valor apurado no escândalo do Detran que expôs a governadora gaúcha Yeda Crusius a um pedido de impeachment.
Esta história foi contada em detalhes, em 2001, por um pequeno jornal de Porto Alegre, com tiragem de apenas cinco mil exemplares numa capital com quase 1,5 milhão de habitantes – e está recontada, a partir desta semana, numa edição extra do que chega às bancas e no seu site.
O é um bravo mensário que sobrevive há 24 anos pela teimosa resistência de seu editor, Elmar Bones da Costa, nascido há 65 anos em Santana do Livramento, cidade gaúcha no limite com o Uruguai, de onde ele trouxe a rebeldia indomável do fronteiriço. Ao longo de 40 anos de carreira, Bones construiu com talento uma sólida e reconhecida biografia na imprensa nacional que passa pelas redações de Veja, Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil, O Estado de S.Paulo, IstoÉ e Folha da Manhã.
Seu troféu mais lustroso, porém, é o CooJornal, um mensário editado pela extinta Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (1976-1983) nos duros anos de chumbo da ditadura. Era um jornal de reflexão sobre a imprensa e seus profissionais, que abria espaço para a memória e a história recente do país, contada por intelectuais de peso e cores que não tinham lugar na imprensa tradicional. Em 1980, ainda em plena ditadura, Bones publicou um documento sigiloso do Exército em que os generais faziam uma dura autocrítica à atuação de suas tropas na repressão às guerrilhas do Vale da Ribeira e do Araguaia. Os militares não gostaram e ele, junto com três colegas do CooJornal, foi condenado a 18 meses de prisão. Gramou 15 dias de cadeia e foi libertado com sursis.
Duas mortes
A mesma intolerância dos generais da ditadura recrudesceu, depois, com os Rigotto da democracia. A família sentiu-se ultrajada pela primeira página da edição 287 de maio de 2001 do , que anunciava: "O Caso Rigotto – Um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes não esclarecidas". Três meses depois, a matriarca da família, Julieta Vargas Rigotto, mãe de Lindomar e de Germano, entrou na Justiça com duas ações. Uma pelo Código Penal contra o jornalista que assina a reportagem, Elmar Bones, acusado de calúnia e difamação. Outra pela Lei de Imprensa contra a editora do , pedindo indenização por dano moral.
Nos dois anos seguintes, Bones ganhou todas as ações contra ele, em todas as instâncias, e o processo foi arquivado. Mas, em dezembro de 2003, a Vara Cível do Tribunal de Justiça condenou o ao pagamento de uma indenização que hoje alcança 54 mil reais, penhorando seus bens para cumprir a decisão. Desde agosto de 2009 um perito da Justiça vasculha mensalmente as conta do jornal para bloquear 20% de sua receita bruta. Assim, estranhamente, uma mesma reportagem gerou na Justiça duas sentenças díspares, contraditórias: uma absolvendo por unanimidade, outra condenando.
O pequeno mensário, que já teve 22 jornalistas e uma dezena de estagiários e colaboradores na Redação de uma ampla casa alugada no bairro do Bonfim, hoje está reduzido a Bones e sua companheira, Patrícia Marini, também jornalista, uma estagiária, uma secretária, dois computadores, um telefone e uma dezena de contas atrasadas, acuados em duas salas pequenas do antigo prédio na avenida Borges de Medeiros, no centro da cidade, onde funciona a Associação Riograndense de Imprensa (ARI), que até hoje não se manifestou sobre o caso Rigotto vs. . Assim, a ação de 54 mil reais de uma veneranda mãe que se diz injuriada está asfixiando, aos poucos, um destemido jornal nanico que ousou contar a verdade sobre uma quadrilha, identificada pela CPI e pelo Ministério Público, que roubou 800 milhões de reais do povo gaúcho. Dona Julieta Rigotto, aos 88 anos de vida, está matando um jornal alternativo que ainda não atingiu seus tenros 25 anos de existência. E tudo disso com o aval da Justiça.
A pequena editora de Bones, além das 396 edições do , publica uma revista mensal e quatro guias de bairro e ostenta 35 títulos de livros publicados. Ganhou oito prêmios ARI, o mais importante do Rio Grande do Sul, e em 2004, superando os grandes jornais e revistas do centro do país, faturou a categoria principal do maior prêmio do jornalismo brasileiro, o Esso, com "A tragédia de Felipe Klein" – um texto dramático, arrebatador do repórter Renan Antunes de Oliveira sobre a vida e morte de um jovem e atormentado suicida de Porto Alegre.
A reportagem de quatro páginas de 2001 que tanto incomodou os Rigotto é outra vencedora: conquistou o prêmio daquele ano da hoje silente ARI e o valioso Prêmio Esso Regional, carimbo de sua qualidade e relevância jornalística. A cirúrgica manchete do jornal – "O Caso Rigotto – Um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes não esclarecidas" – expressava a mais pura verdade. O golpe era aquele destrinchado na CPI da CEEE.
Alta voltagem
A primeira morte era de uma garota de programa, Andréa Viviane Catarina, 24 anos, conhecida nas boates da capital como "Amanda". No fim da tarde de 29 de setembro de 1998, ela despencou, nua, do 14º andar do Solar Meridien, um prédio na rua Duque de Caxias, no centro de Porto Alegre, a duas quadras do palácio que Germano Rigotto ocuparia cinco anos mais tarde.
O dono do apartamento de onde caiu Andréa era o irmão do futuro governador, Lindomar Rigotto, que estava em casa na hora do incidente. À polícia ele contou que a garota tinha bebido uísque e ingerido cocaína. Os exames de laboratório não encontraram vestígios de álcool ou droga no sangue da jovem. A autópsia indicou que a vítima apresentava três lesões – duas nas costas, uma no rosto – sem ligação com a queda, indicando que ela estava ferida antes de cair. Três meses depois, Rigotto foi denunciado à Justiça por homicídio culposo e omissão de socorro. No relatório, o delegado Cláudio Barbedo cita o depoimento de uma testemunha descrevendo o réu como "usuário e traficante de cocaína".
A segunda morte, 142 dias depois, era a do próprio Lindomar Rigotto. Então dono da boate Ibiza, na praia de Atlântida, a casa mais badalada do litoral gaúcho, ele fechava o balanço do último baile do Carnaval de 1999, que animou sete mil foliões até o amanhecer daquela Quarta-Feira de Cinzas, 17 de fevereiro. Cinco homens armados irromperam ali, no momento em que Rigotto e seu gerente contavam a renda. Os ladrões botaram o dinheiro numa sacola e fugiram, cantando pneu. Rigotto saiu em perseguição no seu Gol branco e levou um tiro acima do olho. Morreu a caminho do hospital, aos 47 anos. A bala fatal acabou arquivando o processo pela morte da garota, mas reavivou o mistério em torno da fraude milionária da CEEE.
Afundada em dívidas de quase 1,8 bilhão de dólares, a estatal gaúcha de energia encontrava dificuldades para conseguir os 142 milhões de dólares necessários para as subestações que iriam gerar 500 mil quilowatts para 51 pequenas e médias cidades do Rio Grande. O então governador Pedro Simon, preocupado com a situação pré-falimentar da empresa, tinha ordenado austeridade total. Até que, em março de 1987, criou-se o cargo de "assistente da diretoria financeira" para acomodar Lindomar Rigotto. "Era um pleito político da base do PMDB em Caxias do Sul", confessou na CPI o secretário de Minas e Energia da época, Alcides Saldanha. O líder do governo Simon na Assembléia e chefe da base serrana era o deputado caxiense Germano Rigotto.
Treze pessoas ouvidas pela CPI apontaram Lindomar como "o verdadeiro gerente das negociações" com os dois consórcios, agilizando em apenas oito dias a burocracia que se arrastava havia meses. Os contratos nº 1.000 e nº 1.001 foram assinados em dezembro numa solenidade festiva no Palácio Piratini pelo governador e pelo secretário. Logo após a assinatura, pagamentos foram antecipados, contrariando as normas explícitas baixadas por Simon para vigiar de perto as contas da estatal.
Eram documentos de alta voltagem financeira de uma estatal quase falida. Tanto que a CEEE teve que recorrer três meses depois a um empréstimo de 50 milhões de dólares do Banco do Brasil, dinheiro captado por sua agência no paraíso fiscal de Nassau, nas ilhas Bahamas. Apesar da importância em dinheiro, o presidente da estatal, Osvaldo Baumgarten, e o secretário de Minas e Energia confessaram candidamente na CPI que não leram a papelada que assinaram. "Eu não tinha condições de ler todos os contratos firmados pela CEEE", defendeu-se Alcides Saldanha, mais tarde ministro dos Transportes do governo Fernando Henrique Cardoso.
Uma investigação da área técnica da CEEE percebeu que havia problemas na papelada – documentos adulterados, folhas numeradas a lápis, licitação sem laudo técnico provando a necessidade da obra. Em fins de 1989, Rigotto decidiu sair para cuidar da "iniciativa privada", dividindo o controle com o irmão Julius do Ibiza Club, uma rede de quatro casas noturnas no Rio Grande e Santa Catarina. A sindicância interna na CEEE recomendou a revisão dos contratos, mas nada foi feito.
Conluio e papelão
A recomendação chegou ao governo seguinte, o de Alceu Collares (PDT) e à sucessora de Saldanha na secretaria de Minas e Energia, chamada Dilma Rousseff. Ela ficou eletrificada com o que leu: "Eu nunca tinha visto nada igual", diria Dilma, pouco depois de botar o dedo na tomada e pedir uma nova investigação. Ela não falou mais no assunto porque, em nome da santa governabilidade, o PDT de Collares precisava dos votos do PMDB de Rigotto para aprovar seus pleitos na Assembléia. Mesmo assim, antes de deixar a secretaria, em dezembro de 1994, Dilma Rousseff teve o cuidado de encaminhar o resultado da sindicância para a Contadoria e Auditoria Geral do Estado (CAGE), que passou a rastrear as fagulhas da CEEE com auditores do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e do Ministério Público.
O tamanho apurado da fraude tinha níveis de tensão diferentes em reais ou dólares, mas dava o mesmo choque: 65 milhões de dólares segundo a CAGE, ou 78,9 milhões de reais de acordo com o Ministério Público.
O deputado Vieira da Cunha, hoje líder da bancada do PDT na Câmara Federal, propôs em 1995 a CPI que jogaria mais luzes sobre a fraude na CEEE. Vinte e cinco auditores quebraram sigilos bancários, fiscais e patrimoniais dos envolvidos. Em 13 depoimentos, Lindomar Rigotto foi apontado como a figura central do esquema, acusação reforçada pelo chefe dele na CEEE, o diretor-financeiro Silvino Marcon. A CPI constatou que os vencedores, gerenciados por Rigotto, apresentaram propostas "em combinação e, talvez, até ao mesmo tempo e pelas mesmas pessoas". Os dois consórcios apresentaram propostas para dois subconjuntos, B1 e B2.
O de Elmar Bones lembrou:
"Apurados os vencedores, constatou-se que o consórcio Sulino venceu todas as subestações do grupo B2 e nenhuma do B1. Em compensação, o Conesul venceu todas as obras do B1 e nenhum do B2. A diferença entre as propostas dos dois consórcios é de apenas 1,4%".
A CPI foi ainda mais chocante:
"É forçoso concluir pela existência de conluio entre as empresas interessadas que, se organizando através de consórcios, acertaram a divisão das obras entre si, fraudando dessa forma a licitação".
A quebra de sigilo bancário de Rigotto revelou em sua conta um crédito de 1,170 milhão de reais, de fonte não esclarecida. O diretor Silvino Marcon justificou à CPI os 156 mil reais encontrados em sua conta particular como sendo "sobras da campanha de 1986".
O relatório final da CPI caiu nas mãos de outro caxiense, que não poupou ninguém, apesar do parentesco. O petista Pepe Vargas, que foi prefeito de Caxias e hoje é deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, é primo de Lindomar e Germano Vargas Rigotto. "De tudo o que se apurou, tem-se como comprovada a prática de corrupção passiva e enriquecimento ilícito de Lindomar Vargas Rigotto", escreveu o primo Pepe no relatório final.
Pela primeira vez, entre as 139 CPIs criadas no estado do Rio Grande do Sul desde 1947, eram apontados os corruptos e os corruptores. Além de Lindomar Rigotto e outras 12 pessoas, a Assembléia Legislativa gaúcha aprovou o indiciamento pela CPI de 11 empresas, sem poupar nomes poderosos como os da Alstom, Camargo Corrêa, Brown Boveri, Coemsa, Sultepa e Lorenzetti. As 260 caixas de papelão da CPI foram remetidas no final de 1996 ao Ministério Público, transformando-se no processo n° 011960058232 da 2ª Vara Cível da Fazenda Pública em Porto Alegre. Os autos somam 30 volumes e 80 anexos e envolvem 41 réus – 12 empresas e 29 pessoas físicas. E tudo isso corre em segredo de Justiça.
Coisa de mãe
Essa história incrível, contada sem peias pelo jornal nanico de Elmar Bones, parece também um segredo de imprensa. Nenhum dos grandes veículos de comunicação do Rio Grande do Sul recontou o caso, o mais vultoso entre os 200 processos abertos pelo Ministério Público nos últimos 15 anos. Menos atenção ainda provocaram as duras reações judiciais da família Rigotto, que podem matar o único jornal que se atreveu a jogar luz sobre a milionária treva financeira que se abateu sobre a CEEE.
O ex-governador Germano Rigotto costuma apregoar aos amigos suas boas relações com os dois maiores grupos de mídia do Rio Grande – a Caldas Júnior (jornal Correio do Povo, rádio Guaíba e Rede Record) e a RBS (jornal Zero Hora, rádio Gaúcha e rede RBS, retransmissora da Globo). Isso não impediu, porém, que a brava Julieta Vargas Rigotto processasse a TV-COM, o canal comunitário da RBS, por ter classificado a morte do filho Lindomar na praia como "queima de arquivo". Ela ganhou na Justiça, em 2003, o direito de receber 150 salários mínimos, com juros, pela ofensa que remetia o fim violento do filho à morte da garota e aos curtos-circuitos contábeis da CEEE.
Quando perguntado diretamente sobre o absurdo dessa situação, o ex-governador Germano Rigotto refugia-se na saia materna: "Não tenho nada a ver com isso. É coisa da minha mãe", manda dizer o irmão do réu central da maior fraude da história gaúcha, escapulindo da responsabilidade de um caso de marcantes implicações políticas, não filiais.
Diante da primeira ação de dona Julieta na Justiça, o promotor Ubaldo Alexandre Licks Flores rebateu o pedido de processo, em novembro de 2002:
"[não houve] qualquer intenção de ofensa à honra do falecido Lindomar Rigotto. Por outro lado é indiscutível que os três temas [a CEEE e as duas mortes] estavam e ainda estão impregnados de interesse público".
Duas semanas depois, a juíza Isabel de Borba Luca, da 9ª Vara Criminal de Porto Alegre, deu a sentença que absolvia Bones:
"(...) analisando os três tópicos da reportagem conclui-se pela inexistência de dolo (...) em nenhum momento tem por intenção ofender (...) não se afastou da linha narrativa (...) teve por finalidade o interesse público".
Em agosto do ano seguinte, por unanimidade dos sete votos, os desembargadores do Tribunal de Justiça negaram o recurso da bravíssima dona Julieta. E o caso foi encerrado na área criminal.
Andou e prosperou, porém, na área cível. Em dezembro de 2003, o relatório do desembargador Luiz Ary Vessini de Lima transbordava emoção:
"Não há como afastar a responsabilidade da ré pelas matérias veiculadas, que atingiram negativamente a memória do falecido, o que certamente causou tristeza, angústia e sofrimento à mãe do mesmo (...)".
E assim acabou condenado o e seu editor, que recorda ao Observatório da Imprensa a falta de simetria do processo atual e da cadeia que levou pela publicação de documentos da repressão antiguerrilha.
Fala Elmar Bones:
"A sentença que nos condenou, agora, é uma piada. O processo de 1980 era um absurdo só explicável num regime ditatorial. Os ditos `documentos sigilosos´ eram relatórios de campo sobre ações do Exército no combate à guerrilha, narrando fatos ocorridos já havia mais de dez anos e que só tinham importância porque, na época em que se deram, a censura não permitiu que fossem noticiados. Essa ação de agora é mais absurdo ainda porque estamos em pleno regime democrático e a Justiça não conseguiu apontar nenhum erro ou inverdade na reportagem sobre o assassinato de Lindomar Rigotto. Nosso objetivo com ela era mostrar que Lindomar, assassinado em circunstâncias duvidosas, era o principal implicado em dois outros crimes não esclarecidos – a morte de uma prostituta e o desfalque na CEEE, o maior já ocorrido no Sul e que está encoberto pelo segredo de Justiça. Há 14 anos foram apontados os corruptores e os corruptos e até agora ninguém foi punido. Só o está pagando o pato."
Voltar ou morrer
Na terça-feira (24/11) em que se divulga a edição nº 565 deste Observatório completam-se 116 dias de censura sobre o jornal O Estado de S.Paulo, impedido por decisão de um juiz amigo e camarada do senador José Sarney de publicar os dados oficiais da "Operação Boi Barrica", da Polícia Federal, que investigou seu filho, o empresário Fernando Sarney, flagrado em grampos telefônicos e conversas que induzem ao tráfico de influência no setor público. "Não tenho nada a ver com isso. É coisa do meu filho", diz o presidente do Senado Federal.
Na mesma terça-feira completam-se 112 dias que um perito da Justiça devassa, lá dentro da Redação, as contas do jornal para garantir a indenização de dona Julieta Rigotto, que se diz caluniada pela mera repetição de detalhes escabrosos na gestão do dinheiro público de uma estatal gaúcha, sob responsabilidade de seu finado filho, Lindomar, revelados numa CPI e acolhidos pelo Ministério Público. "Não tenho nada a ver com isso. É coisa da minha mãe", diz o ex-governador Germano Rigotto, virtual candidato do PMDB ao Senado em 2010.
Assim, sujeitos ocultos de ações legais de mães e filhos que ferem a liberdade de expressão e afrontam a verdade, o ex-governador Rigotto e o senador Sarney imaginam furtar-se de suas responsabilidades políticas e éticas. No caso do Estadão, rijo e forte aos 134 anos de vida, não se teme por sua saúde e sobrevivência, já que tem os meios para derrubar, cedo ou tarde, a restrição absurda que se abate sobre ele. Quanto ao , jornal nanico de Porto Alegre, o caso inspira cuidados e graves temores sobre suas reais chances de sobrevida. O único alento, até agora, é o fato de que o recurso do ao Supremo Tribunal Federal caiu nas mãos do implacável ministro Joaquim Barbosa, um juiz que dá esperança e fôlego até aos moribundos desenganados pela ciência e pela lei dos homens.
Elmar Bones revela seu desalento no título do editorial ("Voltaremos. Ou não?") da edição extra do que desembarca esta semana nas bancas com a foto de um mascarado de terno e gravata e uma manchete acabrunhante na primeira página: "O RIO GRANDE CORRUPTO. Escândalos sucessivos abalam o mito do `Estado mais politizado do Brasil´".
Bones adverte no editorial de tom sombrio:
"Pela primeira vez em quase 25 anos, não podemos garantir aos leitores que o jornal voltará a circular. (...) Um pequeno jornal condenado por `dano moral´ numa ação movida pela família de um político influente, ex-governador do Estado, num mercado em que as maiores agências de publicidade têm contas do governo. (...) Quanto perdemos no mercado publicitário? (...) Voltaremos! Ou não?"
Ninguém sabe ainda responder. Se o não voltar, não será mais um jornal a morrer, diante do silêncio inexplicável de alguns, da omissão de muitos, da complacência de todos nós. A morte iminente de um jornal como o – somado ao desalento de um jornalista como Elmar Bones – é um fundo golpe nas convicções de todos que acreditam nos fundamentos da democracia, da justiça, da verdade e de uma imprensa livre. A limpa folha corrida do jornal de Porto Alegre e a digna biografia de resistência de seu editor não merecem ser comparados com o prontuário de alguns dos homens públicos que hoje nos representam, julgam e governam.
Em qualquer país sério do mundo, o clamor da sociedade se levantaria já, agora, imediatamente, em defesa de um pequeno jornal, punido apenas por ser correto, preciso, exemplar e corajoso. A inacreditável saga de resistência de Elmar Bones, que precisa fazer agora na democracia o que antes fazia na ditadura, mostra que perdemos algo intangível, irremediável neste rito de passagem. Perdemos a vergonha na cara.
Precisamos decidir se morreremos juntos com o . Ou se voltaremos com ele. Agora. Já.

Marina, a Eco...capitalista....

Morena Marina... 

Gilvan Rocha - Correio da Cidadania

É saudável termos na disputa eleitoral uma figura do quilate de Marina Silva. Pessoa de luta, leal e convicta. Se bem que já se tenha dito ser a convicção mais grave do que a mentira, pois uma convicção pode representar uma intransigência no erro. Adolf Hitler e Mussolini tinham, sim, as suas convicções e por elas deram as suas próprias vidas.
 
As qualidades de Marina são insuficientes para a tarefa histórica que se faz necessária. Para ela, o problema reduz-se à ecologia. E vai mais longe com seu equívoco de imaginar e praticar uma política fundada em especialistas. Ora, o nosso problema crucial é salvar o universo da catástrofe para que o capitalismo nos arrasta e isso não será obra apenas de experts, trata-se de uma obra social. O socialismo e o ambientalismo exigem, como tudo, o conhecimento, mas sobretudo a sua democratização.
 
Quando Plínio de Arruda Sampaio, nosso provável candidato à presidência da República (caso prevaleça a lucidez política), considerou que Marina era apenas uma ecocapitalista ele o fez com justeza.
 
É preciso dizer que não somos ameaçados apenas pelo aquecimento global, essa é uma questão. Centenas de outras questões colocam-se como responsáveis pela ameaça à sobrevivência da humanidade. É que os trovões, os furacões, os tsunamis são mais agressivos e tocam mais fortemente os nossos olhos e ouvidos. Mas não está aí o centro da questão.
 
Houve uma redução política. Passou-se a considerar a direita tão somente àqueles que defendem o Estado mínimo, o livre mercado. Enquanto isso, os partidos dos grupos e movimentos de esquerda passaram a ser definidos como defensores do "Estado máximo", atropelando o conceito socialista de que Estado é um instrumento de dominação de uma classe sobre outra.
 
Não falam mais em classes sociais. Segundo eles, isso é coisa do passado, o Estado seria apenas o árbitro das questões sociais ou, sobretudo, o promotor da justiça e do bem estar social. Ora, quem assim pensa, por desinformação ou má-fé, não pode ser considerado de esquerda. E nós queremos candidatos realmente socialistas nas próximas eleições.
 
Gilvan Rocha é presidente do Centro de Atividades e Estudos Políticos – CAEP.
 

Um filme sobre a violência conjugal liberta a fala das palestinas

Le Monde

Benjamin Barthe

O diretor de gabinete do chefe da polícia de Tulkarem, no norte da Cisjordânia, ainda está pasmo. No fim do mês de outubro, no espaço de 48 horas, ele recebeu 14 telefonemas de jovens mulheres, vítimas de assédio sexual dentro de suas próprias famílias. "Em um ano, costumamos receber menos de dez confissões desse gênero", explica o tenente Emad Salameh. "Em uma sociedade tão tradicional quanto a nossa, as mulheres preferem se calar". O estopim dessa onda de pedidos de socorro foi um documentário de 15 minutos, intitulado "Sementes de romã douradas", exibido alguns dias antes pela Al-Fajer TV, a cadeia de televisão de Tulkarem, e dedicado ao tabu do incesto.
  • Ahmad Gharabli/AFP   
  • Cenário aterrador No fim do mês de outubro, no espaço de 48 horas, o gabinete do chefe da polícia de Tulkarem, no norte da Cisjordânia, recebeu
    14 telefonemas de jovens mulheres, vítimas de assédio sexual dentro de suas próprias famílias
    .
Produzido pela Shashat ("telas", em árabe), uma ONG palestina que promove o cinema feminino, esse curta-metragem faz parte de um projeto da União Europeia chamado "Masarat" ("itinerários") que pretende suscitar o debate sobre o lugar da mulher na sociedade.

Quatro filmes foram realizados dessa forma, e depois projetados durante o outono em dezenas de associações, centros culturais e universidades de territórios ocupados, e entre eles "Sementes de romã douradas", dirigido pela documentarista palestina Ghada Terawi. Essa bela e dolorosa obra intercala entrevistas de jovens mulheres, que contam seu calvário nas mãos de um pai libidinoso e de uma mãe que finge não ver, com a apresentação de um conto folclórico sob forma de desenho animado.

É a história de uma jovem chamada "Sementes de romã douradas", martirizada pelo xeque de seu vilarejo que ela surpreendeu enquanto devorava uma criança, mas que ela se recusa a denunciar. O filme termina com a súplica de uma das mulheres que depõe, com o rosto à sombra para que não seja reconhecida: "Não fiquem em silêncio. Falem... mesmo que seja ao vento... mas falem, falem..."

A mensagem foi recebida muito além de qualquer expectativa. Duas horas após a projeção do filme no anfiteatro de uma universidade da Cisjordânia, duas alunas entraram na sala do diretor e lhe falaram dos apalpamentos feitos pelo pai. Após a exibição do filme na Gamma TV, o canal local de Nablus, Abir Kilan, a diretora, recebeu cerca de cinco telefonemas, principalmente de mães de família. Mas foi em Tulkarem que o impacto foi mais forte. O celular do tenente Salameh, que havia participado do debate televisionado após a projeção do filme, e que comunicou seu número nessa ocasião, não para de tocar. "Entre os chamados, houve o de uma jovem violentada por seu irmão e seu tio ao mesmo tempo; e também o de uma mãe de família submetida às agressões de seu pai, porque seu marido está preso em Israel e ela teve de voltar a viver com seus pais", ele conta.

Nos escritórios da Shashat, em Ramallah, a diretora Alia Arasoughly continua estupefata diante da reação, quase catártica, gerada por esse filme de 15 minutos. "Costumamos abordar os tabus da sociedade, mas eu não imaginava que desencadearíamos um fenômeno assim", ela afirma. "É como se tivéssemos aberto a caixa de Pandora sem querer".

Entretanto, a realização do projeto foi trabalhosa. Duas universidades, a de Tulkarem e a de Hebron, imediatamente boicotaram o filme, alegando que a acusação de um "xeque" por uma das mulheres entrevistadas poderia entrar em conflito com o conservadorismo prevalente. Muitas outras organizações que inicialmente concordaram foram abaladas pelas críticas que acusavam a Shashat de "promover uma causa ocidental".

Foi necessário o apoio da prestigiosa universidade An-Najah de Nablus, bastião da ortodoxia palestina, para que o ciclo de projeções tivesse início. "Os relatos dos debates chegavam até nós, e então percebemos que na maioria deles uma mulher expunha um abuso contra ela ou contra uma amiga ou parente", diz Alia Arashougly. "É como um imenso tapa na cara. Então para quê serviram os milhões de euros investidos nesses colóquios e outras conferências sobre os direitos da mulher?"

Maha Abu Dayeh, diretora do principal centro de auxílio jurídico para as mulheres na Cisjordânia, reconhece a gravidade. Segundo ela, o caos econômico e social causado pela repressão da Segunda Intifada agravou o flagelo das violências domésticas, comum a todas sociedades patriarcais. "Um homem que é humilhado, privado de meios para prover as necessidades de sua família, traumatizado pelas torturas sofridas na prisão, pode se sentir tentado a reafirmar sua virilidade ridicularizada às custas de sua mulher e de seus filhos", ela diz.

Apesar do trabalho de sensibilização iniciado, em especial junto à polícia, ela reconhece que a lei do silêncio ainda amordaça as mulheres com muita frequência. "A unidade familiar é o cimento de nossa sociedade frente às investidas dos sionistas", afirma Maha Abu Dayeh. "Muitas famílias preferem abafar o escândalo, manter uma aparência de unidade, em vez de ir ao tribunal".

O que acontecerá com as quatorze rebeldes de Tulkarem? "Tenho medo de que elas tenham falado em vão, que ninguém se arrisque a realmente escutá-las", suspira Ghada Terawi, a cineasta. Por enquanto, somente duas delas ousaram passar pela porta da delegacia para prestar queixa oficialmente.

Tradução: Lana Lim