domingo, 9 de dezembro de 2012

Bram Stoker vive!

Nikelen Witter
Especial para o Sul21

Não, ele não morreu. Acima, Christopher Lee como Drácula.

O título dramático pode parecer exagerado. Afinal, Bram Stoker jamais foi conhecido como um autor genial. Nem em sua época, nem passados 100 anos de sua morte. Sua criação, porém, assentou seu pé na imortalidade. Drácula, a obra-prima de Stoker, ganhou vida própria (com o perdão da ironia) e superou em muito seu criador. Se levarmos em conta, especialmente, a primeira metade do século XX, perceberemos, inclusive, que o autor praticamente sumiu das referências feitas a seu personagem mais famoso. Resgatado no título de uma adaptação de sua obra num filme dos anos 90, assinado pelo oscarizado Francis Ford Coppola, Stoker assumiu notoriedade como um dos principais autores no estilo do romance gótico vitoriano.

Lugosi em momento de concentração

Drácula é um excelente livro. Bem construído, elaborado com esmero ao longo de sete anos de pesquisas e trabalho. Foi considerado “a sensação da temporada” em 1897. Ainda assim, é da personagem, mais que a obra, de quem todos se lembram. É Drácula, o conde — seja ele assimilado ao empalador romeno, ou aos rostos (e vozes) carismáticos de Bela Lugosi e Christopher Lee — que assume a frente de tudo quando nos referimos à Stoker, a tal ponto de muitos tentarem, ainda hoje, ler na obra a vida do escritor. Isso porque, ao contrário de outros autores góticos, o irlandês teve uma vida ordinária, sem grandes feitos ou conexões, tendo escrito 12 romances e alguns volumes de contos. Era crítico teatral e pessoa de gostos convencionais. Foi batizado por seus pais e alimentava-se normalmente.

Bram Stoker: até virar título do filme de Coppola, o autor fora engolido por seu personagem

Bram Stoker

Nascido em 8 de novembro de 1847, em Clontarf, subúrbio ao norte de Dublin, Stoker foi o terceiro de sete filhos do casal Abraham Stoker — um funcionário público de pouca expressão — e Charlotte Mathilda Blake Thornley, uma escritora com tendências feministas. A infância foi marcada pela doença, estando ele, muitas vezes, à beira da morte e praticamente sem poder ficar em pé até quase os sete anos. Recuperado, o jovem Bram cursou uma escola privada e, mais tarde, graduou-se com honras no conceituado Trinity College, onde, inclusive, foi atleta em nível de competição universitária. Interessado em teatro, Stoker trabalhou para formar-se como crítico desta atividade e foi por meio dela que conheceu a pessoa que os biógrafos apontam como a mais importante de sua vida: o ator inglês Henry Irving.
Recém-casado com Florence Balcombe — disputada beldade local que fora cortejada inclusive por Oscar Wilde — Stoker aceitou o convite de Irving e mudou-se para Londres, onde passou a trabalhar no teatro que pertencia ao ator, o Lyceum Theatre. Ocupou diversos cargos, como diretor do teatro e agente de Irving, permanecendo nestas funções por 27 anos. Paralelamente, mantinha viva uma já iniciada carreira como poeta, contista e romancista. Em fins de 1879, nasceu o primeiro e único filho do casal Stoker, batizado como Irving Noel Thornley Stoker.

Henry Irving: ator do qual Stoker era agente

Graças aos contatos de Irving, Stoker pode circular na alta sociedade da época, chegando a travar conhecimento com homens como o pintor James Abbott McNeill Whistler e os escritores Sir Arthur Conan Doyle e Walt Whitman (a quem ele muito admirava e de quem se tornou um amigo próximo). O trabalho com Irving (o ator mais famoso de seu tempo) e a gestão de um dos teatros mais bem sucedidos de Londres, deixavam Stoker constantemente ocupado, isso quando ele não estava em viagem ao continente para acompanhar seu empregador. O pouco tempo dedicado à Florence e ao pequeno Irving, bem como a idolatria dirigida ao ator em suas memórias, faz com que, até hoje, muitos biógrafos e historiadores questionem a natureza profunda da amizade desenvolvida entre ambos. Muitos acreditam até mesmo que Irving exercia um tipo de magnetismo ou domínio sobre Stoker que se assemelhava ao de Drácula sobre suas vítimas. As descrições do conde e de Irving se assemelham, ao mesmo tempo que o próprio Stoker dizia assemelhar-se a Ramfield — personagem bizarro que devora insetos enquanto aguarda, enlouquecido, a vida eterna prometida pelo vampiro, a quem ele nomeia Mestre — em sua devoção pelo patrão. Quando Drácula foi publicado, a dedicatória dirigiu-se a Henry Irving.

Gary Oldman, o Drácula de Coppola, em momento de descontração

Drácula
Stoker jamais viajou para a Europa Oriental, cenário inicial do romance, mas era fascinado pelas histórias obscuras da região, com as quais tomou contato, provavelmente, através de um conhecido seu, o viajante e escritor húngaro Armin Vambery. A publicação de Drácula data de 1897. Mas ele manteve sua produção nos anos que se seguiram com relativo sucesso, muito embora seu livro mais bem sucedido tenha sido a publicação das memórias de sua vida com Irving, que ele escreveu após a morte do ator.
Após vários derrames cerebrais, Bram Stoker faleceu em abril de 1912, em Londres. Alguns biógrafos acreditam que uma sífilis terciária pode ter sido a causa de sua morte. Ele foi cremado e suas cinzas estão depositadas no Crematório Golders Green, em Londres.

Vlad Dracul: muitas mortes e respeitável bigode

Para escrever Drácula, Stoker passou anos pesquisando o folclore europeu e histórias mitológicas dos vampiros. Muitos historiadores discordam da ideia de que ele tenha se inspirado diretamente no nobre romeno Vlad Dracul ou Drácula, também conhecido como Vlad Tepes ou Empalador. Afirmam que as informações que Stoker poderia acessar, em sua época, a sobre a figura real (e, de fato, assustadora) de Vlad eram pífias e que não seriam suficientes para a construção da personagem. O próprio nome Drácula teria sido tirado de um livro pouco confiável, que traduzia a palavra por diabo e não por dragão. De outra forma, mesmo tendo uma história medonha de assassínios e torturas, Vlad era, e é (em certa medida), um herói nacional romeno – além de ter o título, outorgado pelo Papa, de defensor da fé cristã –, o que impediria que, à época, suas características verdadeiras estivessem todas apresentadas em um livro.
Stoker, afora esta pesquisa, aventurou-se pouco na estrutura da escrita. Utilizou-se do formato epistolar, muito em voga no período, para dar o grau certo de veracidade e realismo, bem como de identificação com as personagens. O livro é uma coleção de diários, cartas, telegramas, registros de bordo, recortes de jornais, organizados em torno de uma história em que o vampiro aparece como uma sombra. Um mal à espreita, um terror que cega a capacidade dos homens de vê-lo e obstruiu sua luta contra ele, ao mesmo tempo em que seduz, mortalmente, às mulheres.

Nosferatu, uma Sinfonia de Horror (1922), de Murnau

Atento aos modelos do romance gótico, Stoker construiu seu Drácula a partir justamente do embate entre o mundo moderno e as lendas obscuras do passado humano. Assim, ele não deixa de colocar todo o aparato da racionalidade e ciência modernas à serviço da luta contra o mal. Van Helsing, que o cinema imortalizou como um caçador de vampiros, é, de fato, um cientista, um professor, um conhecedor de mitologia, história natural, medicina, leis, etc. Assim, numa boa leitura, pode-se encontrar referências à Darwin e à evolução, bem como às heroicas transfusões de sangue (uma quase ficção científica numa época em que se desconhecia os tipos sanguíneos e o fator RH). Stoker é um entusiasta do racionalismo e da ciência. Para ele, estas são as principais armas contra o conde. A religião — crucifixos, água benta e hóstias — é uma arma parcial, ligada à própria natureza sobrenatural e antiga (ou antiquada) do vampiro, daí ela estar equiparada em poder às superstições como o alho. O uso destas só tem valor quando empunhados pelo ocidente, depositário da razão moderna e pouco têm efeito nas mãos dos “ignorantes e supersticiosos” camponeses da Transilvânia.

As mulheres: portas escancaradas para o mal

Contudo, é no papel que Stoker dedica às mulheres em sua ficção que boa parte dos estudiosos se concentra. Muitas vezes classificado como misógino, o autor desenha suas personagens femininas como a parte fraca — no sentido de uma porta aberta para o mal — da civilização. Muitos estudiosos concebem Drácula como o verdadeiro pesadelo vitoriano, não pelo conde, mas pelo efeito deste sobre as mulheres. Das três vampiras, sedentas por sangue e sexo, que aprisionam Jonathan Harker no castelo do conde na Romênia, até às virtuosas Lucy e Mina, Stoker está constantemente, colocando seus heróis na defensiva. Os homens parecem não ter forças para resistir a essas criaturas cujos desejos afloram e parecem incontroláveis. Lucy e Mina parecem tê-los em menor escala até ficarem sob o fascínio do conde. Lucy torna-se uma vampira — é a noiva morta, ainda desejável e sensual, mas que suga o sangue de criancinhas. É o horror da anti-mãe. Mina, a jovem liberada que anseia por trabalhar e cuja inteligência se compara à masculina, é ainda mais temível. Ela, o conde parece querer para si. Lucy recebe como punição um coração trespassado e arrancado, a cabeça cortada e a boca preenchida por alho. Uma analogia do casamento vitoriano para alguns historiadores. Mina é salva pela morte do vampiro, mas sua redenção completa vem com o fim de seus desejos de trabalho e a concretização da vida de esposa e mãe.

Winona Ryder: a Mina do filme de Coppola



A chamada “nova mulher” (indico o capítulo de mesmo nome de E. Hobsbawm, em A Era dos Impérios), figura constante na imprensa e literatura da época, parece ter constituído para Bram Stoker, e provavelmente para muitos de seus leitores, um terror verdadeiro. Ao fim, mais que o vampiro, é o que ele desperta em nós e nos que estão a nossa volta que pode, realmente, nos dar medo. Nesse sentido, o questionamento da obra e do escritor ainda está presente e válido. Afinal, que preço se pagaria pela imortalidade?
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A Discovery Civilization tem um bom documentário a respeito do livro de Bram Stoker:
Nikelen Witter é escritora e historiadora

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