Há 80 anos nascia o cineasta soviético Andrei Tarkovsky (1932-1986).
Chegou ao mundo depois das revoluções vanguardistas que repensaram o
papel do artista na sociedade. Na década de 1960, quando ele realizou
seus dois primeiros longas-metragens, as concepções sobre a arte já
estavam num processo de transformação profunda. Os pensadores da arte
contemporânea idealizaram o artista num lugar totalmente diverso do
concebido anteriormente, desmistificando a sua atuação na sociedade e
ressaltando o seu aspecto intelectual e político.
Tarkovsky não compartilhava dessas visões advindas da arte
contemporânea, seus filmes inicialmente e seus escritos, em especial o
livro Esculpir o Tempo, documentaram isso. Com relação à vanguarda
russa, inclusive o cinema de Sergei Eiseinstein, a obra de Tarkovsky e
sua concepção artística parecem não só se diferenciar mas por vezes se
opor diametralmente – como no debate sobre a montagem. Suas referências
mais profundas no seu país são a literatura de Tolstoi e Doistoiévski,
do século anterior. O cinema ele naturalmente defende como obra autoral.
Esta defesa não é exclusividade de Tarkovsky, porém nele essa autoria
tem um componente bastante diverso: ela se apresenta como um dom
espiritual. Para ele, o artista é como um demiurgo: “O poeta não usa
‘descrições do mundo’; ele próprio participa da sua criação”, diz ele no
seu livro Esculpir o tempo, escrito nos longos espaços de tempo entre a
realização dos seus filmes. Foram apenas 7 longas-metragens em toda a
sua vida. Ter feito tão poucos filmes – comparado a outros grandes
cineastas – não foi uma escolha. A causa foi, principalmente, a
dificuldade em realizar o tipo de filme que ele fazia, de caráter
profundamente religioso, na União Soviética.
Os longos espaços de tempo entre um filme e outro – em média 5 anos –
parecem ter colaborado na densidade dos seus filmes e no grau de
reflexão que eles suscintam. Todos os 7 filmes se relacionam
profundamente na temática, na forma e nas amplas referências à pintura,
literatura, filosofia, etc. Porém, em toda a sua obra, tanto fílmica
quanto escrita, um tema é recorrente e crucial: o Sacrifício.
Para ele, a criação artística é um ato de Sacrifício: trata-se de uma
doação, que certamente não é material, intelectual ou mesmo emocional. O
Sacrifício configura-se como algo espiritual – palavra que ele usa
constantemente nos seus escritos. Essa espiritualidade, entretanto, não é
religiosa no sentido corrente. Tarkovsky diz que as religiões, tal como
se apresentam hoje, “não são capazes de saciar a sede de Absoluto que
caracteriza o homem”.
A espiritualidade para ele se concretiza na idéia de Amor, a absoluta
antítese de pragmatismo e fundamento do Sacrifício. Talvez sejam essas
duas idéis complementares, o Sacrifício e o Amor, que diferenciam o
pensamento e a obra de Tarkovsky do seus contemporâneos, tornando sua
mensagem ao mesmo tempo atual e profundamente relacionada com a grande
arte do passado – o que nos faz refletir sobre a possibilidade de
existirem características perenes no fenômeno artístico ao longo dos
tempos.
* Josias Teófilo é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovski no filme Andrei Rublev.
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