terça-feira, 3 de julho de 2007

Cuba, hora de mudanças

A era Fidel está se esgotando. O projeto natural para a transição é combinar controle político nas mãos do PC com reformas capitalistas, ao estilo chinês. Mas há uma alternativa, que se apóia nos ricos processos de mobilização social da América Latina

Carlos Gabetta


Todo o mundo se pergunta se haverá “transição” em Cuba e se acontecerá antes ou depois da morte de Fidel Castro. Os adversários da Revolução Cubana estão certos de que haverá. Acontecerá segundo as premissas capitalistas e, ao terminar, terá reconstruído o sistema, com todas as suas características clássicas.

Há também os que, como nós, entendem que o capitalismo já deu tudo de bom que poderia e agora só pode oferecer desigualdade, conflitos, destruição e opressão. Para esses, o problema continua sendo propor uma alternativa geral. Afinal, depois da experiência soviética, temos que rever tudo que entendemos por socialismo.

Durante anos, temos insistido em denunciar as agressões exteriores de todo o tipo a que a revolução cubana é submetida. Só a má-fé pode ignorar o papel que ataque e o bloqueio norte-americanos exercem sobre a evolução e o caráter do regime político, os problemas da economia e as recorrentes dificuldades de abastecimento da população.

Mas o final da União Soviética e do resto dos países até agora chamados socialistas, ou a evolução dos que sobreviveram (Vietnã, China), obrigam-nos a observar problemas que nada têm a ver com “o cerco e a agressão imperialista”. São dificuldades inerentes ao tipo de socialismo que se aplicou em diversos países do mundo desde a revolução soviética: regime de partido único, assimilação do Estado pelo Partido, censura e repressão à dissidência e economia centralizada.

Promessas e misérias do "socialismo real"

Como resultado, surgiram ao menos três deformações:

1. Em uma sociedade que se diz sem classes, surge a progressiva formação de uma classe dirigente e/ou “de negócios” introduzida no poder, privilegiada e paulatinamente minada pela corrupção.

2. A onipresença do Partido e seus principais líderes sobre o conjunto da sociedade, a suposta infalibilidade de suas análises e decisões, a redução da teoria e análise marxistas a formulações dogmáticas, a repressão de toda a dissidência, o controle total da imprensa e da educação acabam por eliminar todo o verdadeiro debate de idéias na sociedade. Desaparece a crítica e, com ela, a dialética entre prática e consciência social. Se “é a prática que determina a consciência” [1], essa, produto de tal tipo de socialismo, fica longe do ideal. Estabelece-se, ao contrário do desejado, uma prática da desconfiança e são ocultadas as verdadeiras opiniões, o que acaba por determinar uma consciência cínica e, no fim das contas, reacionária.

3. No plano econômico, os diversos problemas podem se resumir em um aspecto: a produtividade. O socialismo não conseguiu substituir o estímulo do progresso individual, próprio do capitalismo, por outro, de caráter social ou ideológico, capaz de igualar ou superar seus resultados. A economia socialista foi muito menos produtiva que a capitalista em qualidade, quantidade e em qualquer de seus níveis: primário, secundário e terciário. Mesmo que o “socialismo real” tenha tido êxitos iniciais e procurado maiores níveis de igualdade, não pôde sustentar essas vantagens muito tempo – precisamente por não ser capaz de produzir com eficácia. Assim recaiu-se em uma situação de pobreza, agravada pelo aumento das expectativas sociais.

Estes três fenômenos articulam-se uns com os outros, o que multiplica a gravidade dos problemas. Cuba padece claramente dessas três conseqüências do modelo: é um regime de partido único, não existe pluralismo de opinião e a economia está totalmente planificada pelo Partido e pelo Estado.

Consciência crescente da pesada herança soviética

Existe atualmente, entre os dirigentes e intelectuais cubanos, uma forte corrente de opinião que tem muito claro o peso político e econômico “herdado”, por força das circunstâncias, do sistema soviético — assim como a ajuda recebida durante anos da URSS os poupou da fase de acumulação originária de capital. Fontes ocidentais calculam que entre créditos, doações, mecanismos de preços subvencionados e de outro tipo, Cuba recebeu dos países socialistas, em seus trinta primeiros anos de revolução, 80 bilhões de dólares de ajuda — sem incluir o apoio militar. Mesmo reduzindo essa cifra pela metade ou menos, trata-se de uma soma extraordinariamente importante para um país como Cuba. Ao menos, suficiente para seu crescimento. Porém, ao fim da URSS, Cuba descobriu dolorosamente que não havia se desenvolvido completamente [2].

Em honra à revolução cubana e aos seus dirigentes, deve-se insistir que todo esse dinheiro não parou nas mãos de uma burguesia corrupta e espoliadora, como ocorreu sistematicamente nas “democracias” latino-americanas. Em Cuba, foi utilizado para construir hospitais e escolas e para melhorar o nível de vida da grande maioria da população. Também para um generoso esforço internacionalista – não só em dinheiro mas também em todo tipo de solidariedade, até o sacrifício de vidas – dirigido aos movimentos progressistas e revolucionários da América Latina e do Terceiro Mundo.

A prova dessa enorme diferença moral é justamente a maneira com que a sociedade cubana e seus dirigentes saíram com a cabeça erguida da catástrofe econômica que o desaparecimento da URSS significou para eles. Uma catástrofe capitalista muito menor, em termos relativos (como a da Argentina em 2001), deixou o país sem o controle de seus recursos naturais, mais da metade da população na pobreza e um quarto na indigência.

Mas a comprovação de que os dirigentes comunistas cubanos são globalmente honestos e a evidência de que sempre têm contado com o apoio da maior parte de seu povo não elimina os problemas do modelo socialista cubano. Trata-se de questões objetivas, que nada têm a ver com a vontade subjetiva da geração de líderes que iniciou a revolução com a tomada do Quartel Moncada, em julho de 1953, e que ainda continua no poder.

A oportunidade única de uma reforma não-capitalista

Há alguns anos, um amigo cubano me disse: “A perestroika deveria ter começado aqui”. Não lhe faltava razão, já que seguramente Cuba teria menos dificuldades do que a URSS para encarar uma série de reformas estruturais, sob a condição de que os verdadeiros problemas se abordassem de frente, com profundidade e sem esquematismos.

Quem resiste com boa fé a essas mudanças (não os burocratas, fanáticos ou corruptos, que também existem), insiste que seria impossível controlar uma “abertura” em Cuba, devido à proximidade e ao enorme poder dos Estados Unidos. O argumento não é nada desprezível, mas não elimina os problemas assinalados. Também não leva em conta que a conjuntura regional — com a aparição de vários governos progressistas, com projetos de integração conseqüentes e o progressivao enfraquecimento dos Estados Unidos — configura uma ocasião única para uma abertura audaz, que combine maior democracia política com transformações econômicas de inspiração socialista. No fim das contas, o socialismo sem democracia representa uma contradição em si mesmo.

Cuba sobreviveu à brutal queda da URSS porque tomou um rumo muito “capitalista”: investimentos estrangeiros privadas; dupla economia (área dólar e área peso; depois, área CUC); abertura ao capital e à iniciativa privada na área de serviços e outras etc. Foi dessa maneira, com enormes sacrifícios por parte de uma população fiel à revolução e fortes concessões ao ideal socialista, que o essencial do processo foi salvo.

Um problema que diz respeito a toda a humanidade

Mas duas questões continuam de pé. A primeira, histório-política, diz respeito ao destino das revoluções socialistas que sobreviveram à URSS. Dentro de muito pouco tempo, terão desaparecido por completo as gerações que as formaram. No caso de Cuba, será um processo que avançará em direção a uma forma de socialismo ainda a definir? Ou Fidel e seus companheiros haverão sido, no fim das contas, o que Robespierre e os jacobinos foram para a Revolução Francesa: a primeira fase de uma revolução — mas não socialista, e sim emancipadora e, no fim, burguesa e “moderna”?

O segundo, e de enorme interesse para os que entendem que somente avançando até o socialismo a humanidade começará a resolver seus graves problemas, é o tema da produtividade socialista. É e velha disputa teórica que, em Cuba, se deu entre o vice presidente Carlos Rafael e o Che. Os estímulos ao trabalho e à produção devem ser materiais, morais ou uma combinação de ambos? O ocorrido na URSS dá a resposta do que não funciona, mas segue em pauta a necessidade de uma alternativa: como envolver a sociedade na produção socialista sem apelar a estímulos – propriedade privada, competição individual – próprios do capitalismo? Ao fim de vários anos de crescimento sustentável, o problema segue vigente em Cuba, já que o aumento do salário médio supera o da produtividade. Continuar se desenvolvendo dependerá, portanto, de um sensível acréscimo da disciplina do trabalho e da diminuição dos custos de produção [3], que é justamente onde o “socialismo real” falhou.

O tema da produção-produtividade-igualdade não diz respeito apenas a Cuba, mas a todas as sociedades. O paradoxo é que esse é o país que tem mais urgência de que se resolva o problema, e que está em melhores condições de consegui-lo, ajudando os demais a trilhar o caminho. Não seria estranho, e em todo caso é de se esperar, que o povo cubano e seus dirigentes enfrentem o desafio com o mesmo valor, calma e criatividade que assombrou e entusiasmou o mundo inteiro, 48 anos atrás.

Tradução (do espanhol): Gabriela Leite Martins
gabileite89@hotmail.com

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