sexta-feira, 6 de abril de 2012

Andrei Tarkovski, 80 anos: O poeta do cinema foi também um pensador da arte

Por Josias Teófilo*no SUL21

Há 80 anos nascia o cineasta soviético Andrei Tarkovsky (1932-1986). Chegou ao mundo depois das revoluções vanguardistas que repensaram o papel do artista na sociedade. Na década de 1960, quando ele realizou seus dois primeiros longas-metragens, as concepções sobre a arte já estavam num processo de transformação profunda. Os pensadores da arte contemporânea idealizaram o artista num lugar totalmente diverso do concebido anteriormente, desmistificando a sua atuação na sociedade e ressaltando o seu aspecto intelectual e político.
Tarkovsky não compartilhava dessas visões advindas da arte contemporânea, seus filmes inicialmente e seus escritos, em especial o livro Esculpir o Tempo, documentaram isso. Com relação à vanguarda russa, inclusive o cinema de Sergei Eiseinstein, a obra de Tarkovsky e sua concepção artística parecem não só se diferenciar mas por vezes se opor diametralmente – como no debate sobre a montagem. Suas referências mais profundas no seu país são a literatura de Tolstoi e Doistoiévski, do século anterior. O cinema ele naturalmente defende como obra autoral.
Esta defesa não é exclusividade de Tarkovsky, porém nele essa autoria tem um componente bastante diverso: ela se apresenta como um dom espiritual. Para ele, o artista é como um demiurgo: “O poeta não usa ‘descrições do mundo’; ele próprio participa da sua criação”, diz ele no seu livro Esculpir o tempo, escrito nos longos espaços de tempo entre a realização dos seus filmes. Foram apenas 7 longas-metragens em toda a sua vida. Ter feito tão poucos filmes – comparado a outros grandes cineastas – não foi uma escolha. A causa foi, principalmente, a dificuldade em realizar o tipo de filme que ele fazia, de caráter profundamente religioso, na União Soviética.
Os longos espaços de tempo entre um filme e outro – em média 5 anos – parecem ter colaborado na densidade dos seus filmes e no grau de reflexão que eles suscintam. Todos os 7 filmes se relacionam profundamente na temática, na forma e nas amplas referências à pintura, literatura, filosofia, etc. Porém, em toda a sua obra, tanto fílmica quanto escrita, um tema é recorrente e crucial: o Sacrifício.
Para ele, a criação artística é um ato de Sacrifício: trata-se de uma doação, que certamente não é material, intelectual ou mesmo emocional. O Sacrifício configura-se como algo espiritual – palavra que ele usa constantemente nos seus escritos. Essa espiritualidade, entretanto, não é religiosa no sentido corrente. Tarkovsky diz que as religiões, tal como se apresentam hoje, “não são capazes de saciar a sede de Absoluto que caracteriza o homem”.
A espiritualidade para ele se concretiza na idéia de Amor, a absoluta antítese de pragmatismo e fundamento do Sacrifício. Talvez sejam essas duas idéis complementares, o Sacrifício e o Amor, que diferenciam o pensamento e a obra de Tarkovsky do seus contemporâneos, tornando sua mensagem ao mesmo tempo atual e profundamente relacionada com a grande arte do passado – o que nos faz refletir sobre a possibilidade de existirem características perenes no fenômeno artístico ao longo dos tempos.

* Josias Teófilo é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovski no filme Andrei Rublev.

Enquanto isso, os Tuaregues...




Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Kadafi. Depois da queda do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou de outros segmentos da população. E levaram consigo suas armas.


Quem não se lembra dos tuaregues? Os da minha geração lembram. Eles estavam no filme Beau Geste (1939), direção de William Wyler, com Gary Cooper, Ray Milland, Susan Hayward, Robert Preston e grande elenco. Neste filme, que, na verdade, foi filmado não no Saara, mas nas dunas do sul da Califórnia, os tuaregues, cavalgando loucamente como índios norte-americanos (os da tribo de Hollywood), tentavam tomar o forte de Zinderneuf, sem resultado. Gary Cooper, Ray Milland e os demais resistiam bravamente até o último homem, mas sem entregar o forte. Só Ray Milland sobrava, para voltar melancólica, mas gloriosamente, para casar com Susan Hayward, que ficara o tempo todo à sua espera, tocando piano no salão de Brandon Abbas, na Inglaterra.

Pois agora os tuaregues saíram a fazer estrepolias novamente, mas não nas telas de cinema, nem no sul da Califórnia, mas no Saara mesmo. Nem cavalgam loucamente, mas agem com método e determinação. Já dominam dois terços do território da República do Mali, onde recentemente houve um golpe de estado na capital, Bamako.

Uma revolta de soldados no quartel de Kati, a 10 km. do palácio presidencial, evoluiu em derrubada do governo. O capitão Amadou Sanogo assumiu a liderança da revolta e o controle do governo. O presidente constitucional, Amadou Toumani Touré, está na clandestinidade. Os países vizinhos, do Oeste Africano, exigem que o novo governo – que parece não saber muito bem o que fazer – devolva o poder aos civis. O capitão subitamente promovido a presidente até o momento só fez ganhar tempo: prometeu eleições, mas não mencionou prazo. Diz querer de volta a constituição de 1992 – o que é uma contradição, pois por ela o presidente legal e legítimo é o deposto.

O golpe parece ser decorrência da atuação dos tuaregues, reunidos sob um Movimento Nacional de Libertação do Azawad – nome da região habitada por suas tribos. Essa região transborda o Mali, se espraiando pela Argélia, Líbia, Mauritânia, Líbia, onde vivem os quase 6 milhões de tuaregues que reivindicam um país para si. Ainda não está claro se eles pretendem proclamar a independência do território que já dominam, dois terços do Mali, ao norte, ou se pretendem avançar para a capital e derrubar o(s) governo(s).

O Mali é um dos países mais pobres da África. Seu exército, de 7 mil homens, também é pobre, e essa parece ser uma das razões da revolta. Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Muammar Kadafi. Depois da queda e assassinato do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou parte de outros segmentos da população. Levaram consigo suas armas. Acostumados a viver e a lutar no deserto, onde já protagonizaram várias revoltas, passaram a superar o exército em poder de fogo, mobilidade e capacidade militar.

Desde então ocuparam as principais cidades da região: Gao, Kidal e a legendária Timbuktu, a 700 km. da capital.

Por ora as potências ocidentais – a França, em particular, que se envolveu na guerra civil da vizinha Costa do Marfim, derrubando o governo e pondo um de seu agrado na capital, e vive delicado momento eleitoral – não sabem ainda o que fazer. Certamente não vão apoiar os tuaregues; ao mesmo tempo, não podem apoiar do governo “revolucionário” do capitão revoltado; também não se sabe ainda sua avaliação do governo deposto, tido como fraco para liderar suas próprias tropas e enfrentar o inimigo tuaregue ao norte.

De momento, a situação é a de um beco com muitas entradas e nenhuma saída. Uma situação nada incomum nesta África cuja reocupação pelas potências internacionais está em andamento, tanto na prática quanto nos mapas de planejamento.

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.

Timor Leste: porque o mais pobre é ameaça para o poderoso

por John Pilger 
 
A partilha. O truísmo de Milan Kundera, "a luta do povo contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento", descreve Timor Leste. No dia em que decidi filmar ali clandestinamente, em 1993, fui à loja de mapas Stanfords, no Covent Garden de Londres. "Timor?", disse um assistente de vendas hesitante. Pusemo-nos a examinar prateleiras marcadas Sudeste Asiático. "Desculpe-me, onde é exactamente?"

Após uma pesquisa ele encontrou um velho mapa aeronáutico com áreas em branco assinaladas: "Dados de auxílio incompletos". Nunca lhe fora pedido Timor-Leste, o qual está a Norte da Austrália. Tal era o silêncio que envolvia a colónia portuguesa a seguir à sua invasão e ocupação pela Indonésia, em 1975. Mas nem mesmo Pol Pot conseguiu, proporcionalmente, matar tantos cambodgianos quanto o ditador Suharto, da Indonésia, matou em Timor-Leste.

No meu filme, Morte de uma nação , há a cena de um brinde a bordo de um avião australiano a voar sobre a ilha de Timor. Decorre numa festa e dois homens de fato estão a brindar-se com champanhe. "Isto é um momento histórico único", balbucia um deles, "é verdadeiramente histórico e único". Trata-se de Gareth Evans, ministro dos Negócios Estrangeiros da Austrália. O outro homem é Ali Alatas, o porta-voz principal de Suharto. Passa-se em 1989 e eles estão a fazer um voo simbólico para celebrar a assinatura de um tratado pirata que permitiu à Austrália e às companhias internacionais de petróleo e gás explorarem o fundo do mar ao largo de Timor-Leste. Por baixo deles há vales crivados de cruzes negras onde aviões caça fornecidos por britânicos e americanos estraçalharam pessoas em bocados. Em 1993, o Comité de Assuntos Estrangeiros do Parlamento australiano relatou que "pelo menos 200 mil", um terço da população, havia perecido sob Suharto. Graças a Evans, em grande parte, a Austrália foi o único país ocidental a reconhecer formalmente a conquista genocida de Suharto. As forças especiais assassinas da Indonésia, conhecidas como Kopassus, foram treinadas na Austrália. O prémio, disse Evans, eram "ziliões" de dólares.

Ao contrário de Muammar al-Kaddafi e Saddam Hussein, Suharto morreu pacificamente em 2008 cercado pela melhor ajuda médica que os seus milhares de milhões podiam comprar. Ele nunca correu o risco de ser processado pela "comunidade internacional". Margaret Thatcher disse-lhe: "Você é um dos nossos melhores e mais válidos amigos". O primeiro-ministro australiano Paul Keating encarava-o como uma figura paternal. Um grupo australiano de editores de jornais, conduzido pelo veterano servidor de Rupert Murdoch, Paul Kelly, voou a Djacarta para prestar homenagem ao ditador; há uma foto de um deles a fazer uma reverência.

Em 1991, Evans descreveu o massacre de mais de 200 pessoas por tropas indonésias, no cemitério de Santa Curz, em Dili, capital do Timor-Leste, como uma "aberração". Quando manifestantes colocaram cruzes do lado de fora da embaixada da Indonésia em Canberra, Evans ordenou a sua retirada.

Em 17 de Março, Evans estava em Melbourne para falar num seminário sobre o Médio Oriente e a Primavera Árabe. Mergulhado agora no ocupado mundo dos "think tanks", ele explana acerca de estratégias de grandes potências, nomeadamente a elegante "Responsabilidade de proteger", a qual é utilizada pela NATO para atacar ou ameaçar ditadores arrogantes ou desfavorecidos sob o falso pretexto de libertar seus povos. A Líbia é um exemplo recente. No seminário também estava presente Stephen Zunes, professor de política na San Francisco University, que recordou à audiência o longo e crítico apoio de Evans a Suharto.

Quanto acabou a sessão, Evans, um homem de fusível limitado, atacou Zumes e gritou: "Quem raios é você? De onde raios você saiu?" Disseram a Zumes, confirmou Evans posteriormente, que tais observações críticas mereciam "um soco no nariz". O episódio foi oportuno. A celebrar o décimo aniversário de uma independência que Evans outrora negava, Timor-Leste está nas convulsões da eleição de um novo presidente; a segunda volta da votação é em 21 de Abril, seguida pelas eleições parlamentares.

Para muitos timorenses, com seus filhos malnutridos e atrofiados, a democracia é uma noção. Anos de ocupação sangrenta, apoiada pela Austrália, Grã-Bretanha e EUA, foram seguidos por uma campanha implacável de intimidação por parte do governo australiano para afastar a pequena nova nação da fatia a que tem direito das receitas de petróleo e gás do seu leito marítimo. Tendo recusado reconhecer a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça e a Lei do Mar, a Austrália mudou unilateralmente a fronteira marítima.

Em 2006 foi finalmente assinado um acordo, em grande medida nos termos da Austrália. Logo após, o primeiro-ministro Mari Alkatiri, um nacionalista que enfrentou Canberra e opôs-se à interferência estrangeira e ao endividamento ao Banco Mundial, foi efectivamente deposto naquilo a que chamou uma "tentativa de golpe" por "elementos externos". A Austrália tem tropas de "manutenção da paz" em Timor-Leste e treinou seus opositores. Segundo um documento escapado do Departamento da Defesa australiano, o "primeiro objectivo" da Austrália em Timor-Leste é que os seus militares "tenham acesso" de modo a que possa exercer "influência sobre a tomada de decisões em Timor-Leste". Dos dois actuais candidatos presidenciais, um é Taur Matan Rauk, um general e o homem de Canberra que ajudou a afastar o incómodo Alkitiri.

Um pequeno país independente montado sobre recursos naturais lucrativos e caminhos marítimos estratégicos é objecto de preocupação séria para os Estados Unidos e o seu "vice xerife" em Canberra. (O presidente George W. Bush promoveu realmente a Austrália a xerife pleno). Isso explica em grande medida porque o regime Suharto exigiu tanta devoção dos seus patrocinadores ocidentais. A obsessão permanente de Washington na Ásia é a China, a qual hoje oferece a países em desenvolvimento investimento, qualificação e infraestrutura em troca de recursos.

Ao visitar a Austrália em Novembro, o presidente Barack Obama emitiu outra das suas ameaças veladas à China e anunciou o estabelecimento de uma base dos US Marines em Darwin, bem em frente às águas de Timor-Leste. Ele entende que países pequenos e empobrecidos podem muitas vez apresentar a maior ameaça à potência predatória, porque se eles não puderem ser intimidados e controlados, quem poderá?
O original encontra-se em www.johnpilger.com/...

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