Em
poucos anos, a rede de televisão Al Jazeera alterou profundamente a
paisagem midiática nos países árabes e criou um espaço público
transnacional, transformando-se num protagonista decisivo das mudanças
drásticas que vêm abalando a região desde o final do ano passado
|
por Mohammed El Oifi no LeMondeDiplomatique-Brasil |
No dia 2 de março, em discurso perante os membros da comissão das
relações exteriores do Senado estadunidense, Hillary Clinton pronunciou
as palavras que o emir do Qatar e os dirigentes da Al Jazeera esperavam
desde 2001. Os Estados Unidos, explicou a secretária de Estado, “estão
perdendo a guerra da informação” no mundo por causa dos grandes canais
de TV privados norte-americanos “que difundem milhões de spots publicitários e debates entre especialistas”, ao passo que “a audiência da Al Jazeera nos Estados Unidos vem crescendo porque ela oferece verdadeiras informações”.
E Hillary acrescentou, dirigindo-se precisamente aos senadores: “Gostem
disso ou não, [a Al Jazeera] é realmente poderosa”.Ela está no processo
de “mudar as mentes e os comportamentos”.1
Ainda que motivada por interesses específicos – Hillary Clinton estava
defendendo o orçamento de seu ministério –, tal reconhecimento do papel e
do impacto internacional da Al Jazeera adquire uma ressonância
particular dentro do contexto das transformações atuais do mundo árabe.
No plano regional, o canal impôs seu ritmo e suas regras de
funcionamento no contexto midiático, marginalizando dessa forma alguns
de seus concorrentes de língua árabe e perturbando o jogo dos outros.
Nesse sentido, o desafio lançado ao vivo a seus empregadores por Hafez
Al-Mirazi, o apresentador-estrela do canal saudita Al-Arabiya, o
principal concorrente da Al Jazeera,2 reveste-se de um
significado de peso. Ao comentar a queda do regime de Hosni Mubarak, o
jornalista egípcio lamentou que o veículo para o qual ele trabalhava não
se atrevia a “dizer uma palavra sequer a respeito do rei Abdala e do
regime saudita”. Ele concluiu seu discurso com um ultimato: “Se nós não
podemos expressar nossa opinião, é melhor parar com tudo. No próximo
programa, faremos uma experiência: falaremos a respeito do impacto[da
revolução no Egito]sobre a Arábia Saudita. Se der certo, a Al-Arabiya é
mesmo um canal independente; se não, eu agradeço e me despeço de todos
vocês”.3 Aquela foi sua última aparição no canal controlado
pelos interesses sauditas. Sua revolta revela o impasse no qual
desembocou a estratégia midiática de Riad e a incapacidade dos
responsáveis se adaptarem às novas realidades políticas. Mas esse
episódio também anuncia o retorno do Egito, emancipado da tutela
paralisante do presidente Hosni Mubarak, ao jogo midiático árabe, o que
constituirá provavelmente o principal evento na região ao longo dos
próximos anos.
Desde sua fundação, em novembro de 1996, o canal de informação 24 horas
Al Jazeera revolucionou o sistema midiático regional, transformando sua
estrutura e suas regras de funcionamento e questionando o equilíbrio de
forças políticas que o sustenta.4 Não faltam aqueles que lhe
atribuem um papel mais importante que o das redes sociais no processo
que desencadeou as revoltas que abalam o mundo árabe. Assim, segundo
Julian Assange, o cofundador do WikiLeaks, as redes Twitter e Facebook
“exerceram de fato um papel, mas este não é comparável àquele da Al
Jazeera”.5
FIM DO MONOPÓLIO SAUDITA
Os veículos de comunicação árabes singularizam-se pela existência –
tornada possível por uma língua comum – de uma esfera compartilhada que
transcende os Estados e os públicos nacionais, e cuja gênese remonta ao
final do século XIX. As rivalidades interárabes passaram pelo controle
desse espaço público, um campo no qual os países do Golfo, entre outros a
Arábia Saudita e o Qatar, tomaram a iniciativa. Após a saída de cena do
Egito, em decorrência da morte em 1970 do presidente Gamal Abdel
Nasser, e do Iraque, em consequência da invasão do Kuait em 1990, a
Arábia Saudita assumiu o controle da maior parte dos veículos de
comunicação pan-árabes. Em meados dos anos 1990, o lançamento da Al
Jazeera pelo emir do Qatar, o xeque Hamad bin Khalifa al-Thani,
caracterizou o fim do monopólio saudita.
Em função da escolha do local para estabelecê-la, das modalidades de
recrutamento de seus jornalistas e de suas opções ideológicas, a Al
Jazeera introduziu uma tripla ruptura em relação à fórmula saudita. Até
então, dominava a ideia segundo a qual apenas os veículos árabes
instalados no exterior podiam gozar de uma liberdade relativa. A
emigração de uma parte da imprensa libanesa rumo à Europa após o advento
da guerra civil, em 1975, havia reforçado essa tese. O império
midiático saudita estava radicado em Londres e na Itália, e tirava
proveito da presença maciça de jornalistas árabes, sobretudo libaneses,
que se tornaram os aliados – alguns dirão os mercenários – dos emires
sauditas. A Al Jazeera pôs em xeque esse pressuposto, demonstrando que
um veículo de comunicação pan-árabe instalado num país da região podia
beneficiar-se de uma grande liberdade. Progressivamente, os veículos
sauditas começaram a retornar para a região, entre outros para os
Emirados Árabes Unidos – mas não para a Arábia Saudita.
Para motivar a simpatia e a identificação do público, os criadores da
Al Jazeera quiseram que o conjunto dos funcionários do canal fosse
representativo das diversas nações árabes; com isso, estava encerrada a
era de dominação dos jornalistas libaneses e das estruturas sauditas.
De modo previsível, as dissensões no âmbito das equipes jornalísticas
são frequentes, conforme demonstra a demissão coletiva de cinco
apresentadoras do canal ocorrida no dia 25 de maio de 2010. Alguns
veículos de comunicação árabes repercutidos pela imprensa internacional
enfatizaram a existência de práticas de assédio moral, além da vontade
do canal de impor um código de vestimenta rigoroso.6 Segundo
explica uma das jornalistas demitidas, Joumana Namnour, as verdadeiras
razões dessa revolta nada têm a ver com o modo de se vestir, sendo de
ordem profissional,7 pois as apresentadoras achavam
lastimável o pouco poder que lhes era dado. Assim como, por exemplo,
nenhum dos numerosos programas políticos do canal é atribuído a uma
mulher.
Um exame minucioso da identidade ideológica da Al Jazeera e de sua
linha editorial revela a prevalência de um equilíbrio sutil entre três
tendências: pan-árabe, islamizante e liberal.
O sucesso da Al Jazeera, o interesse e até mesmo a paixão que ela
suscita nos públicos de língua árabe podem ser explicados não apenas
pela maneira inovadora com a qual ela aborda a atualidade, mas também
pela liberalidade em seus procedimentos. Ao dar a palavra à oposição, em
cada país árabe, para comentar as verdades oficiais, a Al Jazeera
oferece aos telespectadores verdadeiros debates contraditórios. A
diversidade dos participantes, tanto do ponto de vista de sua
nacionalidade, de sua sensibilidade ideológica e política quanto de seu
local de residência, permitiu a circulação das ideias e dos pontos de
vista, promovendo a abolição das fronteiras nacionais e driblando todas
as censuras. Assim, o canal participou de maneira decisiva da formação
de um espaço público árabe transnacional.8 Estruturado por
canais de TV por satélite e por jornais pan-árabes, aos quais se
acrescentam a internet, os blogs e as redes sociais, esse espaço
tornou-se um centro de gestação onde se formam opiniões e preferências
políticas a respeito de todas as questões que agitam a região.
Esse pluralismo, decorrente da multiplicação dos meios de informação
transfronteiriços criados por Estados concorrentes, quer pela Arábia
Saudita (Al-Arabiya), pelos Estados Unidos (Al-Hurra) ou pelo Irã
(Al-Alam), resultou numa configuração político-midiática inédita na qual
se sobrepõem uma esfera midiática pluralista relativamente livre e
regimes políticos nacionais autoritários. Exacerbada pela audácia e
influência da Al Jazeera, essa contradição exerceu uma pressão constante
sobre poderes desestabilizados por essa circulação da informação. A
maturação dos processos revolucionários no mundo árabe deve muito a essa
tensão entre a ordem política e a ordem midiática.
Em razão do caráter artificial e até mesmo da inexistência de
estruturas partidárias e sindicais suscetíveis a organizar o debate
público, a Al Jazeera deixou progressivamente de ser um canal de TV
ordinário. Ao longo dos últimos dez anos, foi na sua tela que foram
debatidas todas as grandes questões que interessam aos povos da região.
Ela passou a ser objeto de disputa em todos os conflitos, como, por
exemplo, no Afeganistão e na Palestina.
Daqui para frente, quer ela emane do interior,9 quer do exterior do mundo árabe,10
a crítica das orientações do canal é parte integrante do jogo político
no Oriente Médio. Na maioria dos casos, ela objetiva pôr na defensiva o
governo do Qatar, pressupondo que a linha editorial da TV nada mais é do
que a tradução midiática da diplomacia do Estado do Qatar. No entanto,
tudo indica – nem que seja por sua cobertura das revoluções desses
últimos meses – que a Al Jazeera tornou-se um fenômeno árabe, um espelho
da evolução regional que extrapola muito amplamente a vontade de Doha.
TRATAMENTO MILITANTE DAS REVOLUÇÕES
Embora a Al Jazeera seja popular, ela não deixa de ser um canal
controverso por razões que, aliás, não raro revelam ser contraditórias.
Alguns deploram sua abertura para os israelenses (ela foi o primeiro
canal por satélite a entrevistar dirigentes do Estado hebreu), outros,
suas “tendências islâmicas”. Seu “antiamericanismo” é contrabalançado
pela presença no Qatar do comando da 5ª Frota estadunidense, o que faz
do emirado uma das ferramentas de domínio que os Estados Unidos exercem
sobre o Oriente Médio.
Sua cobertura militante das revoluções árabes, sobretudo na Líbia e no
Iêmen, e seu apoio à intervenção militar da Otan foram denunciados como
sendo uma ingerência nos assuntos internos dos países árabes. A ausência
da oposição saudita ou qatariana em sua programação, sua timidez ao
abordar os eventos ocorridos no Bahrein,11 além de sua
crítica incipiente da intervenção das forças sauditas e aliadas nesse
reino são interpretadas como uma vontade de preservar o status quo
no Golfo. Mostra da sensibilidade da Al Jazeera às evoluções regionais
foi anúncio, no final de abril, da demissão do responsável pelo
escritório do canal em Beiruth, Ghassan Ben Jeddou, por divergências com
relação à cobertura da Líbia e da Síria, que ele julgava muito parcial.
A tese dos detratores que apresentavam o canal como uma mera “oficina
islâmica” foi abalada por sua abordagem favorável das revoltas nos
países na África do Norte e no Oriente Médio, nas quais os islâmicos são
quase invisíveis. Além disso, o lançamento da Al Jazeera em inglês, em
2006, contribuiu para desmentir a imagem construída pelas traduções
parciais e os trechos fora de contexto difundidos pelo Instituto de
Pesquisa sobre a Mídia do Oriente Médio (MEMRI – Middle East Media
Research Institute), com o objetivo de apresentar a Al Jazeera como um
veículo de comunicação antiocidental e até mesmo antissemita.12
Ilustração: Scott Peterson / Getty Images
1 Cf. “Hillary Clinton, ‘Viewership of Al Jazeera is going up in the United States because it’s real news’”, YouTube.com, 2 de março de 2011.
2 Mohammed El Oifi, “Le face-à-face Al-Arabiya/Al-Jazeera: un duel diplomatico-médiatique”, Revue Moyen-Orient, n.6, Paris, junho de 2010.
3 Programa Studio Al Qahira, Al Arabiya, 12 de fevereiro de 2011.
4 Yves Gonzalez-Quijano e Tourya Guaaybess (dir.), Les Arabes parlent aux Arabes: La révolution de l’information dans le monde arabe, Actes Sud, Arles,2009.
5 Le Monde, 11 de março de 2011.
6 Ver artigo do jornal saudita Al Hayat publicado em 30 de maio de 2010, http://international.daralhayat.com/internationalarticle/146817.
7 Ver http://wn.com/Talk_of_the_Town__Joumana_Nammour (consultado em 21 de abril de 2011).
8 Mohammed El Oifi, “Influence without power: Al Jazeera and the Arab public sphere”. In: Mohamed Zayani, The Al Jazeera Phenomenon Critical Perspectives on New Arab Media, Pluto Press, Londres,2005.
9 Mamoun Fandy, (Un)Civil War of Words: Media and Politics in the Arab World, Praeger Security International, 2007.
10 Zvi Mazel, “Al Jazeera et le Qatar: le sombre empire des Frères musulmans?”, Controverse, www.controverses.fr Paris, n.13, março de 2010.
11 Ler “Al Jazeera a perdu sa fièvre révolutionnaire au Bahreïn”, 13 de abril de 2011.
12 Ler “Désinformation à l’israélienne”, Le Monde diplomatique, setembro de 2005.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quarta-feira, 22 de junho de 2011
O efeito Al Jazeera
Fim de pesadelo: Battisti agora é imigrante legal no Brasil
Depois da vitória por 6 a 3 no Supremo Tribunal Federal, uma
mais categórica ainda no Conselho Nacional de Imigração: por 14 a 2, o
colegiado, vinculado ao Ministério do Trabalho, concedeu nesta
quarta-feira (22) autorização de permanência para o escritor italiano
Cesare Battisti, que poderá residir e trabalhar no Brasil, como
imigrante legal, por tempo indeterminado.
Por Celso Lungaretti, em seu blog
Em termos jurídicos, é o ponto final
dos apuros de Battisti, depois de debater-se durante sete anos num
pesadelo kafkiano. Ele deixara as fileiras da ultraesquerda italiana em
1979 e reconstruíra a vida no exílio, acabando por tornar-se um
respeitado novelista na França, ao abrigo da Lei Mitterrand.
Em 2004, contudo, a Itália o escolheu como alvo de uma cruzada vingativa, aproveitando a histeria que grassava nos países do Primeiro Mundo desde o atentado ao WTC, insuflada ad nauseam pela indústria cultural.
Para os estadunidenses, foi uma chance de, sob falsos pretextos, invadirem países soberanos e submetê-los à sua vontade. Os italianos, mais modestos, contentaram-se em desencadear uma perseguição tão espetaculosa quanto inútil, impingindo a lorota de que um personagem secundário dos anos de chumbo seria terrível terrorista – tal qual, séculos atrás, queimavam mulheres fogosas como bruxas e judeus como infiéis.
Depois da bilionária campanha para fazer com que a França desonrasse o compromisso solene que assumira com os perseguidos políticos italianos, os linchadores peninsulares se transferiram com armas e bagagens para o Brasil, onde, ao lado dos quinta-colunas tupiniquins que lhes serviram de escudeiros, acabam de sofrer uma acachapante derrota.
A qual, vale repetir, é definitiva: as escaramuças legais anunciadas pela Itália não têm a mais ínfima possibilidade de alterarem o resultado do jogo após o apito final do árbitro. Servem apenas para alimentar, entre os direitistas e os videotas de lá, uma ilusão que talvez ajude a salvar o premiê Silvio Berlusconi da degola. Espero que não.
Tradição de família
Neto, filho e irmão mais novo de comunistas, engajou-se naturalmente na Juventude do PCI e, aos 13 anos, já participava dos protestos estudantis que marcaram o 1968 europeu.
Depois, no cenário radicalizado do pós-1968, o ardor da idade, também naturalmente, o foi conduzindo cada vez mais para a esquerda: do PCI à Lotta Continua, desta à Autonomia Operária, até desembocar no Proletários Armados para o Comunismo, pequena organização regional com cerca de 60 integrantes.
Participou de assaltos para sustentar o movimento – as expropriações de capitalistas – e não nega. Mas, assustado com a escalada de violência desatinada – cujo ápice foi a execução do sequestrado premiê Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas – desligou-se em 1978, logo após o primeiro assassinato reivindicado por um núcleo dos PAC, do qual só tomou conhecimento a posteriori, recebendo-o com indignação.
Já era um mero foragido sem partido quando os PAC vitimaram outras três pessoas, no ano seguinte.
Detido, foi condenado em 1981 pelo que realmente fez (participação em grupo armado, assalto e receptação de armas), mas a uma pena rigorosa demais (12 anos), característica dos anos de chumbo na Itália, quando se admitia até a permanência de um suspeito em prisão preventiva por mais de dez anos.
Resgatado em outubro de 1981, por uma operação comandada pelo líder dos PAC, Pietro Mutti, abandonou a Itália, a luta armada e a própria participação política, ocultando-se na França, depois no México, onde iniciou sua carreira literária.
Aceitando a oferta do presidente François Mitterrand – abrigo permanente para os perseguidos políticos italianos que se comprometessem a não desenvolver atividades revolucionárias em solo francês –, levava existência pacata e laboriosa há 14 anos, quando, em 2004, a Itália o escolheu como alvo.
Tinha sido figura obscura e irrelevante nos anos de chumbo, quando cerca de 600 grupos e grupúsculos de ultraesquerda se constituíram na Itália. O fenômeno ganhou maiores proporções porque muitos militantes sinceros de esquerda foram levados ao desespero pela traição histórica do PCI, que tornou a revolução inviável num horizonte visível ao mancomunar-se com a reacionária, corrupta e mafiosa Democracia Cristã.
Destes 600, um terço esteve envolvido em ações armadas.
Por quê eu?
Nem os PAC tinham posição de destaque na ultraesquerda, nem Battisti era personagem destacado dos PAC. Foi apenas a válvula de escape de que o delator premiado Pietro Mutti e outros arrependidos, em depoimentos escandalosamente orquestrados, serviram-se para obter reduções de pena: estava a salvo no exterior, então poderiam descarregar sobre ele, sem dano, as próprias culpas.
Num tribunal que só faltou ser presidido por Tomás de Torquemada, Battisti acabou sendo novamente julgado na Itália e condenado à prisão perpétua em 1987.
A sentença se lastreou unicamente no depoimento desses prisioneiros que aspiravam a obter favores da Justiça italiana – cujas grotescas mentiras se evidenciaram, p. ex., na atribuição da autoria direta de dois homicídios quase simultâneos a Battisti, tendo a acusação de ser reescrita quando se percebeu a impossibilidade material de ele estar de corpo presente em ambas as cidades.
Depois, provou-se de forma cabal que Battisti não só fora representado por advogados hostis (pois defendiam os arrependidos cujos interesses conflitavam com os dele), como também falsários (pois forjaram as procurações que os davam como seus patronos).
Battisti escapara das garras da Justiça italiana, então valia tudo contra ele. Mas, ainda, como vilão menor.
Passou a ser encarado como um vilão maior quando alcançou o sucesso literário. Tinha muito a revelar sobre o macartismo à italiana dos anos de chumbo, tantas vezes denunciado pela Anistia Internacional e outros defensores dos direitos humanos.
Foi aí, em 2004, que a Itália direcionou suas baterias contra Battisti, investindo pesado em persuasões e pressões para que a França esquecesse a palavra empenhada por um presidente de verdade, François Mitterrand.
Ao mesmo tempo que concedia a extradição antes negada, a França, por meio do seu serviço secreto, facilitou a evasão de Battisti. A habitual duplicidade francesa.
Vítima de dois sequestros no Brasil
E o pesadelo se transferiu para o Brasil, onde o escritor teve a infelicidade de encontrar, no STF, dois inquisidores dispostos a tudo para entregarem o troféu a Silvio Berlusconi.
Preso em março de 2007, seu caso deveria ter sido encerrado em janeiro de 2009, quando o então ministro da Justiça Tarso Genro lhe concedeu refúgio.
Mas, ao contrário do que estabelecia a Lei do Refúgio, bem como a jurisprudência consolidada em episódios anteriores, o relator Cezar Peluso manteve Battisti sequestrado, na esperança de convencer o STF a revogar (na prática) a Lei e jogar no lixo a jurisprudência.
Apostando numa hipótese coerente com suas convicções pessoais (conservadoras, medievalistas e reacionárias), Peluso manteve encarcerado quem deveria libertar.
Ele e o então presidente Gilmar Mendes atraíram mais três ministros para sua aventura que, em última análise, visava erigir o Supremo em alternativa ao Poder Executivo, esvaziando-o ao assumir suas prerrogativas inerentes. A criminalização dos movimentos sociais também fazia, obviamente, parte do pacote.
Foram juridicamente aberrantes as duas primeiras votações, em que o STF, por 5x4, derrubou uma decisão legítima do ministro da Justiça e autorizou a extradição de um condenado por delitos políticos, ao arrepio das leis e tradições brasileiras.
Como na nossa ditadura militar, delitos políticos foram falciosamente metamorfoseados em crimes comuns – a despeito da sentença italiana, dezenas de vezes, imputar a Battisti a subversão contra o Estado italiano e enquadrá-lo numa lei instituída exatamente para combater tal subversão!
A blitzkrieg direitista foi detida na terceira votação, quando Peluso e Mendes tentavam automatizar a extradição, cassando também uma prerrogativa do presidente da República, condutor das relações internacionais do Brasil.
Contra este acinte à Constituição insurgiu-se um ministro legalista, Carlos Ayres Britto. Também por 5x4, ficou definido que a decisão final continuava sendo do presidente da República, como sempre foi.
Sabendo que Luiz Inácio Lula da Silva não cederia às afrontosas pressões italianas, o premiê Silvio Berlusconi já se conformava com a derrota em fevereiro de 2010, pedindo apenas que a pílula fosse dourada para não o deixar muito mal com o eleitorado do seu país.
Mesmo assim, quando Lula encerrou de vez o caso, Peluso apostou numa nova tentativa de virada de mesa. Ao invés de libertar Battisti no próprio dia 31 de dezembro de 2010, que era o que lhe restava fazer segundo o ministro Marco Aurélio de Mello e o grande jurista Dalmo de Abreu Dallari, manteve-o, ainda, sequestrado.
E o sequestro, desta vez, saltou aos olhos e clamou aos céus. Só não viu quem não quis.
O próprio STF acabou decidindo, por dois terços dos votos (só Ellen Gracie embarcou na canoa furada de Peluso e Mendes), que não havia mais motivo nenhum para o processo prosseguir nem para Battisti ser mantido preso.
Agora, com sua situação de imigrante legal regularizada, Battisti finalmente encontrará a paz que veio buscar entre nós, acreditando que fôssemos todos brasileiros cordiais. Para sorte dele e em benefício da imagem do país junto a quem não usa antolhos, alguns ainda somos...
Fonte: Blog Náufragos da Utopia
Em 2004, contudo, a Itália o escolheu como alvo de uma cruzada vingativa, aproveitando a histeria que grassava nos países do Primeiro Mundo desde o atentado ao WTC, insuflada ad nauseam pela indústria cultural.
Para os estadunidenses, foi uma chance de, sob falsos pretextos, invadirem países soberanos e submetê-los à sua vontade. Os italianos, mais modestos, contentaram-se em desencadear uma perseguição tão espetaculosa quanto inútil, impingindo a lorota de que um personagem secundário dos anos de chumbo seria terrível terrorista – tal qual, séculos atrás, queimavam mulheres fogosas como bruxas e judeus como infiéis.
Depois da bilionária campanha para fazer com que a França desonrasse o compromisso solene que assumira com os perseguidos políticos italianos, os linchadores peninsulares se transferiram com armas e bagagens para o Brasil, onde, ao lado dos quinta-colunas tupiniquins que lhes serviram de escudeiros, acabam de sofrer uma acachapante derrota.
A qual, vale repetir, é definitiva: as escaramuças legais anunciadas pela Itália não têm a mais ínfima possibilidade de alterarem o resultado do jogo após o apito final do árbitro. Servem apenas para alimentar, entre os direitistas e os videotas de lá, uma ilusão que talvez ajude a salvar o premiê Silvio Berlusconi da degola. Espero que não.
Tradição de família
Neto, filho e irmão mais novo de comunistas, engajou-se naturalmente na Juventude do PCI e, aos 13 anos, já participava dos protestos estudantis que marcaram o 1968 europeu.
Depois, no cenário radicalizado do pós-1968, o ardor da idade, também naturalmente, o foi conduzindo cada vez mais para a esquerda: do PCI à Lotta Continua, desta à Autonomia Operária, até desembocar no Proletários Armados para o Comunismo, pequena organização regional com cerca de 60 integrantes.
Participou de assaltos para sustentar o movimento – as expropriações de capitalistas – e não nega. Mas, assustado com a escalada de violência desatinada – cujo ápice foi a execução do sequestrado premiê Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas – desligou-se em 1978, logo após o primeiro assassinato reivindicado por um núcleo dos PAC, do qual só tomou conhecimento a posteriori, recebendo-o com indignação.
Já era um mero foragido sem partido quando os PAC vitimaram outras três pessoas, no ano seguinte.
Detido, foi condenado em 1981 pelo que realmente fez (participação em grupo armado, assalto e receptação de armas), mas a uma pena rigorosa demais (12 anos), característica dos anos de chumbo na Itália, quando se admitia até a permanência de um suspeito em prisão preventiva por mais de dez anos.
Resgatado em outubro de 1981, por uma operação comandada pelo líder dos PAC, Pietro Mutti, abandonou a Itália, a luta armada e a própria participação política, ocultando-se na França, depois no México, onde iniciou sua carreira literária.
Aceitando a oferta do presidente François Mitterrand – abrigo permanente para os perseguidos políticos italianos que se comprometessem a não desenvolver atividades revolucionárias em solo francês –, levava existência pacata e laboriosa há 14 anos, quando, em 2004, a Itália o escolheu como alvo.
Tinha sido figura obscura e irrelevante nos anos de chumbo, quando cerca de 600 grupos e grupúsculos de ultraesquerda se constituíram na Itália. O fenômeno ganhou maiores proporções porque muitos militantes sinceros de esquerda foram levados ao desespero pela traição histórica do PCI, que tornou a revolução inviável num horizonte visível ao mancomunar-se com a reacionária, corrupta e mafiosa Democracia Cristã.
Destes 600, um terço esteve envolvido em ações armadas.
Por quê eu?
Nem os PAC tinham posição de destaque na ultraesquerda, nem Battisti era personagem destacado dos PAC. Foi apenas a válvula de escape de que o delator premiado Pietro Mutti e outros arrependidos, em depoimentos escandalosamente orquestrados, serviram-se para obter reduções de pena: estava a salvo no exterior, então poderiam descarregar sobre ele, sem dano, as próprias culpas.
Num tribunal que só faltou ser presidido por Tomás de Torquemada, Battisti acabou sendo novamente julgado na Itália e condenado à prisão perpétua em 1987.
A sentença se lastreou unicamente no depoimento desses prisioneiros que aspiravam a obter favores da Justiça italiana – cujas grotescas mentiras se evidenciaram, p. ex., na atribuição da autoria direta de dois homicídios quase simultâneos a Battisti, tendo a acusação de ser reescrita quando se percebeu a impossibilidade material de ele estar de corpo presente em ambas as cidades.
Depois, provou-se de forma cabal que Battisti não só fora representado por advogados hostis (pois defendiam os arrependidos cujos interesses conflitavam com os dele), como também falsários (pois forjaram as procurações que os davam como seus patronos).
Battisti escapara das garras da Justiça italiana, então valia tudo contra ele. Mas, ainda, como vilão menor.
Passou a ser encarado como um vilão maior quando alcançou o sucesso literário. Tinha muito a revelar sobre o macartismo à italiana dos anos de chumbo, tantas vezes denunciado pela Anistia Internacional e outros defensores dos direitos humanos.
Foi aí, em 2004, que a Itália direcionou suas baterias contra Battisti, investindo pesado em persuasões e pressões para que a França esquecesse a palavra empenhada por um presidente de verdade, François Mitterrand.
Ao mesmo tempo que concedia a extradição antes negada, a França, por meio do seu serviço secreto, facilitou a evasão de Battisti. A habitual duplicidade francesa.
Vítima de dois sequestros no Brasil
E o pesadelo se transferiu para o Brasil, onde o escritor teve a infelicidade de encontrar, no STF, dois inquisidores dispostos a tudo para entregarem o troféu a Silvio Berlusconi.
Preso em março de 2007, seu caso deveria ter sido encerrado em janeiro de 2009, quando o então ministro da Justiça Tarso Genro lhe concedeu refúgio.
Mas, ao contrário do que estabelecia a Lei do Refúgio, bem como a jurisprudência consolidada em episódios anteriores, o relator Cezar Peluso manteve Battisti sequestrado, na esperança de convencer o STF a revogar (na prática) a Lei e jogar no lixo a jurisprudência.
Apostando numa hipótese coerente com suas convicções pessoais (conservadoras, medievalistas e reacionárias), Peluso manteve encarcerado quem deveria libertar.
Ele e o então presidente Gilmar Mendes atraíram mais três ministros para sua aventura que, em última análise, visava erigir o Supremo em alternativa ao Poder Executivo, esvaziando-o ao assumir suas prerrogativas inerentes. A criminalização dos movimentos sociais também fazia, obviamente, parte do pacote.
Foram juridicamente aberrantes as duas primeiras votações, em que o STF, por 5x4, derrubou uma decisão legítima do ministro da Justiça e autorizou a extradição de um condenado por delitos políticos, ao arrepio das leis e tradições brasileiras.
Como na nossa ditadura militar, delitos políticos foram falciosamente metamorfoseados em crimes comuns – a despeito da sentença italiana, dezenas de vezes, imputar a Battisti a subversão contra o Estado italiano e enquadrá-lo numa lei instituída exatamente para combater tal subversão!
A blitzkrieg direitista foi detida na terceira votação, quando Peluso e Mendes tentavam automatizar a extradição, cassando também uma prerrogativa do presidente da República, condutor das relações internacionais do Brasil.
Contra este acinte à Constituição insurgiu-se um ministro legalista, Carlos Ayres Britto. Também por 5x4, ficou definido que a decisão final continuava sendo do presidente da República, como sempre foi.
Sabendo que Luiz Inácio Lula da Silva não cederia às afrontosas pressões italianas, o premiê Silvio Berlusconi já se conformava com a derrota em fevereiro de 2010, pedindo apenas que a pílula fosse dourada para não o deixar muito mal com o eleitorado do seu país.
Mesmo assim, quando Lula encerrou de vez o caso, Peluso apostou numa nova tentativa de virada de mesa. Ao invés de libertar Battisti no próprio dia 31 de dezembro de 2010, que era o que lhe restava fazer segundo o ministro Marco Aurélio de Mello e o grande jurista Dalmo de Abreu Dallari, manteve-o, ainda, sequestrado.
E o sequestro, desta vez, saltou aos olhos e clamou aos céus. Só não viu quem não quis.
O próprio STF acabou decidindo, por dois terços dos votos (só Ellen Gracie embarcou na canoa furada de Peluso e Mendes), que não havia mais motivo nenhum para o processo prosseguir nem para Battisti ser mantido preso.
Agora, com sua situação de imigrante legal regularizada, Battisti finalmente encontrará a paz que veio buscar entre nós, acreditando que fôssemos todos brasileiros cordiais. Para sorte dele e em benefício da imagem do país junto a quem não usa antolhos, alguns ainda somos...
Fonte: Blog Náufragos da Utopia
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