sábado, 8 de dezembro de 2007

Nada mudou



Rogério Grassetto Teixeira da Cunha


“Em outros declives semelhantes, vimos, com prazer, progressivos indícios de desbravamento, isto é, matas em fogo ou já destruídas, de cujas cinzas começavam a brotar o milho, a mandioca e o feijão”.

“Pode-se prever que em breve haverá falta até de madeira necessária para construções se, por meio de uma sensata economia florestal, não se der fim à livre utilização, ou, melhor dizendo, devastação das matas desta zona”.

“As ervas desse campo, para serem removidas e para fertilizar o solo com carbono e extirpar a multidão de insetos nocivos, são queimadas anualmente pouco antes de começar a estação chuvosa (...) assistimos com espanto à surpreendente visão da torrente de fogo ondulando poderosamente sobre a planície sem fim”.

“(...) a atividade dos homens que esburacam o solo (...) para a extração de metais. Covas informes e montões de cascalho desfiguram as serras situadas a oeste e norte da cidade, nas quais corre ouro no xisto argiloso”.

“Infelizmente (...), ávidos de sua carne [tatu galinha], não ponderam sobre essas sábias disposições. Perseguem-no com tanta violência, como se a espécie tivesse de ser extinta.”

“No solo adubado com cinzas das matas queimadas dá boas colheitas (...) Contudo, isso se refere somente à colheita do primeiro ano; no segundo já é menor e, no terceiro, o solo em geral está parcialmente esgotado e em parte tão estragado por um capim compacto (...) que a plantação é desfeita ...”

“Maiores lucros deram, outrora, as minas de ouro (...). Agora estão esburacados os bancos de areia dos rios de todos os lugares e a superfície da terra”

“Em parte, haviam sido queimadas grandes extensões das pradarias. Assisti hoje a este fenômeno diversas vezes e, por um quarto de hora, atravessamos campos incendiados, crepitando em altas chamas”.

“Subimos então a Serra Garo, que oferecia um aspecto totalmente singular de abandono e devastação pelas inúmeras escavações feitas para as lavras de ouro”.

***

Lendo as citações acima, o leitor pode estar se perguntando de onde elas foram extraídas, até pela linguagem pouco usual, e a que lugares referem-se. Poderá imaginar que são trechos de publicações técnicas sobre o meio ambiente, talvez algum relato de um membro de uma ONG ambientalista ou de um viajante de Portugal ou outra coisa qualquer do gênero. Pois bem, não é nada disso. Na verdade, as citações foram extraídas do livro “Viagem no Interior do Brasil” (1976, Editora Itatiaia/EDUSP, tradução de Milton Amado e Eugênio Amado) do naturalista austríaco Johann Emanuel Pohl (aliás, livro que particularmente recomendo, pela riqueza de informações sobre o Brasil da época). O detalhe que torna as citações mais interessantes para aquelas pessoas preocupadas com o meio ambiente é a época em que foi feita a viagem: entre 1818 e 1819. Isto mesmo, há quase 190 anos! Repito: cento e noventa anos atrás. Triste constatar que, de lá pra cá, não só pouca coisa mudou como retrocedemos em outras.

O naturalista viajou pelos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Tocantins e descreveu os caminhos por onde passou, detalhes geológicos, aspectos da fauna e da flora, costumes e tradições das cidades, do campo e de agrupamentos indígenas, aspectos históricos, etc. Embora não seja seu foco principal, pode-se extrair várias conclusões a respeito da forma como o meio ambiente era tratado. O imediatismo, a destruição pela cobiça, a nefanda prática das queimadas, a falta de planejamento e o hábito de esgotar os recursos para posteriormente mudar o local da destruição são facilmente percebidos ao longo do texto. Na verdade, dada a época em que o relato foi feito, isto não constitui grande surpresa. O mais impressionante, no entanto, é a analogia com os dias atuais. No tocante à mineração, basta lembrar Serra Pelada, os acidentes com derramamento de substâncias tóxicas no rio Pomba, as invasões de Terras Indígenas e áreas protegidas. Sobre a exploração madeireira, temos a mesma gana exploratória, agora disfarçada sob os auspícios das Concessões Florestais de florestas públicas, planos de manejo e do recém criado Serviço Florestal Brasileiro. No quesito queimadas, continuamos com taxas recordes e números que beiram ao ridículo. Quanto à extinção de espécies e desmatamento, bem, estas é melhor nem comentar. Quase dois séculos se passaram, o discurso ambientalista ganhou força, as ONGs são entidades de peso político extraordinário, mas tudo indica que, na prática, nada mudou.

Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews.

E-mail: rogcunha@hotmail.comEste endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email


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