terça-feira, 13 de maio de 2014

"Se a bandeirinha é bonitinha, que vá posar na Playboy" — CartaCapital






"Se a bandeirinha é bonitinha, que vá posar na Playboy"

A agressão verbal contra a auxiliar Fernanda Uliana
prova que o futebol é o penúltimo reduto da misoginia. O último é o
jornalismo boleiro. Por Matheus Pichonelli

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"Reportagem" do jornal Extra sobre a bandeirinha Fernanda Uliana
 
O futebol é o penúltimo reduto
da misoginia. O último é o jornalismo boleiro. Misoginia, para quem não
sabe, é a palavra designada pelos gregos para classificar o “horror e a
aversão” a tudo o que é ligado ao feminino e às mulheres.
Essa aversão ganhou ares de alarme após a vitória do Atlético Mineiro
sobre o Cruzeiro no domingo 11. Desde então, nenhum assunto foi mais
comentado no mundo futebolístico do que a existência da bandeirinha
Fernanda Colombo Uliana. Nem mesmo os erros cometidos por ela durante a
partida e referendados por um homem, o árbitro Heber Roberto Lopes,
entre eles um pênalti não marcado e um impedimento inexistente para a
equipe azul celeste. O assunto era outro: a sua simples presença da
bandeirinha em um local sagrado para os homens.


Basta uma simples busca no Google (“bandeirinha gata é clicada em
pose indiscreta”, “conheça a linda e polêmica bandeirinha”) e as
deferências dos ogros do esporte sobre o corpo estranho em um grutão
construído por homens, entre homens e para os homens. “Se ela é
bonitinha, que vá posar na Playboy. No futebol tem que ser boa de
serviço”, chegou a dizer o diretor de futebol do Cruzeiro, Alexandre
Mattos, após o clássico mineiro.


Em sua demonstração pública de misoginia, Mattos se esqueceu de
lembrar que os erros da bandeirinha foram referendados pelo chefe da
arbitragem. Um homem, portanto. Mas, ao fim do jogo, nem Mattos nem
ninguém mandou que Heber Roberto Lopes fosse posar na Playboy. Ou que
fosse consertar motor de carro. Ou plantar


laranja. Faz sentido: quando o árbitro erra, ele é poupado até no
xingamento. A ofensa é direcionada à aleivosia da sua mãe ou à
fidelidade da sua esposa. Nunca a ele (a não ser, claro, que seja
negro).


Pela repercussão, os erros da bandeirinha não colocaram a arbitragem
em xeque, mas sim a capacidade feminina de se instalar em um campo de
domínio masculino. Uma coisa é mulher jogar futebol. Quando isso
acontece, ninguém se comove: os estádios não lotam, a imprensa esportiva
dá de ombros, os patrocinadores fazem pouco caso. Mas uma mulher
arbitrando no quintal masculino é mais que uma concessão: é uma ofensa.
Porque tudo no mundo futebolístico é masculino. Nesse domínio, a regra é
clara: a única seleção capacitada a representar o País é composta por
11 jogadores homens, um treinador homem, auxiliares técnicos homens e
dirigentes homens. Se tiverem sorte, as mulheres poderão atuar como
nutricionistas ou psicólogas.


Na minha vida profissional, tive pelo menos dez mulheres como
superiores diretas. Se para qualquer uma eu respondesse, a cada decisão
contrariada, que ela deveria posar na Playboy, ganharia uma bifa na
cara, uma carta de demissão e um processo na Justiça. No futebol a
relação inexiste porque o esporte quase nunca é pensado para outro
público se não o tiozão sentado no sofá, ou na arquibancada, com uma
lata de cerveja na mão. Porque é construído e transmitido por tiozões.
Basta notar os comentários ao fim dos jogos. Basta reparar nas piadas
dos comentaristas ao lado das apresentadoras-alvo-de-piadas. Basta ver o
esforço das câmeras para pinçar um decote no meio da torcida (se houver
um celular entre o decote, melhor). E basta ver ao fim do jogo as
galerias de “belas da torcida”. Ou a galeria de poses insinuantes à
beira do campo da nova “musa” do esporte.


Em conversas e rodas informais, costumo dizer que o futebol é um
microcosmos da vida comum, e não apenas por assimilar em campo as
práticas que consideramos moralmente valiosas, como a generosidade do
passe, a doação pelo companheiro contundido, o fôlego extra por um
objetivo, a fidelidade dos propósitos e a frieza na hora de tomar uma
decisão (o pênalti, nesse sentido, é a situação-limite que todos os
cineastas buscam levar à tela). Mas é também um microcosmo do nosso
primitivismo. O desembaraço do achincalhe sobre a bandeirinha Fernanda
Uliana é o mesmo que permite agredir mulheres nas ruas e culpar a sua
saia. Segundo essa concepção, Uliana e as mulheres não entram em campo
para trabalhar, mas para aparecer. E as agressões são apenas as reações
naturalizadas de uma mesma ousadia – e não de uma incapacidade ancestral
de conter o verbo ou a agressão.


Ao fundo da fala do dirigente do Cruzeiro é possível visualizar uma
velha cortina: “quem mandou provocar”, “se estivesse em casa não teria
acontecido nada disso”. “Se errou, é porque é mulher”. “Se acertou, é
apesar de ser mulher”. A galeria de poses sensuais de Fernanda em seu
ambiente de trabalho (só para lembrar: os juízes também usam shorts e
deixam parte das coxas à mostra) é o combustível aditivado para a
construção desse discurso.


E é com base nesse discurso que, em nome honra (hombridade?) da sua
torcida e de seu país, o futebol trancafia durante dias os marmanjos
para se preparar para as partidas decisivas. Na concentração é proibido
chegar perto de mulher. E é proibido receber ou promover visitas
íntimas. Maldita maçã envenenada esta de Eva. Não só expulsou os donos
das costelas do paraíso como quer envenenar o último bastião de sua
pureza, essa grande confraria masculina chamada futebol.

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