"o submundo da Editora Abril"
Carlos Rogério de Carvalho NunesPor Carlos Rogério de Carvalho Nunes*
Ninguém melhor do que quem conheceu a Editora Abril por dentro desde o seu nascedouro para falar sobre o papel deste grupo no cenário político brasileiro. É o caso do personagem do livro O Homem-Abril - Cláudio de Souza e a história da maior editora brasileira de revistas, escrito por Gonçalo Júnior, que trabalhou para a Abril nas suas três primeiras décadas de existência. Entre março de 1951 e setembro de 1975, Cláudio de Souza passou por quase todos os departamentos da empresa.
Por oito anos, ele trabalhou como assessor pessoal do seu fundador, o então cidadão norte-americano Victor Civita. Foi ele quem ajudou Civita a falar o português corretamente. Gonçalo faz revelações surpreendentes — como os detalhes das tentativas do grupo norte-americano Time-Life de convencer Civita a criar um canal de TV em São Paulo. O dono da Abril, que poderia ser flagrado em delito por conta de sua nacionalidade, sugeriu que o grupo procurasse seu amigo, o brasileiro Roberto Marinho. Assim nasceu a Rede Globo de Televisão — porta-voz oficiosa da ditadura militar.
História de trapaças
Gonçalo, que também é autor do livro Guerra dos Gibis — que narra a chegada dos quadrinhos ao Brasil, vindos dos Estados Unidos em meados da década de 1930 —, comenta de passagem o papel da ditadura militar na consolidação da Editora Abril.
"Embora fale das relações da Abril com o regime militar e destaque documentos encontrados no arquivo do Deops, minha preocupação foi cobrir o período em que o editor trabalhou lá", afirma Gonçalo. E recomenda: "Longe da pretensão de contar tudo sobre a Abril, creio que deixo pistas interessantes para que outros pesquisadores venham a desenvolver trabalhos complementares sobre a Editora."
O autor revela outros detalhes dos tortuosos caminhos trilhados por Civita. Um deles é o fato de o fundador da Abril ter permanecido no anonimato durante dez anos por ser estrangeiro. Assim ele conseguiu burlar as leis que o impediam de ser dono de uma empresa de comunicação. Até Civita conseguir a nacionalidade brasileira, as revistas da Abril saíam apenas com a assinatura de seu sócio, Gordiano Rossi, como diretor responsável. A primeira revista com editorial assinado por Civita foi a Quatro Rodas.
Civita possivelmente se inspirou na trapaça de outro conhecido editor, Adolfo Aizen, que lançou os quadrinhos no Brasil na década de 30 por meio de um suplemento infantil no jornal A Noite. Em 1945, dizendo-se baiano o russo Aizen fundou Editora Brasil-América Limitada, a Ebal. Ele manteve a sua nacionalidade sob segredo por décadas. Outra revelação de Gonçalo sobre Civita é a de que o dono da Abril teria recorrido a empréstimos estrangeiros — algo ilegal perante a legislação da época.
Programa de governo
Civita e Roberto Marinho podem ser considerados os impositores deste tipo de jornalismo totalmente desprovido de ética, muito comum nos dias de hoje. Eles trilharam, sem escrúpulos, os caminhos da influência norte-americana no universo cultual brasileiro. Durante a ditadura militar, consolidaram seus impérios lançando mão de trapaças, negociatas e autoritarismos. Até hoje, esses impérios — cujos métodos são utilizados pela totalidade dos grupos que controlam a “grande imprensa” brasileira — se valem dessas armas para impedir que o Brasil avance no rumo do progresso social e da democracia.
Um exemplo disso é o apoio aberto da Editora Abril à “era FHC” e os ataques baseados em mentiras e calúnias contra o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva. O filho de Cívita — Roberto, que hoje comanda o império — manteve por muito tempo uma foto de FHC em sua mesa para não deixar dúvida sobre a sua opção. “Pensam que a Abril apóia o programa de governo do Fernando Henrique. A questão está mal colocada. Não é a Abril que apóia o programa de Fernando Henrique. É o Fernando Henrique que apóia o programa de governo da Abril”, disse ele certa vez.
Operações clandestinas
A Abril também é acusada de usar uma montagem fraudulenta — por meio de empresas fantasmas, laranjas e lavanderias — para passar 30% do seu controle a um conglomerado de comunicação racista que sustentou o apartheid na África do Sul. Outro caso é a negociata com o grupo Telefônica. O assunto ganhou algum destaque depois que o senador Renan Calheiros rebateu os seus acusadores mobilizados pela Abril. Ele disse que a Editora, que publica a revista Veja, já ficou conhecida como “Vileja” — pela vileza de seu jornalismo “desonesto, persecutório, panfletário e torpe”.
Para o senador, a tentativa da Abril de “fraudar a lei brasileira, de desrespeitar a concorrência, de agredir os interesses nacionais e de ludibriar o país, transferindo o controle societário da TVA e de outras duas operadoras para um grupo estrangeiro por quase um bilhão de reais, não é a primeira vez que ocorre”. “Não foi um acaso, não foi um desvio jurídico da Editora Abril. Trata-se de algo pior, de um vício, de um hábito delinqüente: o hábito de desrespeitar nossas instituições, de ferir nossos interesses, para ocultar suas operações clandestinas, ilegais e imorais, enquanto cinicamente se autoproclama defensora dos interesses do Brasil”, disse ele.
O jogo bruto continua
Renan também disse que a Veja desenvolve campanhas de linchamento, sem provas, contra “homens públicos e nossas instituições”. Segundo o senador, a Abril “esgueira-se, sorrateiramente, entre os veículos de comunicação, ampara-se nesta vital instituição e lá faz suas transações subterrâneas, imorais e antiéticas”. O senador também afirmou que o grupo mistura liberdade de imprensa com libertinagem de imprensa. “Jornalismo como esse, como instrumento de propaganda, amparado na força da repetição, da mentira, não é jornalismo, é fascismo, é nazismo”, afirmou.
É uma síntese precisa da Abril — e dos demais grupos que controlam a “grande imprensa” brasileira. Vale lembrar aqui o comentário feito pelo cientista político René Armand Dreifuss — que acreditou na possibilidade de o homem transformar a realidade —, autor do importante livro A conquista do Estado — ação política, poder e golpe de classe sobre o papel de uma "elite orgânica" de orientação empresarial na desestabilização do regime democrático pré-1964 para pôr no lugar a "ordem empresarial" após o "golpe de classe", com o qual ele encerra a sua obra Transformações: matrizes do século 21: “E o jogo continua...” Cabe acrescentar: continua com sua forma bruta, sem regras, sem princípios, sem ética.
* Carlos Rogério de Carvalho Nunes é secretário nacional de Políticas Sociais da CUT e membro da coordenação nacional da CSC.