Guilherme Kolling
Marcelo G. Ribeiro/JC
''Brizola foi o primeiro homem público que fez uma lei de reforma agrária'', afirma Stédile.
Nome mais conhecido do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile avalia que o
Brasil tem uma democracia apenas formal, em que, apesar do direito ao
voto, a população não conquistou igualdade de oportunidades. Crítico das
diferenças sociais entre ricos e pobres, o líder do MST fala, nesta
entrevista ao Jornal do Comércio, sobre as raízes do ativismo
pela reforma agrária, das dificuldades do MST com a mudança no perfil da
agricultura brasileira e projeta o futuro do movimento. Vê avanços no
projeto dos governos petistas de Lula e Dilma Rousseff, que, para ele,
estão substituindo o neoliberalismo pelo “neodesenvolvimentismo”. E
aponta que falta envolvimento da sociedade e debate na imprensa e na
universidade sobre o modelo de desenvolvimento do Brasil.
Jornal do Comércio - Qual é a sua avaliação do atual momento econômico do Brasil?
João Pedro Stédile - O
governo Lula fez uma política macroeconômica de reconciliação de
classes. Garantiu os ganhos para aqueles 5% mais ricos e tirou da
miséria os 40 milhões que dependem do Bolsa Família. E freou o
neoliberalismo, recuperou o papel do Estado, do Bndes (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social), que financiava privatizações,
agora financia fábricas. O governo Dilma ganha as eleições no bojo da
continuidade. Porém, isso tem limite. Não dá mais para apenas distribuir
renda através do Bolsa Família. Tem que mudar o modelo. E tem que mexer
na taxa de juros.
JC - E essa proposta no atual cenário de aumento de inflação?
Stédile -
Esse projeto neodesenvolvimentista da Dilma saiu perdendo para os
setores conservadores do governo, que ganharam o primeiro round contra a
inflação ao fazer um corte de R$ 50 bilhões no orçamento e ao aumentar a
taxa de juros em 1 ponto percentual. O aumento da taxa Selic é uma
burrice. Quem vai bater palma são os bancos, o resto da sociedade vai
pagar para eles.
JC - Falta debate sobre o modelo de desenvolvimento?
Stédile -
A imprensa tem que ser mais criativa, propor o debate. Tem que discutir
problemas de fundo, o agrotóxico - ninguém escapa, vai pegar também
donos de jornal, de televisão, o câncer pega todo mundo. E levar esse
debate para a universidade, que está de costas. Levar para as igrejas.
Enfim, um mutirão de debate político e social. Estamos num momento de
letargia na sociedade. Nem nas campanhas eleitorais se discute projetos.
JC - Qual é a sua avaliação da democracia brasileira?
Stédile - É
uma democracia formal, em que o povo brasileiro ganhou o direito de
votar. Mas a população quer as mesmas oportunidades. Então, quando todo o
povo brasileiro tiver a oportunidade de entrar na universidade, uma
moradia digna, uma informação honesta, cultura, e não depender do Bolsa
Família, aí viramos uma sociedade democrata.
JC - Falta igualdade na democracia brasileira?
Stedile - Sem dúvida. A sociedade brasileira é a terceira mais desigual do mundo. É por isso que não consegue ser democrática.
JC - Como o senhor iniciou na luta pela reforma agrária?
Stédile - Na
Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em 1978, Nonoai (RS), uma área
indígena, tinha 700 posseiros pobres. E os índios se organizaram e
expulsaram os posseiros, que, da noite para o dia, estavam na beira da
estrada. Então, comecei a organizá-los, porque parte queria voltar para
as terras indígenas, e aí dava morte; outra parte queria ir para o Mato
Grosso, que era a proposta do governo. Nosso trabalho na militância
social era: quem quiser continuar trabalhando aqui no Rio Grande, tem
terra. E reivindicamos duas áreas públicas, remanescentes da reforma
agrária do (ex-governador Leonel) Brizola, que tinham sido griladas.
JC - O senhor já falou da importância do Brizola para a reforma agrária. Foi na gestão dele o embrião desse movimento?
Stédile - O
embrião foi a colonização europeia no Rio Grande. Deu uma base para a
democratização da propriedade, eles pegavam de 25 a 40 hectares, nem
menos, nem mais. Isso criou uma base de sociedade mais justa. Não é por
nada que Caxias do Sul tem um PIB mais elevado que o de toda a Metade
Sul. Na década de 1960, Brizola retomou esse embate e foi o primeiro
homem público que fez uma lei estadual de reforma agrária. Foram
ocupadas muitas fazendas, a mais importante delas foi a Sarandi, tinha
24 mil hectares.
JC - E a denominação Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra?
Stédile -
De 1978 até 1984, em todo o Brasil, a CPT começou a juntar as
lideranças desses movimentos e a fazer encontros. Quem deu a marca de
Movimento dos Sem Terra foi a imprensa - começou a se noticiarem
acampamentos dos “colonos sem-terra.” Quando fundamos o movimento
nacional, em janeiro de 1984, já havia essa marca. Incluímos uma questão
de classe: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
JC - Como está o MST hoje?
Stédile - O
MST sofreu percalços nos últimos 10 anos, houve mudanças na
agricultura. Até a década de 1980, o que dominava era o capitalismo
industrial. E o latifúndio improdutivo era uma barreira. Quando
ocupávamos o latifúndio improdutivo, a burguesia industrial nos apoiava,
porque éramos o progresso. A minha turma dividia terras, ia para o
banco comprar máquinas, geladeira... E, na essência, essa é a proposta
da reforma agrária clássica: dividir a área improdutiva para ela
desenvolver as forças produtivas. Por isso, na maioria dos países da
Europa, nos Estados Unidos e no Japão, quem tomou a iniciativa de fazer a
reforma agrária foi a burguesia industrial, não os camponeses.
JC - Quais foram as mudanças no Brasil?
Stédile - O
movimento nasceu na década de 1980 no contexto de reforma agrária
clássica. Por isso a burguesia industrial e a imprensa nos toleravam:
“Ah, está certo, tem que ocupar mesmo.” Com o neoliberalismo, houve uma
expansão das empresas transnacionais e do capital financeiro que veio
tomar conta da nossa agricultura, desde os anos 1990. Quem tem a
hegemonia da agricultura não é mais o capital industrial. Tanto que, na
década de 1970, a economia brasileira vendia 80 mil tratores por ano.
Quem comprava? O pequeno agricultor. Sabe qual foi a venda de tratores
no ano passado? 36 mil. Então, aumentou a potência do trator e diminuiu o
mercado. É um absurdo.
JC - Como isso afeta o MST?
Stédile -
Hoje, quando tem um latifúndio improdutivo, as grandes empresas
transnacionais também chegam para disputar com a gente. Quando tentamos
ocupar a Fazenda Ana Paula, 18 mil hectares improdutivos, acampamos e
fomos despejados. Aí, a Aracruz comprou e encheu de eucaliptos. Quantos
empregos gerou? Nenhum. Faz sete anos que tem eucalipto lá. Nenhuma
renda para o município. Mas a Aracruz vai ganhar muito dinheiro no dia
em que colher aquele eucalipto. Então, agora o MST enfrenta barreiras...
Mudaram os inimigos de classe.
JC - E encolheu o MST?Stedile -
Não, o movimento até que aumentou, mas a luta ficou mais difícil. Para
desapropriar uma área ficou mais difícil, porque a força desses
capitalistas pressiona para não ter desapropriação. Querem empurrar os
pobres do campo para a cidade.
JC - Como o senhor projeta o futuro do movimento, com a presidente Dilma?
Stedile -
As vitórias do governo Lula (PT) e Dilma colocaram uma barreira ao
neoliberalismo. Há uma tentativa de reconstruir o modelo de
desenvolvimento, com lugar para mercado interno, distribuição de renda e
indústria nacional. Mas isso ainda é uma vontade política. No nível
macro, está havendo mudanças de rumo: não é mais o neoliberalismo, agora
é o neodesenvolvimentismo. Na agricultura, estamos iniciando esse
grande embate entre o modelo do agronegócio e o da agricultura familiar.
Nossa esperança é que nos próximos dez anos a sociedade perceba que o
agronegócio é inviável.
JC - Por quê?
Stédile -
Economicamente porque os únicos que ganham são as transnacionais. Pode
dizer: “o Rio Grande produz 10 milhões de toneladas de soja”. E quem
fica com o lucro se a soja sai daqui em grão? Voltamos a ser um simples
exportador de grãos. Temos que exportar é o óleo de soja. A longo prazo,
esse modelo de monocultura, que só beneficia a exportação, é inviável.
Ou seja, não agrega valor e não distribui renda, concentra. E expulsa a
população do campo. E, terceiro, o agronegócio tem uma contradição com o
meio ambiente: só produz com veneno, que mata o solo, os vegetais e o
ser humano pelos alimentos contaminados. Então, é uma questão social, e
econômica e ambiental.
JC - Se o governo federal promover o assentamento reivindicado para as famílias sem terra, como fica o MST?
Stédile -
Vamos continuar lutando contra o latifúndio. Mas, ao mesmo tempo, temos
que desenvolver, nas áreas de assentamento, programas que combinem com
esse novo modelo: ter agroindústria, laticínio, reflorestar áreas
degradadas, produzir alimentos saudáveis... Esse novo caminho que vamos
trilhar é seguir a luta contra o latifúndio, implantando um novo modelo
nos assentamentos.
JC - Isso depende mais do governo ou da sociedade?
Stedile -
Depende dos pobres do campo lutarem; do governo ter essa vontade
política de deixar o agronegócio para o mercado, as políticas públicas
de agricultura têm que estar voltadas para o pequeno agricultor; e
depende de a sociedade perceber que a luta pela reforma agrária não pode
ser criminalizada, porque é o progresso. É para garantir emprego, renda
e comida farta e saudável. Tudo que o agronegócio não consegue.
JC - Como o senhor avalia o papel da imprensa nesse processo?
Stedile -
Os quatro grandes grupos que controlam a imprensa no Brasil - Rede
Globo, Estadão, Folha de S. Paulo e o grupo Abril - estão a mercê dos
interesses do grande capital, das multinacionais e do capital
financeiro. Para eles, não só o MST mas qualquer movimento social que
lute contra esse modelo se transforma em inimigo. Quando os operários
voltarem a lutar como fizeram em Jirau (usina que está em construção no
Rio Madeira, em Rondônia), a hora que os sem-teto voltarem a lutar, a
imprensa vai chamá-los de vândalos. Ninguém foi a Jirau pesquisar como
os operários estavam vivendo. Mas quando colocaram fogo, a primeira
coisa que fizeram foi chamá-los de vândalos. É um caso exemplar de como a
imprensa criminaliza e tenta derrotar ideologicamente qualquer luta
social.
JC - Mas tem havido perda de apoio de setores mais
urbanos da sociedade, especialmente a partir de episódios de violência
em ações do MST.
Stedile - O movimento é contra qualquer tipo de
violência, sobretudo, contra pessoas. Mas na mobilização de massas
sempre há fatores incontroláveis.
JC - Qual é o seu conceito de burguesia?
Stedile - A
burguesia brasileira é aquele 1%, com as 5 mil famílias que controlam
48% do PIB brasileiro e que são subordinadas ao capital internacional.
São as 100 maiores empresas que tiveram lucro de R$ 129 bilhões para
dividir entre eles.
Perfil
João Pedro
Stédile, 57 anos, nasceu em Lagoa Vermelha (RS). Passou a infância e a
adolescência no Interior, com a família, que produzia uva, trigo e
produtos de subsistência. Aos 17 anos, veio para Porto Alegre estudar.
Cursou Economia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(Pucrs) e formou-se em 1975. Estagiou e depois fez concurso para a
Secretaria da Agricultura. Atuou na Comissão Estadual de Planejamento
Agrícola (Cepa), estimulando o cooperativismo e viajando por todo o
Estado.
Ficou na Secretaria de Agricultura até 1984. Paralelamente,
atuava junto aos sindicatos dos produtores de uva da região de
Veranópolis, Bento Gonçalves e Caxias do Sul, a quem assessorava em um
plano de cálculo do custo de produção. Sua militância foi influenciada
pela Igreja, através Comissão Pastoral da Terra (CPT), onde atuou e
através da qual se envolveu na questão da terra.
Com a
redemocratização, nos anos 1980, diversos grupos, em todo o Brasil, se
reuniram e formaram em janeiro de 1984 o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), que luta pela reforma agrária e do qual Stédile é
considerado um dos fundadores - embora não goste disso - e integra até
hoje a coordenação nacional. Ele está radicado em São Paulo.