quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O dilema da esquerda brasileira

Editorial do Correio da Cidadania




Todo fato político de primeira grandeza é sempre o desfecho natural de um longo processo. Nessa condição, constitui um resultado pré-determinado, independentemente de circunstâncias fortuitas ou da ação política dos atores que nele intervém.

Sem dúvida, é sempre possível que surjam acidentes capazes de impedir ou mudar momentaneamente o desfecho natural de um processo em curso.

O episódio da morte de Vargas, em 1954, poderia ser visto como negação da tese aqui exposta, pois, como se sabe, a notícia do suicídio do presidente fez os tanques de guerra, já nas ruas para depô-lo, retornarem rapidamente aos quartéis, temerosos da reação popular, e que a UDN, líder da conspiração golpista, visse a vitória esvair-se entre seus dedos no curso daquele mesmo 24 de agosto de 1954.

Mas se a análise desse episódio for além do meramente factual e entrar no exame do processo que o mesmo integra verá que o gesto de Vargas apenas atrasou o resultado que se obteria com sua deposição. Em outras palavras: em 24 de agosto de 1954, o desfecho do processo adiado com o suicídio de Vargas já estava traçado inexoravelmente. Com Juscelino Kubitschek, eleito alguns meses depois, o processo de industrialização prosseguiu sob o comando do capital estrangeiro e não, como queria Vargas, sob o comando do Estado brasileiro.

Por que a esquerda não pôde evitar esse desfecho, apesar de o gesto de Vargas tê-la colocado momentaneamente na ofensiva? Porque, desde a reabertura democrática de 1945, não foi capaz de fazer uma leitura correta da conjuntura, não estudou suficientemente a dialética da industrialização brasileira, não formou militantes e dirigentes em número suficiente - enfim, não se preparou com a indispensável antecedência para um confronto que a própria teoria dizia ser inevitável.

O mesmo se diga do fato-golpe de 1964 e de outros dois grandes processos que se lhe seguiram: o retorno dos civis à presidência da República (1974-1985) e a liberalização da economia brasileira (1985-2002).

O primeiro processo terminou com a substituição de uma facção da burguesia por outra facção da mesma burguesia no exercício do poder do Estado. Nada do que a esquerda pudesse ter feito após o "acórdão" entre as duas facções em disputa no interior da burguesia (centro e direita) teria o efeito de alterar o resultado.

Aliás, a tentativa petista de manter a massa na rua e radicalizar a campanha das "Diretas-Já" terminou com o fracassado comício na praça do Pacaembu, em São Paulo, que não reuniu mais do que umas cinco mil pessoas. O acidente da morte de Tancredo não teria igualmente alterado o resultado, mesmo que o empossado tivesse sido, como se cogitou na época, o Ulysses Guimarães, pois, com ele ou com Sarney, o conteúdo político da Aliança Democrática estava selado.

Se Lula tivesse vencido a eleição para a presidência, em 1989 (o que não aconteceu por uma diferença de menos de 2%), o processo de liberalização da economia (1985-2002) poderia ter sido interrompido por algum tempo (embora não se possa ter nenhuma certeza disso), mas não a impediria, porque Lula e o PT não tinham recursos de poder suficientes para evitar o desfecho de um processo impulsionado por uma força muito superior à deles: o imperialismo e a burguesia brasileira unidos no propósito de alterar a posição da economia brasileira no sistema capitalista.

A melhor prova disso é a vitória de Lula em 2002, cujo resultado consistiu unicamente em pôr em prática a mesma política de seu antecessor. Se quisesse mudar, Lula seria deposto, e isto apenas atrasaria um resultado que, em 1989, já estava determinado.

Esta análise é crucial para definir os objetivos dos partidos de esquerda em 2010. Nem que, contra toda e qualquer expectativa, der a maior "zebra" na eleição presidencial, a vitória de um candidato da esquerda não terá o condão de alterar o processo de reversão neocolonial posto em marcha com o neoliberalismo e concretizado com a vitória de Collor em 1989. A maioria de votos e o apoio da massa popular que o governo de esquerda teria – como tinha Allende e não foi suficiente para manter-se no poder, nos anos setenta – não seriam força suficiente para alterar o curso de um processo comandado pelos setores que detêm hegemonicamente todo o instrumental requerido para o exercício do poder (a burguesia brasileira e o imperialismo). Nesse sentido, a vitória de Lula em 1989, com um programa anti-capitalista, interromperia por um tempo (e poderia até mesmo dar origem a um outro processo que provavelmente até nem seria revolucionário, como se viu na "Concertación" chilena), mas não alteraria uma trajetória nacional inexorável.

Portanto, o objetivo de qualquer candidatura de esquerda à presidência da República, em 2010, só terá sentido se objetivar o reinício, expurgado de seus defeitos, de um processo que vem se desenvolvendo muito lenta e sincopadamente, desde os anos trinta: o processo de amadurecimento da luta de classes no Brasil – processo este que se encontra, neste momento, provavelmente no seu nível mais baixo.

O erro a ser expurgado consiste em acreditar ser possível reformar o capitalismo brasileiro e dar-lhe uma cara mais humana – erro este que acompanha a esquerda desde os anos quarenta e que a tem impedido de expressar realmente (e não ilusoriamente) a luta concreta (embora difusa, dispersa, confusa e contraditória) que o proletariado brasileiro vem travando contra a dominação burguesa.

Não é fácil mostrar essa realidade a uma massa popular alienada, pouco instruída, presa nas malhas da "cultura do favor"; menos ainda, formular uma estratégia de longo prazo da qual derive diretamente uma tática coerente (coisa que não aconteceu até hoje) de execução.

No quadro básico da dependência externa do país, inalterado desde sua independência política, a nova divisão do trabalho criou uma situação inteiramente inédita para o Brasil – inédita e paradoxal.

Por um lado, a substituição do modelo industrial por um modelo primário-exportador aprofunda a dependência e provoca, além de permanente instabilidade econômica, um forte movimento de regressão neocolonial, que se expressa, maiormente, no plano da cultura das elites e do povo; por outro lado, a evidente viabilidade do modelo primário-exportador (tanto pelo lado da demanda externa como das potencialidades de oferta da economia nacional) traduz-se na possibilidade de um ritmo de crescimento econômico, insuficiente para assegurar a justiça social, porém suficiente para incorporar crescentemente alguns setores da massa num nível de consumo baixo, mas superior ao que estavam acostumados. O resultado óbvio desse processo é a legitimação do modelo e do regime.

A instabilidade econômica constitui, sem dúvida, uma característica inerente ao modelo posto em prática, mas não afetará sua legitimidade, enquanto não houver uma força de esquerda coerente e suficientemente forte para capitalizar politicamente os momentos de oscilação.

Todo paradoxo consiste, em essência, numa perplexidade diante do choque gerado pela presença de duas verdades incompatíveis entre si: é verdade que o país caminha para um desastre social e ecológico de proporções monumentais; mas é igualmente verdade que, após ter conseguido gerar sua dívida externa, depois de 25 anos de marginalização do sistema financeiro, está de volta a uma prosperidade, que, embora medíocre e inferior à de outros países emergentes, permite o simulacro de um processo de incorporação da população na economia de massas, e, conseqüentemente, lhe confere um certo grau de legitimação.

Rendendo-se à evidência deste paradoxo – e procurando conhecer a fundo a realidade dos dois processos contraditórios e simultâneos –, possivelmente a esquerda encontrará formas de atuar no interior de ambos e, desse modo, articular suas ações com uma estratégia revolucionária.

O problema que precisa ser imediatamente resolvido para dar início a este processo de renascimento consiste em montar uma campanha capaz de fazer um discurso inteligível, senão para toda a massa (o que é impossível), pelo menos para uma pequena parte dela, a fim de galgar um patamar de diálogo social que lhe permita estruturar-se, no curso das próximas décadas, como uma força política real.

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